O trabalho tratado como mercadoria

Frederico Vasconcelos

Sob o título “A vaca vai tossir na Câmara dos Deputados“, o artigo a seguir é de autoria de Paulo Luiz Schmidt, Juiz do Trabalho em Porto Alegre e presidente da Anamatra (Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho).

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Paulo Schmidt reduzida“Nem que a vaca tussa” foi uma expressão popular usada pela presidenta Dilma durante a campanha eleitoral para negar que o seu futuro governo patrocinaria reforma trabalhista que retirasse direitos. Pois bem, já editou duas Medidas Provisórias que, ao lado de tentar corrigir algumas distorções segundo justificou, indiscutivelmente mitigam “direitos” dos desempregados, dos enfermos e mutilam garantias daqueles e daquelas que teriam direito a “pensões”. Em outras palavras, sobrou para os sem emprego, para os doentes e para as viúvas, com o perdão do trocadilho.

Mal comparando, e com o perdão antecipado, essas Medidas Provisórias não passam de um “espirro” se comparadas ao que a Câmara Federal poderá fazer entre os dias 7 e 9 de abril, segundo anunciou o presidente Eduardo Cunha. Depois de visita que recebeu de empresários, o deputado anunciou que colocará em votação o PL 4330, cujo objeto nobre (dissimulado, no entanto) seria o de “proteger” os trabalhadores terceirizados, dar segurança jurídica e competividade para as empresas. Jamais o país assistiu a uma tentativa de desmonte tão radical dos direitos básicos consagrados na Constituição Federal e na vasta legislação trabalhista que as lutas sociais produziram no último século.

Durante a campanha eleitoral, o tema da quebra dos direitos sociais foi colocado em debate e, curiosamente, nenhum dos candidatos, seja a cargo executivo ou legislativo, defendeu a regulamentação da terceirização que está proposta para voto. Muito pelo contrário, o que mais se ouviu dizer foi que direitos trabalhistas não serão reduzidos nem os empregos precarizados.

Passada a campanha, entretanto, e computados os votos, o projeto que já estava arquivado volta à discussão. E a “vontade” de votar o PL 4.330/2004 é tão grande que o tema deverá ser levado a voto diretamente ao Plenário da Câmara,  mesmo sem ter esgotado o debate na Comissão de Constituição e Justiça.

Não há dúvida que essa regulamentação que está proposta interessa apenas a uma parcela do empresariado. Os juízes do Trabalho, que todos os dias lidam com casos de trabalhadores terceirizados, sabem o quanto esses homens e mulheres são discriminados e tratados de forma não isonômica em relação aos contratados diretamente pelas empresas, com menos direitos e salários menores. Sabemos o quanto os ditos terceirizados são vítimas de empresas que desaparecem antes de encerrar os contratos, sem pagar o que devem ao fisco, à Previdência e aos seus empregados. Sabe-se também que a jornada média deles é maior e que sofrem, proporcionalmente, absurdamente mais acidentes de trabalho.

E o que motiva esse Cavalo de Tróia que tem essa roupagem tão bonita segundo dizem? A resposta para isso é muito simples: tornar o custo fixo da mão de obra em custo variável. Hoje a Constituição e a legislação protegem o salário contra a redução. Então, como o empregador não pode reduzir a remuneração ou rebaixar as condições de trabalho, a solução é despedir o empregado e, através de uma outra empresa (a dita terceirizada) contratá-lo novamente, mas com salário e garantias menores. Pronto.
Burla-se a Constituição por meio de um artifício que se pretende introduzir em lei. Para o empregador um ganho, para o trabalhador e para o país, uma tragédia.

Ao invés de restringir, limitar ou verdadeiramente regulamentar a terceirização, a proposta contida no PL objetiva tornar a terceirização regra e não exceção. Se aprovado, terá o efeito de regredir mais de cem anos da história de conquistas sociais e trabalhistas em nosso país.

