“Quem é o culpado por este estado de coisas?”

Frederico Vasconcelos

Sob o título “A Injustiça Escancarada”, o artigo a seguir é de autoria de George Marmelstein,  Juiz Federal e Professor de Direito Constitucional:

O Juiz Brandeis tornou famosa a afirmação de que a luz do sol é o melhor desinfetante. Mas a luz do sol não possui apenas propriedades sanitárias. Sua principal função é óptica: a clareza nos permite enxergar melhor, visualizando detalhes que ficavam encobertos pelas sombras da escuridão.

A divulgação da remuneração dos servidores públicos, nesse aspecto, está tendo o importante papel de desmascarar as distorções do nosso sistema. O princípio básico de que o valor da remuneração deve ser estabelecido pela responsabilidade do cargo tem sido violado notoriamente. Por exemplo, um juiz federal com onze anos de carreira recebe, em média, 16 mil reais líquidos aproximadamente. Enquanto isso, um analista legislativo da Câmara, com o mesmo tempo de serviço, tem uma remuneração mensal líquida de aproximadamente 22 mil reais. Um auxiliar que trabalhe no parque gráfico do Senado recebe uma remuneração superior a de um juiz federal com trinta anos de carreira. Atualmente, do ponto de vista remuneratório, mais vale ser consultor legislativo do que ser ministro do Supremo Tribunal Federal.

Outro aspecto que a Lei da Transparência desnudou foi a deturpação do sistema de subsídio e da limitação estabelecida pelo teto constitucional. Pouquíssimas carreiras respeitaram rigorosamente o sistema de subsídio. Muitas encontraram mecanismos para fugir do teto. Em geral, o subsídio é fixado em um patamar elevado (próximo ao teto constitucional) e são pagas verbas eventuais ou indenizatórias além do subsídio, inclusive verbas de direção e assessoramento. Isso tem causado outra notória injustiça: as carreiras que não recebem outras verbas além do subsídio ficaram para trás, perdendo sua atratividade, sobretudo pelas responsabilidades assumidas pelos membros dessas carreiras. Além disso, nas carreiras remuneradas exclusivamente por subsídio, as atividades extraordinárias não são remuneradas, sob a desculpa de que tudo está incorporado ao subsídio, gerando uma sobrecarga de trabalho sem qualquer acréscimo remuneratório. Isso faz com que um juiz federal que ocupe a função de diretor do foro, gerenciando cerca de cinco mil pessoas com um orçamento de algumas dezenas de milhões de reais por ano, sem prejuízo da jurisdição, receba uma remuneração muito menor do que a de um procurador do estado ou do município, que recebe subsídios fixados em patamar idêntico ao de desembargador, é remunerado por atividades extraordinárias, de assessoramento e direção, ganha honorários e ainda pode advogar.

E para potencializar a injustiça tem-se notado um tratamento discriminatório mesmo dentro de cada um dos poderes. No âmbito do Judiciário, por exemplo, é nítido o tratamento diferenciado recebido pelos juízes federais quando comparado com alguns juízes estaduais. Isso tem provocado uma odiosa discriminação, tornando o regime jurídico da magistratura federal infinitamente inferior ao regime jurídico da magistratura estadual, pelo menos em alguns estados. Aliás, também é notória a discriminação mesmo entre os juízes estaduais, pois há uma grande disparidade remuneratória entre os diversos estados da federação e, às vezes, até mesmo dentro de um mesmo estado-membro. Situação semelhante ocorre com relação ao ministério público.

