AGU versus AGU em ação cível no Supremo

Frederico Vasconcelos

Sob o título “AGU versus AGU”, o texto a seguir é de autoria do juiz federal Roberto Wanderley Nogueira, de Recife (*).

Irresignado com a “simetria” entre Ministério Público e Magistratura inscrita, bem ou mal, no sistema jurídico pela Resolução nº 133/11, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o Advogado-geral da União (AGU) impetra uma Ação Cível Originária perante o Supremo Tribunal Federal (ACO n° 1.924), sugerindo a inconstitucionalidade remota daquela Resolução e a imediata de outras Resoluções no mesmo sentido que foram editadas pelo Conselho da Justiça Federal, pelo Tribunal Superior do Trabalho e pelo Superior Tribunal Militar, aos quais chama a compor o pólo passivo da respectiva actio.

Pois bem. No mínimo a inicial terá de ser emendada do ponto de vista processual, mesmo desde a sua admissibilidade. É que, tratando-se de ação comum, embora vertida na jurisdição privativa do STF, deixou a parte autora de indicar, adequadamente, o pólo passivo dessa mesma relação em que deverá contender. De fato, nenhuma das entidades públicas precitadas na exordial detém capacidade processual para figurar em juízo (legitimação passiva para a causa), nos termos do Código de Processo Civil (art. 7º: Toda pessoa que se acha no exercício dos seus direitos tem capacidade para estar em juízo). Tanto o CJF, quanto o TST e, ainda, o STM, convolados a figurar na causa como demandados, não são dotados de personalidade jurídica própria, tratando-se de meros setores internos (entidades despersonalizadas) da Administração Pública Direta da União.

Ademais, a União/AGU se esforça por dissimular a verdadeira destinação da propositura, que é o CNJ (Resolução nº 133/11), também ilegítimo para o tipo de propositura empreendida. Com efeito, sobre o CNJ, há de se observar, é também desprovido de capacidade processual para figurar em Juízo, ativa ou passivamente. Todos os entes administrativos despersonalizados cravados pela União como parte ré, na realidade, são ela mesma, a própria União. Logo se vê uma clara disparissonância na polarização da causa, hipótese que é inteiramente inadmissível em Direito Processual, enquanto categoria científica, e na dinâmica do exercício do direito subjetivo público de ação.

Se o AGU quisesse realmente resolver o problema, tendo em vista que a tal Resolução é mesmo inconstitucional, porque institui benefícios e vantagens ao arrepio da Lei (embora se baseie em outras tantas ilegalidades – não há “simetria” entre termos igualmente ilícitos, aspectos que, evidentemente, deverão ser tratados, em definitivo, pela Suprema Corte), deveria proceder da seguinte forma: 1) Demandar na relação AGU X União; 2) Estabelecer, antes da demanda, uma diretriz administrativa (interna) para fixar os operadores que haveriam de assumir os respectivos papeis, responsabilidades ontologicamente distintas no processo a propor, ainda que no âmbito da mesma entidade (juridicamente personalizada), porque não parece fazer o menor sentido que o AGU, em pessoa, subscreva a petição inicial para, logo em seguida, receber a citação em nome da União que representa no feito por ele mesmo deduzido. Stanislaw Ponte Preta chamaria isso de “Samba do Crioulo Doido”.

Considero esses fundamentos inteiramente destrutivos dos movimentos institucionais e corporativos em curso, desde a propositura em exame à ruidosa resistência que da parte dos Juízes já se vem observando em larga escala. Constata-se, no entanto, que essa reação está associada assim à pressão pelo quadro de compressão vencimental de anos da Magistratura Nacional quanto à constatação das distorções do tipo que se seguem ativadas na República sem solução de continuidade.

A confusão conceitual e jurídica da parte passiva na propositura do AGU perante o STF tem de ser varrida do processo desde a sua admissibilidade, pena de restarem precarizados os fundamentos da ação e o desenvolvimento válido e regular do processo, haja vista que o Direito não tolera antinomias, no sentido de Norberto Bobbio.