Impressionante como o “humor” dos mercados e das “agências de avaliação de risco” não estão “atentos” a isso! Pois só o fato de as Medidas Provisórias do Executivo (que alteram regras do Seguro Desemprego e da Previdência em alguns tópicos) serem objeto de discussão no Parlamento já motivou ameaças de baixa no “grau de investimento” do País, como se apressaram a dizer os “analistas” de plantão. Esse PL 4330 é simplesmente ruinoso para as contas públicas. Haverá uma redução sistêmica da massa salarial no mercado consumidor brasileiro – deixando a concentração de renda na nossa sociedade ainda mais iníqua – no mesmo passo da acentuada redução arrecadatória de tributos e de contribuição previdenciária a curto e médio prazo. Será que ninguém vai gritar “Levy, Levy, onde está que não escutas?” Ou alguém está gritando e ele está surdo porque à banca esse tema não interessa?

Mais impressionante é que o Brasil — que viveu dias admiráveis na Constituinte de 1988, com partidos importantes lutando pela afirmação dos direitos sociais na nossa Carta Cidadã —, hoje se defronta com a apatia ideológica de algumas dessas legendas, atitude que pode jogar por terra o que foi construído ao longo de um século e consolidado no texto constitucional de 1988.

Nesse sentido —-sob o espírito de ícones e lideranças que já se foram, mas que jamais permitiriam algo assim (e me vem à memória Ulysses Guimarães, Leonel Brizola, Mário Covas e tantos outros)-—, seria importante que todos os partidos respeitassem a Constituição, que foi escrita naqueles anos e que está em vigor, especialmente na parte dos direitos sociais, bloco de normas editado em favor do povo brasileiro, majoritariamente composto pelos trabalhadores.

Desse modo, partidos com histórico de defesa dos direitos sociais deveriam vir a público dizer um peremptório não a tão desastrosa iniciativa, que coloca o trabalho humano como artigo de comércio, como uma mercadoria qualquer, a ser vendida por agentes intermediadores da força e da capacidade de trabalho de nossos homens e mulheres. São esses agentes que lucrarão com o agenciamento do trabalho humano, especialmente do trabalhador mais desvalido, que vive de salário mínimo ou pouco mais que isso. Não há nada mais indigno.

Sob o ponto de vista jurídico, é preciso dizer que o projeto afronta a ordem jurídica internacional, naquilo em que não poderia fazer, notadamente os tratados internacionais sobre direitos humanos. E se pretende fazer isso por meio de lei ordinária!

Não fosse bastante, nos termos em que está posta a matéria, e considerando-se o atual estado consolidado da jurisprudência nacional, o proposto PL vulnera o princípio constitucional que veda o retrocesso social, notadamente quanto aos aspectos apontados, em relação aos quais há piora do quadro jurídico—protetivo, em prejuízo dos trabalhadores, sem qualquer contrapartida social.

O Projeto de Lei 4.330/2004 importa em grave retrocesso social. A proposta irá mutilar irremediavelmente o futuro do Brasil como projeto de nação. Trata-se do mais duro golpe contra o valor social trabalho, e nem mesmo em tempos de liberalismo mais amplo cogitou-se ofensiva tão severa contra as garantias históricas sintetizadas no aparato protetivo constitucionalmente assegurado. Esse Projeto, ao expandir para todas as etapas do processo produtivo a possibilidade de intermediação de mão de obra, aniquila o patrimônio de conquistas dos trabalhadores pela introdução de uma ferramenta de precarização cujos efeitos devastadores são incalculáveis.

Basta ver que a intermediação de mão de obra é o único “negócio” no mundo lucrativo para o adquirente. Em todas as demais transações (compras de insumos, equipamentos, bens e serviços) a presença dos intermediários encarece o preço, mas com o trabalho humano, essa intermediação é vantajosa para quem adquire. Por que será?

Está nas mãos dos parlamentares decidir. Que tenham sabedoria de decidir com sensibilidade social e em favor do povo.