Provavelmente, alguns dirão que a melhor maneira de corrigir essa distorção é trazer todos para dentro da política constitucional de subsídio e de teto, criando uma política de uniformização de larga escala a fim de podar os excessos e alinhar as diversas carreiras conforme a responsabilidade de cada uma. Há uma boa dose de verdade e de plausibilidade nisso. Porém, há dois detalhes que precisam ser levados em conta. Em primeiro lugar, o artigo 39 da CF/88 tem que ser cumprido, vale dizer, o valor da remuneração tem que ser fixado de acordo com a responsabilidade do cargo. Além disso, a política de subsídio e de teto só faz sentido se a norma constitucional que garante o reajuste anual da remuneração for aplicada rigorosamente. Desde 2005, data em que foi estabelecido o sistema de subsídio, o reajuste anual nunca foi cumprido integralmente, forçando algumas carreiras a buscarem soluções alternativas para corrigir por outros meios a desvalorização da moeda. Então, é de se questionar: de quem é a culpa por este estado de coisas? E o mais importante: como corrigir essas distorções no curto prazo, uma vez que as carreiras que estão respeitando a Constituição não aguentam mais esperar? Diante desse quadro caótico, os juízes federais devem ser considerados como bons republicanos ou como tolos ingênuos? A última pergunta é retórica.

Por George Marmelstein, um juiz federal com onze anos de carreira ofuscado com tanta luz solar.

Comentários

  1. As distorções apontadas são provocadas dentro dos próprios tribunais. A começar por juízes querendo ser gestores. Juízes são bons julgadores, mas não necessariamente bons gestores administrativos. Juízes devem ser tetos de ganhos de servidores públicos. Ponto. Dos juízes deve ser retirada a faculdade de administrar qualquer tribunal, vara, zona ou algo que o valha, pois em gestores inadequados gerará a tentação de nomear parentes, amigos ou alguma outra ligação afetiva. Já há uma carreira administrativa e tecnológica dentro dos tribunais. Estas carreiras devem ter seu desempenho avaliado por mérito e seus ganhos serem balizados por estes critérios. Nunca, em hipótese alguma, um gestor de tribunal ou oficial de justiça deve ganhar mais que um juiz. Portanto, a culpa é do próprio corpo jurídico do Judiciário Brasileiro, que rebaixa-se demais para manter suas inadequações administrativas ocultas.

  2. Com a licenca do articulista, vou opinar do ponto de vista de contribuinte, nao operador do Direito.
    Primeiro, estabelece comparacao com anomalias que, de fato, deveriam ser corrigidas e nao ser fator de comparacao.
    Esta’ mais do que claro que precisamos de uma politica salarial unica para TODO o funcionalismo publico.
    Assim como nao concordo que o analista legislativo e auxiliar da grafica devam ser remunerados acima da media do mercado,
    o digno magistrado ha’ de convir que R$ 16.000 liquidos, sinaliza para uma remuneracao muito boa.
    Se formos utilizar o fator de conversao de 2:1 com o dolar, significa levar p/ casa mais de 100.000 dolares/ano para casa.
    Comparem com os paises nivelados economicamente ao Brasil, ou acima, e verao que isso corresponde a uma remuneracao bruta acima de a50.000 dolares/ano.
    Se ainda tiver paciencia, vejam quem sao os profissionais que recebem tal remuneracao e verao que estao em muito boa companhia.
    Novamente, nao se comparem com as anomalias do servico publico para embasar seu argumento.
    Voces sao inteligentes. E ganham bem.

    1. se for para considerar a média do mercado, verás que um árbitro tem honorários de trinta e oito a cem mil reais por processo.
      veja a tabela neste site. http://dc400.4shared.com/doc/bX3CTt0T/preview.html.
      legal esta comparação com o dolar, quando todos nós sabemos que o real está valorizado. veja o índice big mac da revista the economist.
      por outro lado, os economistas criticam, sim, as distorções verificadas nos salários do setor público com os valores pagos pelo mercado. tais disparidades estão presentes principalmente em atividades de nível médio.
      portanto, a remuneração de um juiz federal, dentro do serviço público ou em função do mercado, está totalmente corroída, tal como ilustra, brilhantemente, o articulista.

