Biografias e apropriação da vida alheia
Frederico Vasconcelos
Sob o título “Biografias versus biografados”, o artigo a seguir é de autoria do juiz e escritor Jorge Adelar Finatto, e foi publicado originalmente em seu blog “O Fazedor de Auroras”.
Trava-se acirrada discussão no Brasil sobre a publicação de biografias.
De um lado estão os que pretendem retirar do ordenamento jurídico os artigos 20 e 21 do Código Civil (Lei nº 10.406, de 2002), que, na prática, condicionam a publicação de biografias à autorização dos biografados, se vivos, ou de seus herdeiros, se mortos.
O autor e a editora até podem publicar sem autorização, mas ficam sujeitos a processo judicial de proibição, indenização e recolhimento da obra, caso as pessoas mencionadas não concordem com a edição.
Em sentido contrário, sustenta-se a plena aplicação dos dois dispositivos legais, à luz do art. 5º, X, da Constituição Federal, que tutela a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas. Entendem estes que a exigência de autorização deve permanecer. Postulam, alguns, a participação dos biografados nos lucros de suas biografias.
Entre os argumentos que li em favor da revogação da autorização, está o de que a exigência é verdadeira censura e afronta o direito constitucional da liberdade de expressão (art. 5º, IX, da Constituição Federal). Afirma-se que as normas em vigor não permitem a livre circulação da informação e constituem atraso em relação a países onde a autorização não é exigida, como nos Estados Unidos. Acrescenta-se que a limitação legal produz biografias chapa-branca, sujeitas à interferência de biografados e familiares.
Para engrossar o caldo, tramita no Congresso Nacional projeto para acabar com a autorização. E uma ação direta de inconstitucionalidade foi ajuizada no Supremo Tribunal Federal contra os artigos 20 e 21 do CC. Esta é, resumidamente, a controvérsia.
Entendo, inicialmente, que a liberdade de expressão não pertence somente às editoras e aos biógrafos, é um direito fundamental de todos os cidadãos, que não pode ser objeto de censura. Por outro lado, não pode ser vista como censura decisão judicial que, democraticamente, harmoniza princípios constitucionais de igual importância.
Há liberdade de expressão (e não censura) na manifestação dos que defendem a vida privada, a intimidade e a imagem, ainda que de figuras públicas.
Cada direito deve ser ponderado no âmbito do sistema jurídico como um todo, não isoladamente.
O que está posto em discussão, de forma equivocada a meu sentir, é que pessoas públicas não têm direito à intimidade e à vida privada, direitos protegidos constitucionalmente tanto quanto a liberdade de expressão. Como se, por exercerem ofício público (músicos, atletas, artistas, políticos, etc.), já não pudessem dispor da vida pessoal.
Não se deve confundir personalidade pública com direito de apropriação da vida alheia.
Pretender que, por ser persona pública, o indivíduo deva suportar que terceiro escreva sobre sua vida e comercialize a seu bel-prazer essa história configura, no mínimo, inaceitável invasão da vida do outro. Retirar do personagem a possibilidade de decidir contra isso é, na minha visão, uma violência.
A história de uma pessoa é seu maior patrimônio, a sua maior riqueza, e é o que deixa de mais importante como herança. Não parece justo nem razoável que alguém se aproprie desse patrimônio personalíssimo para divulgá-lo e comercializá-lo quando e como bem entender, enquanto ao biografado resta assistir a tudo calado, como se não fosse com ele.
Não há violação da liberdade de expressão nos artigos do Código Civil, mas sim a preservação do direito legítimo de todo indivíduo de dispor de sua história de vida, no qual está incluído aceitar ou não ser biografado. Está na esfera jurídica da pessoa decidir. Como negar isso a alguém?
O que é público é o trabalho, a obra, a atividade profissional. Mas isto, de modo algum, significa que a pessoa não tenha mais direito a uma vida pessoal e de ser dono dela.
A liberdade de expressão, pedra fundamental no edifício do estado democrático de direito, não é, todavia, absoluta e encontra limites em outros direitos constitucionais.
