Contra a vulgarização do habeas corpus

Frederico Vasconcelos

– Rosa Weber vê “burla indireta” e “desvirtuamento da garantia constitucional”

  – Mudança de jurisprudência na Primeira Turma do STF preocupa a OAB

“O habeas corpus é garantia fundamental que não pode ser vulgarizada, sob pena de sua descaracterização como remédio heroico, e seu emprego não pode servir a escamotear o instituto recursal previsto no texto da Constituição”.

A afirmação é da ministra Rosa Weber, do Supremo Tribunal Federal, em decisão que reitera a posição da Primeira Turma contra o uso do habeas corpus para substituir qualquer recurso no processo penal, mesmo nos casos em que não envolve prisão (*).

“Há verdadeira avalanche de habeas corpus a submeterem a mesma questão, sucessiva e até concomitantemente, a diferentes tribunais”, registrou a ministra em seu voto.

A manifestação de Rosa Weber reitera o posicionamento anterior da Primeira Turma, que, no último dia 8/8, por iniciativa do ministro Marco Aurélio no julgamento de dois habeas corpus, iniciou uma mudança em sua jurisprudência para reconduzir esse instrumento ao seu leito próprio, de meio de impugnação à prisão. (**)

A Primeira Turma decidiu não mais admitir o emprego do habeas corpus em substituição a recurso ordinário contra denegação de HC por instância anterior.

A mudança levou a OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) a enviar ofício ao ministro José Toffoli, presidente da Primeira Turma, a título de “manifestar a preocupação da advocacia brasileira”.

“Tratando-se de pronunciamento jurisdicional soberano, à OAB cumpre lamentar a interpretação limitadora conferida pela egrégia Turma ao alcance do instituto tão valioso e caro às liberdades individuais e à cidadania, que acaba por reduzir o princípio constitucional da presunção de inocência, desprezando o procedimento de raízes históricas até então adotado pela Corte”, afirma no ofício o presidente Ophir Cavalcante Junior.

Em seu voto, a ministra Rosa Weber faz um levantamento das raízes históricas do habeas corpus e conclui que tem havido, nos últimos anos, “um desvirtuamento da garantia constitucional”.

Ao citar que em 2011 foram distribuídos no Superior Tribunal de Justiça 36.125 habeas corpus –número quase equivalente ao total de processos distribuídos no Supremo no mesmo ano (38.109)– Rosa Weber afirmou que “tais números só foram possíveis em virtude da prodigalização e da vulgarização do habeas corpus”.

O caso exemplar do uso de recursos para procrastinar a realização da Justiça é o desvio de dinheiro público da construção do Fórum Trabalhista de São Paulo, em 1992. Em dezembro de 2008, a Folha revelou que os réus haviam oferecido, até então, 112 recursos. Sobre esses expedientes da defesa, a ministra Eliana Calmon comentou, no mês passado: “Essas chicanas são feitas por colarinhos brancos e não por advogados de réus comuns, do José da Silva”.

A Segunda Turma do STF ainda não se posicionou sobre a mudança da jurisprudência pela Primeira Turma.

A seguir, trechos do voto de Rosa Weber:

(…)

O habeas corpus constitui garantia fundamental prevista na Constituição da República para a tutela da liberdade de locomoção – ir, vir e permanecer -, contra prisão ou ameaça de prisão ilegal ou abusiva.

(…)

A despeito da importância histórica do instituto, confundido com a própria essência da liberdade, não foi e não é o habeas corpus utilizado, no Direito anglo-saxão, senão diretamente contra uma prisão, decretada em processo criminal ou não.

(…)

Já na primeira Constituição Republicana, de 1891, o habeas corpus foi constitucionalizado. E o silêncio do art. 72, §22 quanto ao objetivo de tutela apenas da liberdade de locomoção propiciou o desenvolvimento da “Doutrina brasileira do habeas corpus”, que levou o writ, na ausência de outras ações constitucionais, a ser utilizado para a salvaguarda de outras liberdades que não a de locomoção, caso, v.g., do Habeas Corpus 3.536, em que concedida ordem, em 05.6.1914, por este Supremo Tribunal Federal, para garantir o direito do então Senador Ruy Barbosa a publicar os seus discursos proferidos no Senado, pela imprensa, onde, como e quando lhe convier.

(…)

O habeas foi contemplado em todas as Constituições republicanas, de 1934, 1937, 1946, 1967, 1969 e 1988, para a tutela da liberdade de locomoção contra violência ou coação ilegal ou abusiva. Todo esse rico histórico evidencia o caráter nobre da ação constitucional do habeas corpus, garantia fundamental que, se não pode ser amesquinhada, também não é passível de vulgarização.

(…)

É o habeas corpus uma garantia da liberdade de locomoção – ir, vir e permanecer -, contra violência ou coação, pressupondo, portanto, uma prisão, uma ameaça de prisão ou pelo menos alguma espécie de constrangimento físico ou moral à liberdade física.

