Contra o debate fechado sobre novos códigos
Sob o título: “Como deve ser um processo?”, o artigo a seguir é de autoria de Vilian Bollmann, Juiz Federal Substituto da Vara Federal de Execuções Fiscais e Criminal de Blumenau (SC).
Todos criticam as leis processuais. Alguns acham que elas deveriam ser menos formais; outros que elas deveriam ter menos recursos ou mais poderes ao juiz, menos poderes, mais juízes, menos juízes, conciliação, mediação etc.
Há um certo consenso de que o processo, tal como compreendido, deve ser reformado, mas ninguém parece concordar exatamente o quê deve ser reformado e nem como.
Vamos fazer então um pequeno “experimento” filosófico para imaginarmos como seria uma estrutura básica deste processo.
Imagine, caro leitor, que você está lendo este artigo e, de repente, a polícia entra no seu aposento, prende você, levando a uma prisão com a única informação: a sua pena é de três anos de prisão.
Isso seria um justo processo ?
Ainda que não se tenha um conceito exato de Justiça, o sentimento gerado por tal situação é claro e demonstra que o ato seria uma arbitrariedade que ofende qualquer parâmetro, do mais liberal ao mais conservador.
Afinal, sequer sabe-se: por que você foi preso?
Imaginemos, então, que, no ato da prisão, o policial informe: você ficará preso por três anos porque roubou uma pessoa ontem.
Agora, há um motivo, mas isso é suficiente para conferir Justiça à prisão?
Agreguemos, então, um julgamento.
Você é levado a um juiz. Ele olha você e diz: “Não gostei de você. Vá para a cadeia por três anos”. Esta sentença não parece razoável em qualquer Estado contemporâneo.
Vamos trocá-la por uma decisão que pelo menos diga quais são os fatos pelos quais você foi condenado e por que você foi condenado. Ela poderia ser: “Ontem, às 14h30, na Rua Central, você, empunhando uma arma, subtraiu da vítima Fulano da Silva a quantia de R$ 2.000,00. Logo, a sua pena é de seis anos, nos termos do art. 157, §2º, inc. I, do Código Penal, e depois de cumprir três anos, será posto em liberdade condicional”.
Neste ponto, já temos uma acusação e uma sentença (que remete a fatos e ao Direito, ainda que resumidamente).
Porém, o nosso processo ainda é insuficiente.
Quem sabe o direito à defesa não melhora esta estrutura básica? A você é dado um advogado que fala que você é uma boa pessoa, que acompanha a Internet, que tem o signo de escorpião com ascendente em aquário e mais nada.
O processo ainda parece injusto.
Afinal: quem disse que você cometeu este roubo? Isso tem que ser provado. E você não teria o direito a tentar provar que não estava naquele local naquele dia com alguma testemunha que confirme que você estava na casa de outra pessoa? Como chamar esta testemunha, que pode não querer ir à Justiça? Você não teria o direito de pedir que obrigassem este seu amigo a vir dizer a verdade ? E se alguém mentir – um inimigo seu ou alguém da polícia que queira confirmar a estória da prisão – , não deveria haver uma pena contra ele?
Parece lógico e razoável, portanto, que o processo deva começar com alguma acusação formal contra você, dando-lhe um certo tempo para procurar um advogado, elaborar a defesa (ligada aos fatos e não algo apenas para constar), pedir que sejam ouvidas algumas testemunhas ou outras provas e que elas sejam submetidas a algum contraditório. Por fim, que o processo tenha uma sentença que mencione os fatos considerados verdadeiros e o direito aplicável. E, considerando que juízes, advogados e promotores são humanos e podem errar, que haja, ainda, o direito a pelo menos um recurso contra a sentença, para que outro juiz (ou juízes) re-examinem o processo para confirmar ou corrigir a sentença.
Acusação, direito à defesa, direito à prova, julgamento racional com base nos fatos e na lei e possibilidade de um recurso. Tudo isso configura uma espécie de “mínimo essencial do processo” sobre o qual poderíamos acrescentar outras camadas – que não são supérfluas, mas sim aprimoramentos adicionais, como uma estruturação de defensorias dativas, direito a recursos contra decisões que não sejam a sentença etc.
Os aprimoramentos ao “mínimo essencial do processo” podem, ou não, ser considerados importantes pelo legislador, num juízo de valor político sobre a oportunidade e conveniência de medidas que possam de um lado retardar o processo, mas de outro, aprimorar a segurança do cidadão.
Se este “processo-modelo mínimo” pode ser aplicado às ações criminais, em que o réu pode perder a liberdade, também pode para as ações cíveis, em que o réu irá, no máximo, perder patrimônio. Se pode o mais, pode o menos.
