Direito e “rock”: instrumentos de contestação

Frederico Vasconcelos

Sob o título “A postura contestadora do Rock n’ Roll na atuação jurídica”, o artigo a seguir é de autoria de Mauro da Fonseca Ellovitch, Promotor de Justiça, Coordenador Regional das Promotorias de Justiça de Defesa do Meio Ambiente das Comarcas Integrantes da Bacia do Alto São Francisco.

Ouvindo “And Justice for All” do Metallica enquanto lia uma reportagem sobre a prescrição de um processo contra um conhecido deputado, comecei a pensar no quanto o inconformismo e a vontade de mudança, tão presentes no Rock n´ Roll, fazem falta a alguns operadores do Direito. Com todo o respeito aos demais gêneros musicais, nenhum outro aborda questões sociais de maneira tão crítica e superadora de paradigmas quanto o rock.

Não me levem a mal: quando digo que os juristas deveriam incorporar em sua atuação o “espírito do rock”, não me refiro ao comportamento hedonista e, por vezes, autodestrutivo dos músicos.

Ninguém está sugerindo que um Juiz de Direito deva destruir uma sala de audiências como um roqueiro faz com um quarto de hotel. Refiro-me aos valores e pensamentos contestadores que são a essência do verdadeiro rock.

Desde os primeiros acordes de Elvis Presley, o rock foi visto como algo “diferente” e ofensivo ao status quo. O mesmo pode ser dito em relação aos Beatles e aos Rolling Stones com a representação das idéias e aspirações dos jovens do “pós guerra”; a Bob Dylan com sua poesia cantada e sua música de protesto; a John Lennon com sua defesa intransigente e criativa da paz; ao Festival de Woodstock; à mudança comportamental representada pelo Led Zeppelin e pelo The Who; bem como aos vários gêneros do Heavy Metal e sua expressão da frustração com a pobreza, as guerras e a inaptidão para adequar-se a padrões impostos. Todas estas encarnações do rock contribuíram (e contribuem) para profundas mudanças comunitárias, algumas vezes de forma mais rápida, outras de maneira lenta e gradual.

Quanto ao Direito, a evolução histórica foi bem diferente. Inicialmente pensado como um meio de controle e regulamentação da vida em sociedade, o sistema legal já desempenhou os mais diversos e contraditórios papéis. O Direito já serviu para evitar a imposição unilateral da força nas sociedades primitivas; foi instrumento revolucionário para limitar os poderes dos reis absolutistas; garantiu o reconhecimento de ideais libertários iluministas através da Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão; permitiu o acesso de todos à participação política; serviu para punir aqueles que cometeram crimes contra a humanidade. Porém, o Direito também foi utilizado para institucionalizar a violência, para legitimar sistemas fascistas e totalitários, para proibir a livre expressão do pensamento e, sobretudo, para assegurar interesses de quem controla o poder político e econômico.

No Brasil atual, a Constituição Federal de 1988 é o coração de nosso ordenamento jurídico. E é uma ótima Lei Fundamental, pelo menos em tese. Nossa Constituição estabelece uma ampla gama de garantias à liberdade individual, à busca da Justiça social e à realização dos direitos da coletividade.

Fica até difícil acreditarmos nisso em meio aos escândalos de corrupção, às crescentes desigualdades sociais, à ineficácia dos sistemas de saúde e educacional e à sensação generalizada de insegurança e impunidade. E é aí que volto ao ponto principal deste artigo: somente com uma visão do direito como instrumento de contestação e de transformação social poderemos, finalmente, efetivar todo o potencial de nossa Constituição Federal.

O operador do Direito (seja Juiz, Promotor de Justiça, Advogado ou Delegado) não pode concordar em ser apenas mais um burocrata. Não pode aceitar que “as coisas são assim mesmo” ou buscar as saídas mais fáceis para encerrar um processo. Não deve apegar-se às formalidades acima do conteúdo social. A indiferença e o desinteresse não podem ser opções. Deve lutar, questionar e opor-se às injustiças, mesmo que seja criticado por quem deseja a perpetuação do quadro atual. Deve, enfim, adotar uma postura mais “rock n’roll” em sua atuação.

Muitos juristas produzem peças jurídicas similares a uma ópera: algo muito belo e rebuscado, formalmente perfeito, que agrada a quem tem maior poder aquisitivo, mas inacessível à maior parte da população. Outras decisões judiciais assemelham-se a algumas canções sertanejas: popularescas, superficiais e lamuriosas diante das dificuldades.