  3. O Articulista tem razão quando afirma que hoje a magistratura federal vem recebendo vencimentos módicos em comparação com outras atividades remuneradas pela União consideradas como de menor complexidade e importância. de fato, inadmissível que um juiz federal com mais de dez anos de carreira esteja recebendo 16 mil mensais. Porém, vale a pergunta: o que a própria magistratura federal tem feito para tentar melhorar sua imagem? Hoje, reconhecidamente de forma equivocada, a população vê o juiz federal como “inimigo público”, aquele ser pomposo que só pensa nele próprio e em favorecer a União nos processos, muito embora muitos juízes federais sejam isentos, zelosos e dedicados. O que a magistratura federal não consegue compreender, de forma alguma, é que o brasileiro comum não valoriza o esforço, centrando-se em questões menores e desvios de conduta. Pode haver 100 juízes federais trabalhando dia e noite em uma dada subseção judiciária que ninguém vai dar valor, mas se apenas um deles cometer uma falha grave o povo vai se centrar nisso, e alardear que os 100 juízes são iguais e que todos cometem falhas. E falhas é o que há na Justiça Federal. Não são poucos os juízes que usam deliberadamente os cargos para vinganças, perseguições, ou mesmo favorecimento escancarado em favor da União. Em regra, esses atos acabam sendo sustados pela instância recursal, mas a lesão à imagem de toda a magistratura fica. O cidadão lesado ou que toma conhecimento de uma conduta menos nobre por parte de juiz federal por vezes não reclama publicamente, nem comenta nada que possa chegar aos ouvidos dos juízes federais e de seus vasalos, mas no íntimo e nos círculos privados o assunto é intensamene comentado. E tudo isso repercute no momento do voto, que por sua vez repercute no momento de dar seguimento aos projetos de lei que procuram corrigir a defasagem de vencimentos dos juízes federais. Não há, literalmente, um único candidato a deputado federal ou senador da república que tenha como bandeira de campanha conceder melhor remuneração aos juízes federais, e os motivos todos nós sabemos: o povo vai interpretar isso (equivocadamente) como implementação de mordomias em favor do juiz federal que está “atrasando o processo da vó”, ou que não concedeu o auxílio-doença para o tio, e não vai votar nesse candidato, que será excluído pelas urnas. Se a magistratura federal quer gozar de respeito e consideração (que em democracia se conquista, ao invés de se impor), com remuneração condigna com o cargo, deve se preocupar em resgatar a sua imagem, aprender a ouvir a sociedade, respeitar a advocacia (que afinal é quem fala pelo povo) e deixar clara sua independência em relação ao Executivo, inclusive punindo exemplarmente todos os juízes federais que se desviam da retidão, ao invés de acobertá-lo. Se não aprenderem a encontrar esse caminho, vão amargar mais alguns anos de vacas magras quando forem “passar o cartão” na agência da Caixa Econômica Federal.

    1. Primeiro, segundo dados do CNJ, o índice de reforma de decisões judiciais não chega a vinte e cinco por cento. Assim, de cada cem decisões da justiça federal, setenta e cinco são mantidas. Nas turmas recursais, o índice é de noventa e dois por cento. Veja o documento justiça em números. Está disponível no site do CNJ.
      Segundo, a jurisdição não é atividade assistencial, se o juiz negar um auxílio-doença está calcado na prova pericial, seja ela judicial ou administrativa.
      Terceiro, a última vez que um juiz ouviu o povo num julgamento terminou com um inocente crucificado.
      Quarto, a magistratura federal, tal como a trabalhista, tal vez seja a carreira mais fiscalizada neste país. Além dos órgãos internos, Corregedoria Regional, corregedoria do Conselho da Justiça Federal, Corregedoria Nacional de Justiça, há entidades que monitoram diuturnamente os magistrados, são: OAB, Defensoria Pública Federal, Polícia Federal, Procuradoria Federal, Procuradoria da Fazenda Nacional, Ministério Público Federal, Advocacia da União. Todos estes órgãos podem provocar a atuação correcional em eventuais deslizes de magistrados federais. Além desses, há a parte do processo que pode acionar a ouvidoria judicial, em qualquer site de TRF há o link para fazer reclamação por lentidão processual.
      Sexto, todos os juízes estão cientes da lentidão processual, entretanto, não é apenas o processo da vó que padece desse mal. Mesmo quando são partes, os juízes sofrem com a lentidão processual. As razões são várias, muito além da pessoa do juiz. Quantidade avassaladora de processos (sem paralelo no mundo), baixo número de magistrados(Europa tem o dobro por habitante), leis da década de trinta do século passado, falta de informatização(processo eletrônico ainda é uma promessa longínqua);

