Ser advogado não é ser juiz

Frederico Vasconcelos

Sob o título “O quinto constitucional“, o artigo a seguir é de autoria de Edison Vicentini Barroso, desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo.

 

Questão batida, esta do quinto constitucional. Porém, não enfrentada como se deve. Por ele, 20% dos assentos dos tribunais são atribuídos a advogados e membros do Ministério Público (MP). Com isso, uma de cada cinco vagas é reservada a profissionais não submetidos a concurso público de provas e títulos.

A Ordem dos Advogados (OAB) e o MP, livremente, formam lista sêxtupla (de seis), à vista da qual os tribunais selecionam três candidatos (lista tríplice), remetendo-os à escolha e nomeação de um pelo Executivo.

E isso é suficiente a que advogado e membro do MP deixem sua atividade e iniciem carreira nova – não na condição do juiz de 1º grau, mas já como desembargador ou ministro, o degrau mais alto da magistratura. Ou seja, viram magistrados em final de carreira, sem nunca o terem sido. Esse o sistema atual.

O quinto constitucional foi fruto de ideia corporativista do governo Getúlio Vargas e inserido na Constituição de 1934 pela primeira vez – do que mantido, com variação de detalhes, nas que se seguiram. A atual determinou a escolha em lista sêxtupla, e não mais tríplice (artigos 94 e 104, II).

As Constituições de 1946 e 1967, respectivamente, passaram a prever concurso público e de títulos, como elementos necessários ao ingresso na ‘magistratura vitalícia’. A atual, dita Cidadã, estabeleceu pressuposto complementar – mínimo de três anos na atividade jurídica (artigo 93, I).

Apesar disso, foi mantida a nomeação de advogados e/ou membros do MP. Assim, o quinto, em que pese constitucional, está a ferir regra maior da Constituição relativa ao indispensável concurso público de provas e títulos para que se integre o Poder Judiciário.

Não há como disto fugir: o Judiciário foi feito para ser composto por juízes – no caso, concursados e submetidos à longa e árdua carreira da magistratura. E aos advogados e membros do MP, sejam quais forem, só porque guindados àquela condição, fugindo à regra da admissão por concurso público, a rigor técnico, não se pode chamar de magistrados na acepção do termo. Antes de qualquer coisa, são biônicos. Mesmo diante dessa obviedade, verificável até pelo leigo, teima-se em manter o quinto intocado.

Dentre os três poderes da República, só os representantes do Judiciário não são formados de conformidade com a vontade popular, como previsto no artigo 1º, parágrafo único, da Constituição. É que, como visto, têm seu acesso submetido a concurso público. Mas, não assim os representantes vindos do quinto, pois, além da inexistência de manifestação do povo, não se submetem a esse tipo de concurso. Mais grave: passam a integrar um dos três poderes, não como juízes de primeiro grau, mas já na condição de desembargadores ou ministros.

E os argumentos para tal são insustentáveis! Alude-se à cidadania, à democratização do Judiciário, à oxigenação dos tribunais e/ou à pluralidade de experiência de advogados e membros do Ministério Público.

Não se pode dizer democrática a escolha dos advogados, pois submetida ao desejo de grupo e sob o crivo de número restrito de membros dos tribunais, onde, sabidamente, prevalece o conhecimento pessoal e a amizade (afinal, somos humanos). Em suma, faltam critérios objetivos à escolha de um ou de outro, ao contrário da promoção de juízes, quando se exige produtividade, presteza, frequência e aproveitamento em cursos, etc. O mesmo, inda que eventualmente em grau diferente, se pode dizer dos representantes do MP. E, para coroar tudo isso, o toque final da interferência indevida da vontade pessoal e política do chefe do Executivo que os nomeará.

E a preexistente atuação no juízo de primeira instância, do advogado e do promotor de justiça (futuro procurador de justiça), por si, não os capacita a desenvolverem a atividade judicante em melhor condição que os juízes de carreira. Muito pelo contrário! Pelas regras de experiência comum subministradas pela observação do que ordinariamente acontece, a tendência é a de que estes, pela vivência de anos nas comarcas em que trabalharam, se deem muito melhor. Afinal de contas, tiveram e têm uma vida dentro da magistratura, a defrontarem os percalços diários ínsitos à especificidade da função.

Vê-se, pois, que o quinto não trouxe democratização, nem transparência ou contribuição ao aperfeiçoamento ou agilidade do sistema. Pelo contrário, desembargadores e ministros dele vindos passarão a julgar recursos sem jamais terem colhido provas, presidido a uma audiência ou formado, como julgador, sequer um processo. Tem mais: os contatos com a comunidade também aconteceram sob outro ângulo, que não o da natural e impositiva imparcialidade do magistrado concursado.

Nesse tema, posiciono-me com o atual presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo, José Renato Nalini, no sentido de que a instituição do quinto lembra muito o classista da Justiça do Trabalho. De fato, qual o sentido de se oxigenar a Justiça apenas em segundo grau, permitindo-se a advogados que militam na capital, a fazer seu pé-de-meia, depois de certo tempo, sejam nomeados desembargadores, em prejuízo de colegas juízes que, necessariamente, tendo de enfrentar duro concurso, permaneceram longos anos judicando no interior? Razão alguma!

Privilegia-se a política, feita desde as associações de classe – dos advogados e membros do MP – e a passar, também, por membros a elas alheios, culminando no Executivo. Aos juízes, os de carreira, se dá fazê-lo?

Imagine-se a existência do quinto no Exército: 20% dos cargos de general distribuídos entre pessoas que nunca nele ingressaram. Ou na igreja: 20% dos bispos escolhidos entre leigos.

Isto, a par da perspectiva – mais real do que se pensa – de que, notadamente os advogados, carentes das experiências próprias da judicatura, nem cheguem a ‘vestir a camisa’ da Magistratura.

Em São Paulo, os ‘juízes do quinto’ correm numa linha própria, acelerada. Chegam ao Tribunal de Justiça muito antes do magistrado de carreira – institucionalmente destinado a ser juiz. E logo abrem vaga a outros colegas. E o povo paga a aposentadoria, agora, exigidos só cinco (5) anos de exercício no cargo.

Abstração feita aos bons colegas do quinto (pois os há), esta análise se debruça sobre princípios, que delimitem as coisas e demonstrem, ou não, da razão de ser da continuidade do quinto constitucional.

Em verdade, essa injustificável instituição só serve a referendar jogo político, de poder, de influência e de interesses, não os da Justiça, mas de entidades de classe que acabam por usurpar a atividade própria dos magistrados de verdade. E a situação não muda, relativamente ao MP. Os do quinto chegam aos tribunais em tempo bem inferior àquele exigido dos juízes, e sem a experiência própria da judicatura.

Trocando em miúdos, uma reforma séria acabaria com o quinto. Quando não, ao menos quanto da cessação de vitaliciedade de quem assumiu o cargo sem interferência do povo e sem o indispensável concurso público de provas e títulos. Mas, o tema parece ter virado tabu, a não admitir discussão.

Ser advogado não é ser juiz. Ser integrante do MP não é ser juiz. Quem a isto destinado, por sentir o chamado da vocação, como os demais, que se submeta a concurso público de provas e títulos, igualando-se a iguais na função mesma de julgar, sem atalhos ou cortes de caminho que os possa desigualar. É questão de isonomia, de fundo constitucional!