Mensalão: ‘cirque du soleil’ jurídico

Frederico Vasconcelos

Sob o título “Muda de canal!”, o artigo a seguir é de autoria do Juiz de Direito Gustavo Sauaia Romero Fernandes, de São Paulo.

Em meio ao pomposo julgamento do mensalão, com exposições orais quilométricas, relatórios épicos e votos que levariam anos para serem inteiramente lidos e compreendidos por Camões, fiz a mim mesmo a pergunta que muitos colegas devem – ou deveriam – estar formulando: se fosse basear minha escolha de profissão nestas sessões do STF, teria eu escolhido o caminho da magistratura? Mais que isso: teria escolhido fazer faculdade de Direito, em vez de Engenharia (como meus pais queriam)? A resposta, muito provavelmente, teria sido negativa – curta e grossa, sem calhamaços de doutrinas e jurisprudências.

Os operadores do Direito têm muitas verdades inconvenientes que precisam encarar, como já expus em oportunidade anterior. Mas talvez nada seja tão urgente de ser revisto quanto o distanciamento que a filosofia do “quanto maior e mais prolixo, melhor” está provocando entre juristas e aquela à qual juízes, promotores e advogados devem servir: a população. Quando estudante, e mesmo depois de formado, nunca achei graça das piadinhas dos acadêmicos de exatas, na toada de que até para dirigir em rua de mão única os juristas procuram duas correntes. Duro é constatar que aqueles eram os bons tempos. Hoje duas correntes é coisa de iletrado. Estamos vendo o ordenamento jurídico ser solenemente ignorado por interpretações cada vez mais livres, com fundamentações cujo espírito chega a remeter ao musical Hair. Quando vejo algumas delas, minha mente até canta os versos iniciais de Aquarius. Com coreografia e tudo.

Uma colega de profissão me advertiu, no início da carreira, que deveria ter cuidado para não exagerar na síntese. Uma sentença perfeita, disse com propriedade, é aquela em que a mãe do réu entende por que ele está sendo condenado. Pois me pergunto que mãe, pai, irmão, mulher, filho, amigo ou inimigo de uma parte consegue entender que raios (para não poluir o texto com um palavrão) estão falando os excelentíssimos senhores doutores Ministros do STF. A Corte máxima do Processo nacional perde, sem o menor constrangimento, a oportunidade de se fazer clara às pessoas. Não bastasse isso, ainda inventa aberrações como réplica e tréplica de voto, como se relator e revisor fossem acusadores ou defensores. Pobres processualistas, que terão que explicar isso aos alunos. Pobres alunos, que terão que entender.

No cirque du soleil jurídico, vale tudo para transformar cadeira em frigobar – expressão usada por um amigo, obviamente leigo. Por isso ninguém ficará surpreso se o ex-advogado de um dos réus declarar que não se considera suspeito para julgá-lo, pois não o defendeu neste processo. Ou melhor: ficará surpreso sim, caso ele o diga em duas linhas, como neste parágrafo. É mais provável que se valha de duas dúzias de páginas para explicar a mesma coisa. Isso quando chegar sua vez de votar, o que pode levar semanas, sem esquecer o feriado de 7 de setembro. Enquanto isso, todos os outros recursos que tramitam no STF ficarão mofando. Sabe aquele seu processo que corre há dez anos e está em Brasília? Prepare-se para esperar um pouco mais – relativamente falando. Reclamações para a TV Justiça, por favor.

Perdoem-me se estou sendo mais franco que o esperado, mas devo destacar que não estou questionando a idoneidade de nenhum dos envolvidos. Critico, pois sim, a escolha que fazem sobre a forma de o Direito se comunicar com a Sociedade, como se o primeiro não decorresse da existência da segunda. Minha discordância não se resume, porém, apenas ao formalismo. Temo pelo que se cria por meio desta liberdade extrema para, por meio destas enormes ponderações, criar Direito além do que dizem as normas. Nem mesmo boas intenções podem autorizar tal postura. O que conspira para o bem pode conspirar para o mal. O precedente heroico de hoje, se não for baseado no que Constituição e Leis realmente preconizam, pode ser a janela para o tenebroso entrar em casa. Principalmente se ninguém entender nem o bem intencionado, nem o malicioso.

O Direito brasileiro precisa de novas togas, com urgência. Se preferir atuar sem elas, melhor ainda. O que não tem mais sentido é continuar apresentando, ao vivo e em cores, o espetáculo do anacronismo e do virtuosismo gramatical desnecessário. Do contrário, logo estaremos diante do pior dos cenários: só restarem, para serem recrutados pelas carreiras jurídicas, os que gostam deste show.

Comentários

    1. Caro Xará, não foi censura. Ao ver o comentário com nome e sobrenome iguais aos meus, pensei que o remetente havia assinado no local errado –o que confundiria os leitores. Ou, hipótese remota, alguém querendo atribuir a mim comentário que não fiz, o que, igualmente, deixaria o leitor em dúvida. Seja bem-vindo. Se vc. não se importar, sugiro repetir o comentário anterior assinando por extenso, como fez nessa mensagem. E espero que faça em muitas outras. Visitarei também o seu blog. Abs. Fred

  1. Discordo! acredito, como já disseram, que a virtude está no meio. A rejeição pura e simples do bem escrever, da correção gramatica e da linguagem escorreita leva a outro(s) extremo(s).