      1. Caro Moisés, confesso que as vezes me dá até um pouco de preguiça de continuar argumentando em prol da magistratura. Estou naquela fase de achar que perdemos a batalha e que o melhor mesmo é fazer o que muitos colegas estão fazendo: fechar-se na Justiça, chegar cedo e sair tarde, e aceitar as críticas justas e injustas, ponto final. Ao ler artigos como esse do colega George e comentários como os seus, sempre baseados em dados e fatos e não apenas em opiniões e ranços, me dá um alento e uma dose de estímulo.
        Parabéns pelo empenho.
        Forte abraço

  4. Não é só a Justiça Estadual. Um pequeno passeio nas páginas dos TRT’s vai surpreender o articulista, quando verificar, por exemplo, Desembargadores no TRT 24a Região recebendo R$ 397.000,00. Nos outros, quantias como R$ 179.000,00, R$ 160.000,00 e por aí vai… Já sabemos, existem valores devidos anteriormente. Mas a pergunta é: Porque os juízes e alguns servidores não necessitam buscar o Poder Judiciário e esperar 10 ou 15 anos para ter a decisão final do seu processo, e esperar mais 10 anos para receber por Precatório? O mesmo acontece com o MP, que se encontra atualmente num silêncio profundo sobre a questão da transparência… Será que os salários do MP também vão conter valores, digamos, acima da ‘média do setor’!?

    1. Paulo,
      Procure saber antes de falar, hâ quanto tempo essas diferenças são devidas. Possivelmente o Precatório ou mesmo uma ação monitória talvez fosse mais rápido. Um outro aspecto, na Justiça do trabalho, em geral as soluções vêm muito mais célere, justamente por envolver salários. Por fim, no que toca às dívidas do Estado é a ANAMATRA que mais lutou pela não aprovação da chamada PEC do calote. Neste caso, caberia inclusive uma ida à Corte Interamericana de Direitos Humanos, por violação ao artigo. 25 do Pacto de San José da Costa Rica ante a denegação de Justiça por esse sistema de Precatório.

      1. Caro Sérgio,
        a questão que levantei não diz respeito ao tempo em que a dívida se tornou devida, mas sim ao meio utilizado para recebe-la. Apenas como exemplo, valores a título de PAE ou URV vêm sendo pago a juízes e servidores há muito tempo, não começou agora, além do que, é simplesmente imoral, para não dizer ilegal, o fato de que diversos juízes e servidores, com ações propostas na Justiça, passaram a receber esses valores administrativamente, sem que as ações sequer fossem retiradas. Eis a diferença entre aqueles que se submetem a um sistema caro e inoperante na entrega do resultado, e outros que não necessitam se submeter a isso, ou, se submetem, são agraciados com o ‘abraço’ da sobra de recursos do orçamento dos Tribunais, que poderiam ser utilizados para aumentar o número de servidores, juízes, etc. Vale dizer, o Poder Judiciário hoje está custando muito caro ao país em relação aos serviços que presta, e parte desse problema decorre simplesmente da falta de percepção ou mesmo humildade de parte da própria magistratura, que luta com unhas e dentes para manter certo privilégios, mas pouco faz no sentido de melhorar a prestação dos serviços aos jurisdicionados, que, afinal, são os destinatários desses serviços.

        1. Paulo
          Esses direitos foram reconhecidos pelo CNJ. O que referenda que não se tratam de privilégio. É a via administrativa eleita e aplaudida por muitos. Ou ela só serve para vigiar e punir?! Se não pode o primeiro, muito menos poderia o segundo. Ainda, tivesse um juiz de primeiro grau ou mesmo um tribunal, na esfera judicial admitido esses direitos aí iriam dizer que se trata de corporativismo e de decisão em causa própria. É difícil não ter direito a ter direitos. Mais irônico. Essa realidade é imposta a quem diz o direito. Voltemos à ponderação do autor: tivesse o executivo cumprido a regra constitucional do subsídio, o Judiciário não estaria submetido a mais esse desgaste.

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