Isso leva a várias outras perguntas.
Uma série delas indaga sobre as prioridades que a legislação processual deve atingir. Afinal, qual a finalidade do processo ? Ele tem que ser rápido? Ou seguro? O que é rapidez? Um ano, dois anos, um dia, um mês?
Quanto ele deve custar? Deve ser gratuito para todos? A gratuidade não geraria milhares de ações (paradoxo da praia: ela é bela, porque é vazia e exclusiva, mas por ser bela, atrai gente e deixa de ser vazia)? Quem deve ter prioridade? Só o idoso? O menor? Réu preso? Mandado de Segurança? Direito à saúde? Mas se tudo é prioritário, o resultado não seria que nada será prioritário?
Superados estes questionamentos e definidas as finalidades, surgem as perguntas sobre o modo-de-ser do processo que melhor atenda aos objetivos: é necessário que todo processo possa subir até o STJ e o STF? Brigas de vizinhos, ladrões de galinhas, discussões tributárias sobre valores inferiores a certa quantia e outros processos precisam mesmo encher as prateleiras dos tribunais superiores? Será que são necessários recursos extras para que o juiz esclareça sua sentença (embargos), para unificar o entendimento no Brasil inteiro (Recursos Especial e Extraordinário no STJ e no STF) quando a realidade do interior do Amazonas é diferente do centro urbano de São Paulo? Ou isso é característica de uma “Federação no papel, mas Estado Central na prática”? Por que não estender o depósito recursal dos processos trabalhistas para os processos cíveis? Será possível que os desembargadores nas capitais podem examinar melhor as provas do que o juiz de primeiro grau, que ouviu as testemunhas olho no olho e conhece melhor a realidade da comarca do interior onde proferida o julgamento? Neste caso, não poderia o recurso ser apenas com relação às matérias de direito ou contra julgamentos totalmente contrários às provas dos autos (como no caso dos julgamentos do Júri popular), ou seja, se a interpretação dos fatos que o juiz se ampara nas provas dos autos e não é manifestamente errada, não seria mais razoável que fosse privilegiada a visão de quem teve contato imediato com as provas?
Se olharmos com atenção a Constituição de 1988, o processo-modelo, simples, célere, praticamente oral, mas com observância de princípios (regras) fundamentais – contraditório, ampla defesa, assistência jurídica etc. – está previsto, em linhas gerais, no art. 98 e foi detalhado na Lei 9099/1995, ainda que, na prática, em alguns locais, ele tenha sido interpretado e aplicado como o antigo Código de Processo Civil e Penal.
Além disso, há diversos países que praticam modelos processuais verdadeiramente orais, aplicando versões deste “processo-modelo mínimo essencial”.
O mais importante é decidir quem fará estas escolhas fundamentais sobre os valores que devem reger o processo e sobre a forma de ser dos ritos processuais. Tradicionalmente, as escolhas têm recaído apenas sobre o Legislativo a partir de estudos vindos da Academia e pressão de grupos organizados. Nem sempre a lei imaginada pelos professores da academia será a mais adequada, pois aquilo que parece ideal no papel, não se converte, na prática, em avanço real. Os grupos de pressão, como Advocacia e Tribunais Superiores (que tem mais força política dentro do Judiciário: http://ajusticaodireitoealei.blogspot.com/2011/09/o-stf-em-questao.html), têm experiência para apresentar, mas também defendem interesses seus.
Não é por outro motivo que as propostas fundamentais apresentadas pela OAB foram as relacionadas aos honorários dos advogados (vide http://www.oabrs.org.br/noticia_ler.php?id=9171, ,http://www.oabms.org.br/noticias/imprimir/7886/oabms-entrega-propostas-dos-advogados-ao-relator-do-projeto-do-novo-cpc.html e http://www.juspodivm.com.br/noticias/noticias_1018.html).
Aliás, foram curiosas as reações à Proposta de Emenda Constitucional que acabaria com a prática das quatro instâncias recursais e daria uma celeridade ao sistema judiciário, pois as críticas, feitas por quem está imerso no mundo jurídico, venceram a pressão social pela celeridade (Para o tema, com as informações não apaixonadas pelo tema, veja-se http://www.advivo.com.br/node/468145 e http://colunas.imirante.com/platb/alexandrefreire/2011/05/09/pec-ministro-cezar-peluso/).