(…)

Embora restrito seu cabimento, segundo a Constituição, a casos de prisão ou ameaça de prisão, passou-se a admiti-lo como substitutivo de recursos no processo penal, por vezes até mesmo sem qualquer prisão vigente ou sem ameaça senão remota de prisão. A pauta, aliás, desta Primeira Turma, com mais de uma centena de habeas corpus sobre os mais variados temas, poucos relacionados à impugnação da prisão ou efetiva ameaça de, é ilustrativa do desvirtuamento do habeas corpus.

(…)

De nada adianta a lei prever um número limitado de recursos contra decisões finais ou contra decisões interlocutórias se se entender sempre manejável o habeas corpus. A par de notório que a possibilidade de recorrer contra toda e qualquer decisão interlocutória é fatal para a duração razoável do processo também assegurada constitucionalmente.

(…)

A preservação da racionalidade do sistema processual e recursal, bem como a necessidade de atacar a sobrecarga dos Tribunais recursais e superiores, desta forma reduzindo a morosidade processual e assegurando uma melhor prestação jurisdicional e a razoável duração do processo, aconselham seja retomada a função constitucional do habeas corpus, sem o seu emprego como substitutivo de recurso no processo penal.

(…)

Admitir o habes corpus como substitutivo do recurso, diante de expressa previsão constitucional, representa burla indireta ao instituto próprio, cujo manejo está à disposição do sucumbente, observados os requisitos pertinentes.

(*) 104045
(**) HC 109956

 

Comentários

  1. O presente posicionamento está certo. A maioria desses habeas corpus são de réus condenados em primeira e segunda instâncias. Ora, depois de tais condenações, não há falar em princípio constitucional da inocência, porquanto a presunção, agora, é de que tais réus são culpados.

  2. Do interior do Mato Grosso do Sul encaminhei um pedido de Habeas Corpus ao STF, passados alguns dias recebi em meu escritório referido “remédio” com os documentos que o acompanhavam com a informação de que perante o STF, de acordo com tal Portaria/Resolução, o HC somente seria recebido por meio digital…
    Ora como qualquer do povo pode ingressar com HC em instâncias Superiores agora? tem-se que ter certificação digital etc etc etc.
    OAB não é de hoje que o STJ, STF vem dificuldando oo ajuizamente de HC.

  3. O fato é que a Ordem dos Advogados do Brasil, pela lei defensora da ordem jurídica, não é mais nada, perdendo-se no amplo universo de interesses pessoais que vem guiando sua atuação nos últimos anos. Fosse a OAB atuante, já estaria formulando representação contra essa Turma do Supremo Tribunal Federal, por usarem de mecanismo puramente demagógico para negar vigência à Constituição da República, cuja missão de todos os Ministros do STF é defender.

    1. Nos estudos históricos deste instituto, conhece-se a doutrina brasileira do habeas corpus, defendida por Ruy Barbosa, no memorável embate com Pedro Lessa. Naquele tempo, o habeas corpus servia até para reintegração de posse. Assim, Artur Bernardes, encaminhou projeito de lei, cujos motivos revelavam “na íntegra, o sistema norte-americano: restringir o habeas corpus ao seu papel de garantia da liberdade e instituir outros remédios judiciários, para os outros casos a que o mesmo se aplica”. Assim, criou-se o mandado de segurança, e o habeas corpus se viu reduzido apenas à prisão e na iminência desta. Era bom fazer uma pesquisa de direito comparado para que nós saibamos se há um país que julgue mais habeas corpus que o Brasil.
      lembrando sempre que nos Estados Unidos é restrito apenas ao preso, encarcerado, recluso. Senão vejamos: O habeas corpus é um remédio extraordinário porque dá um tribunal o poder de libertar um prisioneiro depois de o prisioneiro ter sido processado através do sistema de justiça criminal, com todas as suas garantias processuais e recursos. Por esta razão, a carga é inicialmente sobre o prisioneiro pedindo para provar que ele ou ela está sendo realizada em violação de um direito constitucional. Se o requerente pode atender a essa carga com provas suficientes, o ônus então muda para o diretor para justificar a prisão.
      também pudera na origem histórica do instituto, lá na Inglaterra, os tribunais de direito comum emitiam mandados exigindo a libertação de pessoas presas pelos senhores feudais.

      1. Essa análise estaria correta se não fosse por um único detalhe: em nenhum país do mundo se pratica tantas ilegalidades judiciais como no Brasil em matéria de direito penal. A propósito, acabei de ler uma notícia aqui mesmo no Blog do Fred a respeito de da determinação do Corregedor do CJF no sentido de que o TRF3 crie uma turma especializada em direito criminal. Constatou-se, em inspeção, irregularidades graves a respeito de andamento de feitos, inclusive processos parados desde 1999 com réus presos. Há isso nos EUA?

