O desprezo pelos princípios republicanos

Frederico Vasconcelos

“Nenhum agente público deve ser contra a exigência de prestação de contas”

Sob o título “A República do ego”, o artigo a seguir é de autoria de Giordane Dourado, Juiz de Direito do Estado do Acre (*).

Os brasileiros tiveram de fazer uma escolha curiosa em 21 de abril de 1993. No mesmo ano em que o então Ministro da Fazenda Fernando Henrique Cardoso anunciou o Plano Real, Bill Clinton tomou posse como o 42º presidente norte-americano e ocorreram as chacinas da Candelária e Vigário Geral, o povo foi convocado a opinar se continuaria com o regime republicano ou retornaria aos salões nobres da monarquia.

Foi o famoso plebiscito legado pelo artigo 2º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, o qual também indagou ao povo se deveria continuar no sistema presidencialista ou instituir o parlamentarismo.  Os eleitores, acostumado apenas com as majestades de Pelé e Roberto Carlos, votaram pela permanência da república (86,6% dos votos válidos) e do presidencialismo (69,2% dos votos válidos).

Os mais entusiasmados e otimistas com o resultado da consulta popular poderiam fazer a leitura de que o princípio republicano, grande pilar da ordem constitucional brasileira, estava em alta e foi decantado definitivamente pela sociedade. Ou não…

Nas noções mais triviais de política aprende-se que a palavra república tem origem na expressão grega res publica, que significa coisa pública, do povo [sim, o clichê aqui é inevitável]. Isto implica que qualquer agente do Estado (federal, estadual ou municipal), como gestor de algo que não lhe pertence, deve perseguir a finalidade de satisfação dos interesses coletivos sem se utilizar do cargo ou função como exclusiva plataforma de promoção de vaidades ou de enriquecimento particular.

Pensem rápido, com a velocidade incomparável do instinto: é isto o que ocorre no Brasil? Para quem respondeu afirmativamente, por favor, ensine-me o segredo de tanto otimismo. Poliana ficaria com inveja.

Dezenove anos depois do plebiscito, o brasileiro com acesso a pelo menos cinco minutos de telejornal diário ou a dois parágrafos da seção política de qualquer periódico concluirá facilmente que na rotina da administração pública os valores de igualdade e impessoalidade que representam a essência do princípio republicano são ostensivamente desprezados.

O serviço público brasileiro, sobretudo nos elevados círculos de poder, transformou-se no  playground  dos interesses pessoais, o Eldorado do fisiologismo. Nesse contexto, está mais atual do que nunca a teoria de Freud de que o sentido da vida é a busca do prazer (O mal-estar na civilização, 1929/1930), pois o gozo do agente mal-intencionado é consumir e consumir-se nas oportunidades propiciadas pelas vantagens do seu cargo.

Nesse passo, a república brasileira vai se transformando em figura disforme, irreconhecível para os padrões exigidos pelo verdadeiro princípio republicano.

Se na Bíblia temos a descrição assustadora do anticristo, no Brasil convivemos com o personagem, muitas vezes sedutor, mas não menos perigoso, do antirrepublicano. E são muitos, reproduzindo-se como lebres em eterno cio.

Não é difícil reconhecer o antirrepublicano, principalmente porque, em regra, discrição não é o seu forte. Ele geralmente é exibido, gosta de alimentar-se das atenções midiáticas, sempre justificando seus deslizes [para usar um eufemismo] com o argumento de que agiu no interesse do povo.

Esse caricato personagem tem nítida aversão ao que poderíamos chamar de “virtudes republicanas”. Tome-se como exemplo a inegável virtude republicana consistente no dever dos agentes públicos de prestar contas (políticas, morais e financeiras), com a consequente responsabilidade pelos atos gravosos praticados contra a coletividade. O antirrepublicano considera ofensivo, como tapa na face sem luvas, a exigência da sociedade – ou de qualquer entidade legitimamente constituída – de esclarecimentos sobre algum fato relevante, especialmente se o assunto versar sobre as despesas realizadas pela instituição da qual faz parte.   Nenhum agente público com mínimo senso de moralidade e decência deve ser contra a exigência constitucional de prestação de contas. A melhor defesa da honra do administrador é feita através da transparência das suas ações, e não com incompreensíveis melindres quando eventualmente questionado pela sociedade.

Como cidadão, desconfio sobremaneira do caráter de quem, na gestão ou representação da coisa pública, ofende-se ao ter de dar explicações. No dia em que um administrador ou político dificultar a transparência motivado por boas intenções, tomarei chá com Alice no País das Maravilhas nas agradáveis companhias do Papai Noel e do coelhinho da páscoa.

O antirrepublicano é também bastante maniqueísta. Quem apoia suas ideias é aliado,  gente fina, amigo da pátria. Quem discorda não é visto como antagonista ideológico, é inimigo, integrante do eixo do mal. A concepção de pluralismo para o antirrepublicano está mais ligada à questão gramatical (um boi, dois bois, três bois) do que ao pensamento eclético da coletividade, protegido pela Constituição.