O exame dos projetos de novos códigos processuais (CPC e CPP) em andamento no Congresso revelam “mais do mesmo” com pequenas alterações pontuais que não resolverão o problema do Judiciário e nem representam verdadeiras reformas processuais (que, aliás, vem sendo feitas desde 1995 e não alcançam os resultados prometidos justamente porque nada mudam de significativo). Isso não é algo novo, pois em 2006 já era previsto que as reformas então praticadas eram insuficientes (para ler uma versão mais sucinta: http://jus.com.br/revista/texto/8351/mais-do-mesmo)– o que, infelizmente, se confirmou, passados anos das reformas.
Talvez o ideal seja apresentar estas questões à Sociedade para que discuta, reflita e decida sobre estas escolhas, calibrando o ajuste fino entre segurança, eficiência e justiça nos procedimentos. Um instrumento interessante seria a aplicação de plebiscitos (art. 14, I, da Constituição), com consultas anteriores à elaboração dos Códigos.
Evidentemente que existem aspectos jurídicos que devem ser resguardados (tais como o “processo-modelo mínimo”) e outros que, por constituírem Direitos Fundamentais, não podem ser objeto de consulta plebiscitária (sobre o aspecto contramajoritário de certos temas constitucionais, veja-se http://ajusticaodireitoealei.blogspot.com/2012/02/poder-ou-dever-de-desagradar.html).
A reflexão sobre estes temas permite vislumbrar que a nossa prática de elaboração e discussão de códigos, fechada nos grupos de interesse ligados ao mundo jurídico, não dialoga com os valores da Sociedade, levando a criar grandes distâncias entre aquilo que poderia ser um justo e rápido processo daquilo que de fato é o processo real. Talvez a exposição pública destes temas possa revelar quem está interessado em manter as coisas no estado em que estão e quem realmente quer celeridade e um processo penal ou civil que funcionem.
Fred de acordo com as pesquisas tem 164 países que tiveram a Justiça considerada de melhor qualidade do que a nossa. A Alemanha é considera a melhor do mundo. Acho que não precisamos começar do vácuo intelectual para modificar os nossos códigos que são considerados nacional e internacionalmente inadequados. Assim como na Tecnologia (por exemplo) podemos contar com o conhecimento, com a pratica e com a experiência acumulada no Mundo quanto a Justiça, para aprimorar a nossa. Podemos receber diferentes contribuições para melhorar os nossos Códigos. Hoje os nossos Códigos são tão ruins que melhorá-los não devera ser tarefa difícil. Portanto, mergulhar na tarefa de modifica-los é urgente porque o Governo Não pode retardar mais para dar segurança juridica aos seus cidadãos. Não esquecer que o Poder Judiciário é o alicerce da Democracia.
Oportuna a lembrança de Marco Aurélio (“O Processo”, de Kafka) E concordo com a frase final de José Roberto: o artigo é muito provocante. Mas acho também longo.Tem méritos didáticos, porém resvala no proselitismo tão frequente em sentenças e análises, em especial nos tribunais superiores onde juizes levam meses para dar vistas em processos. O articulista,de saber jurídico inegável e demonstrando sensibilidade social, não oferece sugestões mais precisas que, de uma vez por todas, faça da nossa Justiça uma instituição mais equilibrada, menos custosa, sem excessivas diferenças trabalhistas (férias de 60 dias) e principalmente mais agil, mais rápida. Essa histórica lerdeza não pode continuar. O julgamento recente de uma ação que tem 50 anos é um disparate.
Caro Alfredo,
Você tem razão quando diz que este artigo não sugere alterações mais específicas para acelerar o processo.
É que a intenção principal dele era ser uma provocação filosófica para questionar o fechamento da discussão em grupos restritos, apontando diversas nuances que normalmente não são pensadas quando da elaboração de soluções processuais. A idéia de um “processo-modelo mínimo” ou “mínimo essencial do processo”considerado como justo é um instrumento para, a partir dele, ser pensada uma nova forma de procedimento que, inserido num contexto maior de mudanças, possa aprimorar o Judiciário.
Não obstante, o texto sugere, ainda que resumidamente em algumas passagens, algumas possibilidades, como [1] a PEC dos Recursos (atualmente parada no Congresso); [2] a generalização do rito dos juizados para as ações individuais; [3] a adoção concreta da oralidade; [4] a simplificação das sentenças; [5] a universalização do depósito recursal; [6] a redução da análise dos fatos pelos Tribunais de Apelação, etc.