  2. No Ceará existe algo mais maléfico que a prolixidade dos senhores Magistrados. Juízes, especialmente das comarcas interioranas, trabalham apenas às terça, quarta e quinta feiras. Pior que isso: – às terça e quinta os laboriosos julgadores cumprem apenas meia jornada. À custa de nosso suado dinheiro, curtem os “os verdes mares bravios de minha terra natal” nos demais dias da semana. Enquanto isto, milhares de processos aguardam mais de cinco anos por uma decisão.

  3. Perfeito o texto. Adiro ao pensamento do magistrado, sobretudo quando expressa: (…) Temo pelo que se cria por meio desta liberdade extrema para, por meio destas enormes ponderações, criar Direito além do que dizem as normas. Nem mesmo boas intenções podem autorizar tal postura. O que conspira para o bem pode conspirar para o mal. O precedente heroico de hoje, se não for baseado no que Constituição e Leis realmente preconizam, pode ser a janela para o tenebroso entrar em casa. Principalmente se ninguém entender nem o bem intencionado, nem o malicioso. (…)
    De fato, em nome de uma tal “liberdade de decidir” o que se tem visto são decisões absolutamente contrárias as normas postas. Como diz um estagiário: “lei não está valendo nada no Brasil”.

  4. Não concordo com o protesto. Mas isso não quer dizer que gosto de tudo o que está se passando no julgamento do mensalão. Acontece que esse momento é muito raro no Brasil (e no mundo) e deveria ser muito comum. Veja bem, uma quadrilha que estava no poder (alguns ainda estão), sendo julgada em uma sessão transmitida por rádio e TV para o país inteiro. Sinceramente, jamais pensei em um dia ver isso, pois confesso que não acredito muito no Brasil como país ou nação. Com isso vemos a Justiça brasileira cumprindo seu papel de punir nossos poderes executivos tomados por quadrilhas. Na fila, o caso Cachoeira…

  5. Sou magistrado faz 13 anos, mas antes disso fui advogado por cinco anos em São Paulo. Lembro-me de ter defendido um cidadão numa ação indenizatória movida pelo Ministério Público representando uma senhora de idade e cuja petição inicial tinha mais de 50 páginas. Ao iniciar a audiência (no antigo fórum de Santana), o juiz virou-se para o Promotor e disse: “olha, eu advoguei por cinco anos antes de ingressar na Magistratura e vou te dizer uma coisa: acho que quando alguém tem efetivamente um direito, não há a menor necessidade de mais de 50 páginas de petição inicial para explicá-lo ao juiz”. Nunca mais esqueci aquela frase, pois concordo totalmente com aquele sábio magistrado e também com o colega que assina o texto supra. Nem os ministros do STF prestam atenção naqueles votos de horas de citações doutrinárias, citando até a Constituição do Império.

  6. Com exceção da Carmem Lúcia, ela foi muitissima objetiva e deu a resposta a altura. Agora, o absolvendovsk, pelo amor de Deus. Peça aposentadoria depois dessa Sr. Ministro.

  7. Se um magistrado não está mais vendo utilidade na forma pomposa e arrogante do discurso jurídico, imaginem só os cidadãos leigos, que pagam os salários das “excelências”…
    Interpretar o direito só quando a norma causa dúvida perante os fatos analisados. Deturpá-lãs para acomodar ao seu achismo é que não dá mais para tolerar.

  8. Esperamos que o povo não continue a ser o palhaço e que as feras continuem soltas. Tenho fé que o STF dará a merecida resposta para nos orgulharmos do Poder Judiciário Brasileiro.

  9. Perfeito seu texto Sr Vasconcelos, eu que estou entrando na carreira (5º ano de Direito) sou totalmente contra este formalismo (o exagero da forma), ainda mais quando se trata de algo que esta totalmente voltado para a sociedade, pois esta quer ver político condenado (utopia), mesmo que o crime “quebra de decoro parlamentar” (que crime digno de se cometer de tão bonito que é, e soa em nossos ouvidos). Fala-se muita balela no STF, coisas que até mesmo nós cientistas do Direito ficamos a deriva sem saber o que os togados dizem. Alem do mais tbm concordo contigo neste negócio de réplica e tréplica que estao dando..ta tudo mudando, por mais que saibamos que o que aprendemos na faculdade não é aplicado na vida real (nos foruns da vida), o circo esta armado, tem-se os palhaços (que neste caso somos nós) os malabaristas (que são os “supostos” réus) e os mágicos que são os julgadores deste caso (pois tiram da cartola “toga” frases, palavras e sonetos que assusta e inquieta Camões como em seu soneto 91…

    Paarbens pelo texto e por deixar mais claro para a sociedade o que realmente acontece no mundo Juridico…

    abcs

    1. Caro Fagner, grato pela msg., mas o artigo, como informo na abertura do post, é de autoria do Juiz de Direito Gustavo Sauaia Romero Fernandes, de São Paulo, a quem transmito os seus cumprimentos. abs. fred

  10. Perfeito. Embora totalmente leiga, qdo vejo os ministros lendo seus votos pergunto-me se tudo aquilo é realmente necessário, quanto cada sessão está custando ao bolso do contribuinte (talvez o dobro dos ingressos do Cirque du Soleil, que já caro!) e no que vai dar, além de um espetáculo jurídico lotado de truques e luzes!

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