Talvez a pior característica do antirrepublicano, a que mais maltrata o sentido de república, é achar, ou melhor, acreditar que é verdadeiro senhor feudal do cargo que ocupa. É inexplicável para ele o conceito de transitoriedade de mandato político inerente ao princípio republicano. Mais inexplicável é a ideia de que o poder é exercido em nome do povo, já que este é considerado pelo antirrepublicano como mero instrumento para perpetuação do mandato.

Bem, se fosse para termos rei no Brasil, seria melhor ter vencido a monarquia no plebiscito de 1993. Pelo menos a situação ficaria mais… transparente.

Enquanto a coletividade não compreender plenamente o que significa viver em uma república, com todas as dimensões e consequências decorrentes desse regime, suportaremos o salgado preço de financiar os devaneios, as vaidades, enfim, o ego continental do antirrepublicano.

Termino por aqui. Vejo o noticiário. Preciso de um chá. Onde estará Alice?

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(*) O autor é Presidente da 1ª Turma Recursal dos Juizados Especiais e Diretor de Assuntos  Jurídicos da Associação dos Magistrados do Acre (ASMAC).

 

Comentários

  1. Caro amigo Giordane, não coloco no facebook pois não tenho (rs). De qualquer modo, parabéns! Como sempre, o artigo foi muito bem escrito. Quanto aos melindres provocados quando se questiona a transparência, isso é realmente natural onde não há obediência real aos ideais republicados. Há um ditado oriental nesse sentido: “onde não há liberdade para críticas, todo elogio é suspeito”…

  2. O articulista narrou com propriedade como efetivamente funciona da coisa pública no Brasil. A ideia de República é apenas uma ideia hoje, e nada mais do que isso

  3. Olhando mais amiúde para nossa história, encontramos os motivos de tanta falta de
    homens com “espírito público” em nosso país.
    Somos o país do “jeitinho”, do “puxadinho”, do “homem cordial” desde longa data.
    É fato que certos tipos de antirepublicanos gostam dos holofotes midiáticos, mas também não deixa de ser verdadeira a constatação de que, em sua grande maioria, quase todos contam com a obscuridade de seus atos para continuarem perpetrando a pilhagem aos cofres públicos.
    Às vezes, ficamos com a impressão de que o exercício do poder em nosso país, inclui e “naturaliza” a corrupção e demais desvios.

  4. É patente que existe uma ausência dos princípios republicanos no regime republicano brasileiro. Entretanto tais princípios deveriam nortear todos os poderes e não sómente o Legislativo e o Executivo como o texto faz parecer.

  5. Olá! Caros Comentaristas! E, Fred! Os argumentos do Juíz do Acre quanto aos desacertos republicanos e desconformidades está muito BOM! Porém, no quesito, já no final, onde faz menção ao pensamento MONÁRQUICO, fiquei com a impressão de ser uma BOA PIADA! A corrupção está ligada à falta de caráter do homem público. Não importando se é republicano, monárquico ou imperial, democrata, ditador, capitalista ou comunista, etc…
    A falha é de EDUCAÇÃO! Ou melhor, a falta dela.
    Conhecemos como FREIOS morais na EDUCAÇÃO. Entretanto, não assusta a IMPROBIDADE nem a PROBIDADE. O que é necessário é: FISCALIZAÇÃO constante! E, pego com a boca na butija, PUNIÇÃO exemplar e recuperação da GRANA quando for o caso. Aonde falhamos? Na punição e na recuperação da GRANA. E aí, tudo virá, pizza e chacota no meio popular! OPINIÃO!

  6. Alice, caro articulista, esta’ assistindo uma novelinha. Ela pode aparecer na hora do Jornal, mas deve ser breve porque nao quer perder a novela seguinte.

  7. Parabens ao articulista. Artigo, muito bom! Não merece nenhuma censura. Perfeito. As elites, ainda, não se acostumaram com os novos tempos impostos tanto pela Constituição Federal de 1988, quanto pela nova onda renovadora dos poderes públicos, incluindo o Executivo, o Legislativo e o Judiciário.

  8. O mais preocupante do tal plebiscito foi a leviandade com que foi colocada, até mesmo na Constituição. Algum constituinte (provavelmente pouco notável intelectualmente) entendeu que deveríamos adotar o sistema de governo abandonamos a quase um século. Se não vislumbravam possibilidade de vitória de tal tese, porque colocá-la na Constituição? Não seria mais sensato colocar algo útil e factível? E mais. Será que nenhum dos constituintes se deu conta de que não temos uma “família real”? Não uma brasileira. E se a monarquia ganhasse quem seria o rei? Um dos descendentes dos Portugueses que nos exploraram impiedosamente por séculos? Portugal certamente ficaria feliz em readquirir uma colônia que se pôs sob seu jugo voluntariamente. Se tal plebiscito fosse proposto nos EUA, retorno do domínio inglês, certamente o @$%# que fez tal proposta seria execrado publicamente e considerado traidor – quiçá executado. Por aqui provalmente já devem ter lhe dado alguma medalha, e talvez até ainda ocupe uma cadeira no parlamento. Nossa elite é, ou não é, de “primeiro” mundo?

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