O fato de personalidades como Michael Jackson terem por volta de 200 biografias não-autorizadas, por si só, não leva a concluir que o modelo americano possa ser transposto, sem ressalva, à realidade brasileira, tão diversa em múltiplos aspectos.
A vingar a tese da inconstitucionalidade ou da revogação dos artigos em questão, na prática se estará colocando a biografia de pessoas vivas em domínio público. Nunca será demais lembrar que a lei que protege os direitos autorais (Lei nº 9.610/1998) ampara os direitos do autor por 70 anos após sua morte… Como aceitar que a vida do criador, sua principal obra, caia de imediato em domínio público?
Penso que a lei pode ser aperfeiçoada. O artigo 20 pode ser melhorado, mas seria um grave erro simplesmente retirá-lo do mundo jurídico.
Por exemplo, acredito que seria um avanço fixar-se um prazo para o exercício do direito por parte dos herdeiros. Também seria, neste momento, oportuno, tanto no STF como no Congresso Nacional, realizar audiências públicas sobre o assunto, a fim de enriquecer as decisões que serão tomadas nos dois poderes.
Por fim, observo que não é a primeira vez e nem será a última que normas constitucionais entram em aparente conflito. É a análise percuciente do caso concreto que determinará qual direito deve ser aplicado para a realização do justo. Há inúmeras situações em que a liberdade de expressão prevalece sobre normas de mesma hierarquia. E há casos em que não prevalece, sendo que a própria Constituição Federal, no artigo 220, parágrafo 1º, acena com limites.
Viver em democracia significa, essencialmente, conhecer estes limites e saber que não existem direitos absolutos.
Reflexão madura, embasada em conhecimento técnico e sensibilidade de vida. Certamente contribuirá para uma boa solução do problema no país. Parabéns ao autor pela concepção do texto e ao blog pela publicação.
Alguns estão propagandeando que países avançados – utilizando os EUA como modelo principal- já dispensam a autorização do biografado para a publicação. Vendendo, assim, a ideia de que para nos tornarmos um País avançado devemos retirar do ordenamento jurídico a necessidade de permissão. O argumento mencionado desconsidera completamente as circunstâncias do nosso País. E quem sabe para finalmente sermos avançados teremos ainda que adotar a pena de morte????
Salve a DEMOCRACIA! Não aceito que editoras e autores preocupados com seu próprios e financeiros interesses restrinjam meus direitos! Não aceito que limitem minha liberdade de querer ou não publicação a meu respeito! Não há mais espaço – em nosso sofrido País- para mudanças autoritárias e à revelia do povo.
Ótimo texto!Concordo com o autor. Muitos estão difundindo *ardilosamente* a ideia de censura prévia. Porém, tal afirmação, além de absurda, não corresponde à realidade. Grave e preocupante é pretender retirar do indivíduo (no final das contas) o seu direito à vida, à liberdade. E isso sim em muito me lembra a Ditadura.
É inegável e bastante clara a excelência do texto de autoria do juiz e escritor Jorge Adelar Finatto. Seu texto, inteligentemente, enfatiza que os direitos não são absolutos, que há esperado conflito entre eles; mostra a importância da profunda análise, caso a caso; lembra os limites impostos; promove o direito como sistêmico.
Eu, leiga e particularmente, acho lamentável que haja, inclusive, discussão sobre o assunto… como o autor mesmo afirma, “Retirar do personagem a possibilidade de decidir contra isso é, na minha visão, uma violência”. Revoltante violência.
A meu ver, há um sensacionalismo quando se trata o assunto como absurdo, como resgate aos tempos de censura no país. Parte da imprensa trata o tema isolada e categoricamente “censurando” possíveis reflexões e/ou opiniões distintas. Há, muitas vezes, lamentável tentativa de indução. Infelizmente, o lucro parece querer superar o direito de ser dono da própria vida, da própria história.
Excelente o texto, principalmente pelo olhar favorável aos direitos da pessoa humana. Num momento em que a imprensa, de forma praticamente unânime (vide capa de revista de circulação nacional, da atual semana), apóia as editoras e os autores, que vêem na publicação de biografias a possibilidade de ganhos milionários, fundamental e bem colocado o lúcido contraponto.