(*) O autor é Doutor em Direito Público, Professor-adjunto da Faculdade de Direito do Recife e da Universidade Católica de Pernambuco

Comentários

  1. Prezada Ana Lucia, se aos integrantes da AGU faltaram conhecimentos de direito processual (afirmação falsa dadas as justificativas já apresentadas pela própria AGU e pelo Marco Antonio), aos integrantes do CNJ (e aos magistrados que defendem o ato questionado) faltaram não somente conhecimentos de direito constitucional e administrativo, mas PRINCIPALMENTE, conhecimento de ética cidadã.

  2. Marco Antonio,
    A jurisprudência tem admitido apenas excepcionalmente a presença de órgãos no polo ativo da relação processual, com o condão exclusivo de defesa de suas prerrogativas institucionais. No caso, a AGU colocou órgãos da União na posição de réus, a fim de tentar reduzir direitos reconhecidos pelo CNJ a toda magistratura nacional, numa disfarçada tentativa de realizar o controle abstrato de atos normativos infralegais.

  3. O articulista se deixa levar pela regra geral de que a capacidade processual corresponde à personalidade jurídica, e desconhece o fato de que a jurisprudência constitucional vem admitindo há tempos a capacidade processual de órgãos da União que detenham prerrogativas autônomas, isoladas de controle hierárquico no âmbito administrativo: os Tribunais de Contas, as casas do Congresso Nacional, etc. A representação em juízo desses órgãos, contudo, é atribuição da mesma AGU (art. 131 da Constituição), razão pela qual a solução que vem sendo utilizada já há algum tempo é a designação ad hoc de Advogado da União para defender o órgão. A experiência tem sido exitosa e tem proporcioando a defesa técnica e adequada desses órgãos com a economia gerada com o fim do hábito de contratações milionárias de bancas de advocacia privada por entes cuja defesa é constitucionalmente reservada a uma instituição pública, tal como a AGU. Com a d.v., portanto, há que se lembrar que o processo civil não se encerra nos manuais de graduação, que é apenas um ponto de partida. Em um campo cheio de nuances como a jurisdição constitucional, as questões ganham em complexidade e as soluções alcançadas pela prática e pela jurisprudência pela são mais ricas e complexas do que podem supor os que não enfrentam essas atividades em seu quotidiano profissional.

    1. De qualquer forma, é a União em juízo contra a União. Isso é inescapável. A AGU, por decisão própria, decide ajuizar ação em face dos órgãos encarregados de administrar o Judiciário e contra um atos administrativos por estes praticados. Imaginem se a AGU proporia semelhante ação contra o pagamento de jetons para Ministros que integram conselhos de administração de empresas e fundos de previdência… Aliás, segundo matéria jornalística, é o caso do próprio Advogado-Geral da União… Evidentemente, trata-se de usurpação da função constitucional do Ministério Público.

      1. São dois pontos relevantes aqui levantados. O primeiro deles, relativo à postura da AGU diante de irregularidades nas remunerações pagas a figuras influentes do Poder Executivo. Para que se afaste dúvidas quanto a eventual seletividade na escolha das ações a serem encampadas pela Advocacia-Geral da União, o ideal seria dotar a Instituição de um isolamento maior face ao Executivo. Pois se é verdade que os Advogados da União têm independência técnica em sua atuação, de outro lado os cargos administrativos, o orçamento, e os meios da Instituição são todos controlados pelo Presidente da República. A previsão de mandato fixo, combinado a controle do Congresso Nacional para o ato de exoneração do Advogado-Geral da União já contribuiria para uma atuação livre de suspeitas quanto à isenção do órgão. Já no último ponto levantado – a de que a hipótese representaria usurpação de função constitucional do Min. Público – tenho de divergir. Observe-se que o interesse representado é tipicamente estatal, pois diz respeito à defesa do erário. Nesse campo, a atribuição da advocacia pública é primária e a do MP apenas residual, ainda assim segundo construção jurisprudencial. Mas o fato último é que, em um Estado com o desenho Constitucional brasileiro, onde o Executivo tem uma preponderância manifesta, a sociedade se beneficia da existência de instâncias múltiplas de controle, com competência eventualmente concorrente (mas não superposta) e dotadas de instrumental adequado para desempenhar esse papel.