Seria, socialmente, muito mais interessante se as sentenças fossem tão diretas e impactantes quanto uma música do Rage Against The Machine. Um Direito com a essência do rock buscaria amparar as minorias e os economicamente excluídos (“Chimes of Freedom” de Bob Dylan), rechaçar a alienação (“Smells Like Teen Spirit” do Nirvana), acompanhar mudanças de comportamento ao invés de resistir a elas (“My Generation” do The Who), opor-se à insensatez das guerras (“War Pigs” do Black Sabath), deixar de privilegiar os interesses dos setores economicamente mais fortes para atender aos verdadeiros anseios da população (“American Dream Denial” do System of a Down), proteger o meio ambiente contra a exploração predatória (“Blackened” do Metallica), defender princípios (“Pride” do U2).   A letra do Motörhead “Just cos’ you got the Power, That don’t mean you got the right” (“Só porque você tem o poder, não significa que você tem o Direito”) deveria ser o mantra de Juízes e Promotores de Justiça em processos contra políticos corruptos e criminosos de elevado poder aquisitivo. Estes juristas teriam a coragem de buscar um tipo de revolução pacífica (“Revolution” dos Beatles), mesmo diante de eventual resistência, ao invés de contentarem-se com uma retórica elaborada e estéril.

Tenho ciência de que minhas palavras podem soar ingênuas ou “fruto da juventude”, como os apáticos e conformistas rotulam aqueles que ousam pensar de forma diferente. Contudo, a exemplo dos Rolling Stones, pretendo continuar dizendo “I can’t get no satisfaction” (“não consigo obter satisfação”) aos 68 anos de idade. È muito melhor do que a aceitação passiva das injustiças perpetradas pela não aplicação dos princípios constitucionais. Por fim, faço coro a John Lennon: “Você pode dizer que eu sou um sonhador, mas não sou o único. Espero que, um dia, você se junte a nós e o mundo será um só” (“Imagine” – 1971).

Comentários

  1. Nesse quesito, Bezerra da Silva supera qualquer rock star. Sua crítica contundente ao sistema judicial e legal oficial é, além de tudo, fruto de sua vida, constantemente marcada pelos estigmas e estereótipos que perseguem a vida de negros e pobres, moradores de favela, no Brasil. Suas dezenas de prisões para averiguação mostram que a crítica nos atinge em cheio, já que fala da nossa realidade social, das misérias da sociedade brasileira.

  2. Achei o texto muito bom, primeiro por ser fã de rock e, depois, por realmente ser necessária a postura de inconformismo em algumas situações; de ironia, de ter vontade de modificar o status quo, de não se satisfazer com a passividade, de simplesmente seguir ou, no caso, de ouvir o que está na moda.
    Lembrei do mundo previsto por Orwell em seu livro 1984, onde a música é fabricada, insípida, sem lógica, com a finalidade simplesmente de fazer a vida da população passar, sem pensar, anódima mesmo.
    A mesma postura é vista em algumas manifestações dos juristas, fazendo apenas o direito passivo, despido de qualquer sentido maior.
    E para continuar com as situações de rock, vou de Renato Russo: Às vezes parecia que, de tanto acreditar
    Em tudo que achávamos tão certo,
    Teríamos o mundo inteiro e até um pouco mais:
    Faríamos floresta do deserto
    E diamantes de pedaços de vidro.

  3. Texto exemplar. Partilho das mesmas opiniões do colega. É só ter vocação. Quem gosta do Direito age como os músicos citados. Parabéns pela forma muito inteligente de mostrar que é possível melhorar nossas atividades, serviços e funções. Tomara que seu exemplo contamine os desanimados e preguiçosos e, acima de tudo, sirva de alento para os abnegados. Muito bom mesmo!!!

  4. O texto do Ilustríssimo representante do MP,
    mostra como é imperativo a contemporaneidade arejar a Justiça brasileira,parabéns.
    Paracatu sente saudades de Dr Mauro.
    solano meireles.

  5. Fiquei mt emocionada com sua sensibilidade. Sou apaixonada por rock n’ roll e estudante de direito, e uma das coisas que, com certeza, me levou ao direito foi justamente minha incapacidade de aceitação das coisas tal como são. Parabéns e obrigada por esse presente.

  6. Para fazer jutiça não é necessário haver revolução. Fazer justiça é tão simples como beber um copo d’água.
    O provlema é que os bons não se inserem nesse sistema. Preferem sua vida simples e calma a ter que se envolver com crápulas que tem um tesão enorme por dinheiro e poder e não medem consequências dos seus atos.
    Essa baderna só existe porque nós deixamos. Somos tão culpados e “cachoeiras” quanto eles. Somos fracos demais.

  7. Atuar como propõe o articulista, não deveria ser considerado “contestação”, mas a prática da justiça , que é possível extrair das leis.
    O que há é muita preguiça escondida em aparente juridicidade. Cita-se um artigo de lei,mais para se esconder.As leis processuais podem ser escudos de juiz, promotor e advogado poucos entusiastas do trabalho responsável.

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