“Precisamos superar a cultura do machismo”

Frederico Vasconcelos

Sob o título “Quem escreveu essa história?”, o artigo a seguir é de autoria de Amini Haddad, juíza de Direito do Tribunal de Justiça do Estado de Mato Grosso. (*)

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Maria foi morta a pauladas pelo seu marido por tentar se separar dele. Tereza foi sequestrada e mantida em cativeiro por aproximados sete anos. Seu algoz foi um desconhecido que a estuprou e a fez parir filhos da violência. Ana foi estuprada por um coletivo de homens e depois assassinada. Raquel, de 7 anos, vive em um prostíbulo, onde comercializam o seu corpo. Beatriz foi vendida e levada para outro Estado, aos 8 anos, para ser empregada doméstica. Não estuda. Não tem vida de criança. Já Antônia é filha de seu avô, pois sua mãe foi estuprada pelo próprio pai aos 11 anos. Vive abandonada em um orfanato. Todas são histórias reais.

O estupro coletivo da adolescente de 16 anos por 33 homens, semana passada no Rio de Janeiro, coloca-nos a refletir que, mesmo diante de tantas mudanças geradas em todos os períodos da humanidade, continuamos frente às mesmas estruturas de exclusão, como o desvalor cultural do feminino e a hierarquização existencial com a superioridade do masculino. Aterrorizante. Tentei visualizar os 33 homens, um após o outro… Lágrimas nos olhos. Estamos falando de um dos mais perversos crimes da cultura do machismo.

Durante séculos as mulheres foram alijadas do compartilhamento político e instruídas a aceitarem como seu espaço apenas o doméstico. Não precisavam raciocinar. Não precisavam se qualificar para além do bordar, pintar, costurar e gerar um, dois, três, quatro, cinco, 10, 15 filhos. Onde estaria a sua identidade? Quantos períodos históricos ainda serão necessários para que os espaços sociais sejam mais harmônicos? Não temos sequer uma mulher nos ministérios. São muitos os gritos sociais para que o deputado Jair Bolsonaro alcance a presidência. Sua histórica insensibilidade para com as mulheres é detalhada pela mídia, inclusive com referência ao estupro quando pejorativamente se referia à deputada Maria do Rosário. Horizontes sombrios. Ela sequer “mereceria” ser estuprada?

Voltamos a pensar sobre o estupro coletivo do Rio. Assisti ao pronunciamento de várias instituições, às declarações do Ministro da Justiça e da Secretaria de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro. A visão foi reveladora: por mais consideração que eu tenha por todos os honrados homens que se prontificaram a responder ao ocorrido, onde estava a voz de uma mulher?

Precisamos abrandar o abismo do nascer menina e do nascer menino e educar nossos filhos e filhas à convivência de respeito, oportunidades e igual dignidade. Mas o Brasil é destaque no tráfico internacional de meninas e mulheres para exploração sexual e é visto como o país do turismo sexual, que condiciona milhares de crianças como produto consumível. O Brasil é destaque na pornografia infantil, nos crimes de exposição de vingança contra adolescentes e mulheres, no assédio sexual, na violência doméstica e familiar, nas propagandas da mulher-produto, no feminicídio. A realidade é tenebrosa.

No mundo todo, as formas mais comuns de violência contra o feminino são as mesmas do Brasil, além de tantas outras culturais. A mutilação genital feminina, o casamento forçado de uma filha a partir dos cinco anos, os crimes cometidos em decorrência do dote, a violência obstétrica às quais muitas mulheres são submetidas no momento do parto, o estupro de meninas nas tribos indígenas, a seleção pré-natal do gênero (com abortamento dos fetos do sexo feminino), o incesto e tantos outros exemplos são estarrecedores. Compete-nos catalogar também como violência contra o feminino a omissão do Estado no atendimento aos casos de violência contra a mulher, uma violência institucional inibidora do acesso à justiça.

Essa história não é tão somente da contemporaneidade, é a história da humanidade. A diferença é que antes essa realidade era mantida em segredo. Hoje, com os meios tecnológicos que desconhecem fronteiras, tudo vem à tona, de forma tão evidente como a luz do sol, ainda que, por muitas vezes, estejamos diante de muitas brechas camufladas na escuridão da noite.

Com mulheres em pesquisa de mestrado e doutorado, não há mais como silenciar as letras dos livros escritos por tantos filósofos à manutenção da hierarquia existencial entre homens e mulheres, com a superioridade do masculino sobre o feminino.

Kant em The Metaphysics of Morals (Cambridge Edition of the works of Immanuel Kant, 1996) não se diferencia nesses horizontes, condicionando a mulher de forma similar à criança e às coisas. De igual forma, Michelet (Woman, 1867) desenvolve preconceito análogo ao afirmar a inferioridade do pensamento de uma mulher. “As maiores criações artísticas parecem até hoje serem impossíveis a elas. Toda nobre obra da civilização é produto da genialidade dos homens”. Cesare Lombroso (La Femme criminelle et la prostituée, 1896), famoso criminalista, arremata com a suposta inabilidade da mulher para filosofar. Arthur Schopenhauer (Dores do Mundo. O amor. A morte. A Arte. A moral. A Religião. A Política, 1819) acresce que “o simples aspecto da mulher revela que não é destinada nem aos grandes trabalhos intelectuais, nem aos grandes trabalhos materiais. Paga a sua dívida à vida não pela ação, mas pelo sofrimento, as dores da maternidade, os cuidados inquietadores da infância; deve obedecer ao homem, ser uma companheira paciente que lhe torne a existência calma. Não é feita nem para os grandes esforços, nem para dores ou prazeres excessivos; a vida para ela pode decorrer mais silenciosa, mais insignificante”. Já Friedrich Nietsche (Beyond Good and Evil, 1966) não deixa dúvida: “O que é a verdade para uma mulher? Desde o início, nada foi mais alheio, repugnante e hostil à mulher do que a verdade – sua grande arte é a mentira, sua preocupação máxima é a mera aparência e a beleza”.

Estes filósofos e pensadores representam um contexto peculiar a ser compreendido quanto ao patriarcado como sistema social. Hannah Arendt, intelectual incomparável, a meu ver, no mundo dos filósofos, trouxe-nos reflexões sobre as origens do totalitarismo diante das culturas discriminatórias e de exclusão. Com o feminino, não é diferente. Simone de Beauvoir já deixava claro o contexto de sua frase célebre: “Não se nasce mulher, torna-se mulher”. Ela se referia exatamente a essa cultura de desvalorização e apropriação do feminino. Enfim, quem escreveu essa história mesmo?

Tenho absoluta certeza que temos muitos homens valorosos, a grande maioria deles. Afinal, percebem em horizontes suas mães, irmãs, tias, esposas, filhas. Precisamos superar a cultura do machismo. Precisamos, com urgência, de políticas públicas para as mulheres, pois os dados sociais são reveladores. Desequilíbrios vivenciados na família alicerçam relações humanas. Se é injusto o espaço de direitos e deveres no convívio familiar e há desequilíbrios entre filhos e filhas, certamente, assistiremos às mais diversificadas perversões. Temos plantio, temos colheita.

Abracei meus filhos. Lágrimas, dor. Que este abraço possa de alguma forma alcançar essa garota de 16 anos de idade. A nossa humanidade, como um todo, foi atingida.

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(*) Amini Haddad é Diretora da Secretaria de Gênero da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), Professora Adjunta da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) e Coordenadora Científica do Núcleo Vulnerabilidades, Direito e Gênero da UFMT.