Além disso, é feita referência a outro artigo meu (http://jus.com.br/revista/texto/8351/mais-do-mesmo), no qual há outras sugestões, como a [7] simplificação dos ritos com [7.1] adoção apenas do rito sumário documental, no mandado de segurança, [7.2] do rito dos juizados para ações individuais e [7.3] ritos coletivos com democratização deste e colocação em prioridade nos Tribunais sob pena de trancamento de pauta (como hoje ocorre no legislativo com as Medidas Provisórias); [8] ampliação do “contempt of court”; [9] juros progressivos nas condenações de sucumbência; [10] adoção do sistema de “Michigam” com sanção pela não aceitação de soluções arbitradas razoáveis; [11] simplificação das petições iniciais com quesitação dos fatos, etc.
No processo penal, outro artigo meu, mais recente, sugere [12] a modificação do sistema de Transação, previsto na lei 9099/95, para um modelo que seja um meio termo entre o atual e o instituto do “plea bargain” norte-americano (http://ajusticaodireitoealei.blogspot.com.br/2012/03/algumas-consideracoes-iniciais-sobre-o.html).
De qualquer forma, estas medidas, por si só, não resolveriam todos os processos.
Primeiro porque a legislação processual é apenas uma parte do problema, sendo necessário pensar nas formas de administração dos procedimentos burocráticos, ampliação de estrutura cartorária, treinamento e seleção de servidores, etc.
Segundo, porque a cultura jurídica brasileira ainda é influenciada por diversos fatores históricos e sociológicos que privilegiam o formalismo (sugiro a leitura do ótimo livro do brasilianista ROSENN, Keith S. O jeito na cultura jurídica brasileira. Rio de Janeiro: Renovar, 1998.).
Terceiro, a Sociedade Brasileira está repleta de injustiças sociais e econômicas que aportam no Judiciário e este, infelizmente, não tem condições de ser o agente responsável pela solução de todos os problemas – pode ajudar ou piorar, mas não resolver sozinho.
E, ainda, porque, em nenhum país do mundo, a Justiça anda tão rápido quanto deseja o coração humano; é impossível atender de forma imediata todas as pretensões.
Enfim, a intenção não era apontar uma solução fácil ou rápida para os problemas (que não creio que exista), mas sim explicitar que as sucessivas reformas que pouco mudam a forma de pensar o processo continuarão a produzir o mesmo resultado de sempre, pois não estão abertas às transformações que a Sociedade aparentemente exige. E digo “aparentemente” porque não existe um amplo debate sobre quais valores devem preponderar (segurança e velocidade) e nem sobre a forma como esta relação de preponderância servirá para estruturar o processo e os ritos processuais brasileiros.
De qualquer forma, fico à disposição para outras sugestões ou debates sobre o tema: vilianbollmann@yahoo.com.br e http://ajusticaodireitoealei.blogspot.com.br/
Cordialmente,
Vilian Bollmann
“O Processo”, de Kafka… Nem tanto ao céu, nem tanto à terra. Fazendo um paralelo: quando o País fez a Carta de 1988, o medo do “Estado de fato” (em contraposição ao Estado Democrático de Direito) era tão grande que os constituintes deliberaram sobre direitos civis, penais, trabalhistas, previdenciários etc etc etc…
Da mesma forma, é preciso que o Código de Processo (seja civil, seja penal, seja o que for) tenha previsões genéricas e suficientes à garantia de equilíbrio da relação processual. O legislador não pode esquecer que existem o Judiciário, o Ministério Público, as Procuradorias, as Defensorias e os Advogados, todos com deveres processuais — ou seja, a lei não pode e não precisa prever tudo. O caso concreto é resolvido de acordo com suas peculiaridades consoante o gabarito fundamental fixado. Tudo o mais é excrescência ou discurso panfletário (não me refiro ao post acima, refiro-me aos costumeiros desencantos manifestados nos processos quando o juiz decide).
Interessante!
Penso, porém, que em virtude da extensão territorial absurda do Brasil e por que “a realidade do interior do Amazonas é diferente do centro urbano de São Paulo”, para cujas situações serão aplicadas as mesmas Leis Fundamental e/ou Ordinárias, e tendo em conta que um jovem de 12, 13 ou 14 anos de idade, residente no interior dos Estados do Amazonas…, podem facilmente serem considerados Crianças, enquanto outros, de idades semelhantes, nascidos e criados por família moradoras em bairros como Ipanema-RJ, Morumbi-SP, Pampulha-BH, poderiam (se a lei os permitisses) ir e voltar facilmente sozinhos duma viagem ao Rio Xingu, pondero, “data venia”, que não devemos prescindir do postulado da segurança jurídica em favor duma pretensa celeridade processual, em virtude dos males que isto pode acarretar, sobretudo em face das pessoas-famílias mais indefesas da Nossa sociedade tão desigual material e culturalmente.
Entretanto, o artigo é muito provocante, motivos pelos quais merece os parabéns!!