        1. Marco, fui procurador federal e tenho muitos amigos na AGU. Mas aqui acho que há uma pretensão velha e uma doutrina nova, essa de que a atribuição do MPF no caso é residual e que cabe à AGU postular em Juízo contra atos administrativos da União. Perdoe-me, mas é nítida a pretensão de agigantar a AGU, para abarcar atribuições do MP.

          1. Prezado Marcello: e o MP, agiu nesse caso? Não agiu, porque isso iria de encontro a seus interesses corporativos, em muito assemelhados aos da magistratura judicante. É por isso que me parece que em um Estado administrativo “gigante” – a expressão é essa mesma – como o que temos no Brasil, com diversas instâncias decisórias isoladas de controle hierárquico (peculiaridade essa que levou a que o STF reconhecesse capacidade processual autônoma aos entes despersonalizados), é melhor que sobrem legitimados para desencadear o controle judicial de atos administrativos do que faltem. E tem razão: acabamos, de fato, tendo uma advocacia pública gigante, um MP gigante, e um Judiciário gigante. Ou não? A questão é a seguinte: em um cenário em que o Executivo tem muito poder, isso me parece bom, e não ruim. De resto, a doutrina que permite aos representantes judiciais do Estado a postulação de nulidade de atos administrativos, em contrariedade ao gestor, não é nova: ao menos desde a regulamentação da ação popular ela está presente no direito brasileiro. Se a advocacia pública, criada como ente separado do MP a partir de 1988, tem condições institucionais para exercer essa função de modo efetivamente independente, e me parece que foi esse, a propósito, o seu questionamento inicial, bem, aí são outros quinhentos.

    2. Retificando parcialmente o comentário acima: o dado que o autor deixa de informar não está no reconhecimento de capacidade processual a entes despersonalizados, mas antes no fato de que o Advogado-Geral da União (chefe administrativo da instituição) não atua nos dois pólos do processo que envolve distintos órgãos da Uniãop ou a União contra um de seus órgãos. Em tais casos, a defesa do órgão é feita por Advogado da União designado para o encargo, com fundamento no art. 22 da lei nº 9.028/95. Assim, a diretriz interna cuja falta é lamentada no texto na realidade existe e é aplicada, de maneira que o processo flui normalmente sem quaisquer embaraços operacionais.

    3. Advogado da união ad hoc? Como é isso? Advogado da união não integrante da carreira? Ora, Marco Antônio, a jurisprudência que você mencionou se aplica quando há conflito entre poderes, no que tange às suas prerrogativas (p. ex., não repasse de verbas pelo Executivo ao Legilsativo). Qual o conflito entre Poderes na espécie? Tanto não há esse conflito que a AGU não entrou contra o CNJ. Aliás, isso é muito estranho, mas para quem sofre de transtorno de dupla perosonalidade, com a AGU, isso pode parecer normal….

      1. Prezado Carlos Eduardo: Trata-se de Advogado da União concursado e integrante da carreira. Fala-se em nomeação “ad hoc” porque, segundo a LOAGU, em princípio a representação da União no STF deveria ser feita apenas pelo Advogado-Geral da União (que é o chefe da Instituição). O legislador deve ter imaginado, à época, que a União teria uns dois ou três recursos extraordinários por ano na pauta do Supremo… na prática, mesmo essa atuação tem de ser normalmente delegada a outros Advogados da União, porque uma pessoa simplesmente não teria condições de lidar com tal volume de trabalho. Assim, para concluir, a nomeação – que é amparada também em lei, o art. 22 da Lei nº 9.028/95 – se diz “ad hoc” apenas para marcar a especialidade em relação à competência ordinária do Advogado-Geral da União, na forma do art. 4º, III, da LC 73/93.

  4. Os integrantes da AGU parecem que foram beneficiários por vários cursos jurídicos, ministrados pela escola na qual um dos ministros do STF é um dos proprietários.Acho que faltou curso sobre normas gerais de processo, tais como regras sobre a definição da capacidade ativa e passiva das partes, de acordo com a natureza do pedido.

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