Fim do auxílio-reclusão pune a mulher
Sob o título “Fim do auxílio-reclusão: mais uma punição para mulheres”, o artigo a seguir é de autoria de Anderson Lobo da Fonseca, advogado formado pela Faculdade de Direito da USP e pesquisador do programa Justiça Sem Muros do Instituto Terra, Trabalho e Cidadania.
Está em curso uma mobilização pública pelo fim do benefício previdenciário de auxílio-reclusão, revigorada por uma corrente de mensagens em grupos do aplicativo Whatsapp. Na mensagem, pede-se o voto em enquete no site da Câmara dos Deputados, pelo fim do benefício e pela instituição de auxílio assistencial às vítimas, nos termos da PEC 304/2013. No entanto, muito pouco se diz sobre o papel deste benefício para as mulheres, tanto presas como familiares de presos.
A PEC 304 foi apresentada em 29 de agosto de 2013 pela Deputada Antônia Lúcia, do PSC-AC, e aguarda votação na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ). Conta com parecer pela admissibilidade nessa comissão, para ser encaminhada à comissão criada especialmente para sua análise e depois ser votada em dois turnos pelo Plenário. Na justificativa dessa proposta, lê-se que “é mais justo amparar a família da vítima do que a família do criminoso”, sugerindo que o auxílio-reclusão é uma remuneração pelo cometimento de um crime, e que sua existência estimula a criminalidade.
Os argumentos principais de quem é contra o auxílio-reclusão geralmente estão baseados na dicotomia entre preso e trabalhador, assim como entre a penalização e uma bonificação pelo crime. A questão de gênero é ocultada nesse discurso, primeiramente por falar no trabalho e no crime a partir de figuras masculinas: o homem trabalha, o homem vai preso, a mulher fica em casa desamparada. As mulheres são responsabilizadas pelo cuidado doméstico e familiar, tanto na situação de um parente preso como quando elas mesmas estão em situação de prisão. Não se enxerga que a mulher também trabalha, fora e dentro do espaço doméstico, e que o benefício do auxílio-reclusão não tem como sujeito principal o homem preso, mas essa mulher, e seus familiares.
Não é por acaso, portanto, que as grandes beneficiárias do auxílio-reclusão são as mulheres presas. Mesmo sendo a minoria da população carcerária total (aproximadamente 7%, segundo dados do DEPEN em 2012), elas são a maioria das seguradas pelo benefício em números absolutos, com aproximadamente 64% dos benefícios ativos em 2012, segundo dados do INSS. Isso se deve, em parte, à maior facilidade em conseguirem o benefício, dada a presunção de dependência econômica de seus filhos, mas justamente essa presunção se faz como questão central.
Dados da pesquisa “Tecer Justiça”, realizada pelo Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC) e pela Pastoral Carcerária, mostram que cerca de 80% das mulheres presas são mães (e responsáveis pelo cuidado dos filhos), o que dá a dimensão clara do papel do benefício. Além disso, as mulheres são geralmente presas por crimes relacionados à economia de subsistência doméstica, em situação de vulnerabilidade, principalmente em funções de baixa periculosidade no tráfico e crimes patrimoniais sem violência. São crimes que deveriam ser combatidos com medidas alternativas à prisão, conforme recomendações de organizações internacionais e convenções ratificadas pelo país, medidas que esbarram na legislação irracionalmente mais severa, como a equiparação de tráfico como crime hediondo, assim como nas posturas muitas vezes conservadoras das instituições de Justiça.
A situação de prisão, tanto delas mesmas como de seus companheiros, é permeada por inúmeras violações de direitos e situações de vulnerabilidade, alimentadas por esse discurso que combate direitos ainda precariamente assegurados e nada diz sobre as violações reais. O auxílio-reclusão, na prática, apenas atende a 7%, aproximadamente, da população prisional, e seu valor médio é inferior a um salário-mínimo. Só tem direito a esse benefício quem anteriormente à prisão contribuía para a Previdência, e desde que fosse um contribuinte de baixa renda. Imagina-se que a existência do auxílio estimule o cometimento de mais crimes, quando a teoria e a empiria já demonstram que a principal causa de cometimento de crimes é a própria vulnerabilidade social que esse benefício vem a combater.
Mas esta racionalidade está distante da mistificação e desinformação que rondam este benefício. O processo de maior e maior penalização dos crimes, na toada do populismo penal, se assimila à desconstrução da seguridade e da assistência enquanto formas de coesão social. Todos os direitos são vistos como “motivos” para o cometimento de crimes, privilégios de uma população vulnerável. A desinformação é uma ferramenta necessária para o ocultamento da realidade sofrida, justificando escolhas ideológicas pelo sofrimento do “outro”. Da “outra”.