        1. bem, nos EUA, a suprema corte de lá julga cem processos por ano.
          lembremos o diz o professor Pastore:
          As Juntas de Conciliação e Julgamento estão recebendo quase dois milhões de processos novos por ano. A essa espantosa cifra, há que se adicionar quase um milhão de casos residuais que vêem de anos anteriores (Relatório Geral da Justiça do Trabalho, Brasília: TST, 1998).
          Tratam-se de números assustadores. A França entrou em pânico quando, há cinco anos, as ações trabalhistas ultrapassaram a marca dos 70 mil casos. Os americanos estão apavorados porque já existem cerca de 75 mil processos de natureza trabalhista na justiça comum. E o Japão está atônito porque as ações trabalhistas bateram a casa dos mil casos. O Brasil tem quase 3 milhões de casos que não param de aumentar.
          A tabela abaixo estampa a ferocidade do crescimento das ações trabalhistas na primeira instância. Entre 1986-97, a média anual mais do que dobrou. Para 1999, que promete trazer mais desemprego e mais inflação, só se pode esperar mais reclamações na Justiça do Trabalho.

          1. Isso ocorre porque a Justiça brasileira está a serviço do Estado e das grandes empresas, que usam a conivência dos juizes brasileiros com a ilegalidade para lucrar. Aqui no Brasil, diferentemente dos EUA, França, Japão, etc., quando a grande empresa ou o Estado se sagra perdedor em uma ação, nenhuma maior consequência lhes são carreadas. A cada dia, aqui, a verba sucumbencial se torna mais pífia, surgindo ainda diversos outros mecanismos para se lesar o credor, como parcelamento de precatórios, manipulação dos índices de atualização dos dévitos, etc., etc., tornando litigar algo extremamente benéfico à grande empresa e o Estado (aliás, os advogados do Estado são pagos por nós, cidadãos). Toda essa problemática faz com que existam milhões de ações, por culpa exclusiva dos juízes, e agora parte para a adoção de mecanismos que visam infirmar as garantias constitucionais, como a culpa pela avalanche de ações fosse do cidadão comum honesto.

          2. Primeiro, a citação acima é de José Pastore, professor de Relações do Trabalho da Faculdade de Economia e Administração da USP.
            Segundo, quanto à crítica aos juízes, estes não são contra as garantias constitucionais, as quais são analisadas globalmente. Uma delas é o acesso à justiça que é obliterado com a destinação dos honorários advocatícios sucumbenciais. Eles se tratam de indenização à parte que gastou contratando um profissional para lhe defender. Historicamente os honorários destinavam-se à recomposição do patrimônio daquele que despendeu recursos na contratação de um profissional para buscar a justiça. Entretanto, o estatuto da ordem mudou a natureza do instituto, tornando-o mais um prêmio ao advogado. Claro que o advogado precisa ser valorizado, pois sem ele não há democracia, e o abuso de poder tende a aparecer com mais freqüência. O advogado é defensor da liberdade, inimigo do arbítrio, da prepotência e do desmando. Todavia, na prática, além dos honorários sucumbenciais há os contratuais. A jurisprudência modificou os percentuais dos contratos reduzindo-os de cinquenta por cento para trinta. Se os honorários sucumbenciais forem fixados em dez por cento, e os contratuais em trinta por cento o profissional fica com quarenta por cento de um bem. É justo? É razoável?. Há no congresso, inclusive, projetos que tornam obrigatória a intermediação de um corretor nas vendas de imóveis. Qual será o percentual? 40%? A OAB será contra ou a favor da medida? isto é um exemplo de como o corporativismo de classe atenta contra o cidadão comum e honesto.
            Terceiro, o discurso em apreço perde o fundamento, pois nos juizados, em que não há condenação em honorários, e, mesmo assim, as demandas não param de crescer.
            Quarto, culpar o juiz brasileiro pelos precatórios não tem fundamento. Não foram os juízes que criaram este instituto. Foi a Constituição que permitiu tal odioso instrumento de legitimação do calote.
            Quinto, quanto a manipulação de índices devidos, lei federal já dispõe sobre critérios de atualização monetária, mandando aplicar a tr. Ainda, foram os tribunais que determinaram a revisão de milhares de valores depositados no fgts e na poupança, distorcidos por planos econômicos que não foram editados pelo Judiciário.
            Sexto, esta tese de que a justiça brasileira serve ao estado e às grandes empresas não tem o menor lastro. Somente Em 2011, a Justiça Federal (JF) pagou, apenas em rpv um total de R$ 5,539 bilhões em requisições de pequeno valor, beneficiando mais de um milhão de pessoas (1.084.630) em 944.122 processos. Já em precatórios foram R$ 12,2 bilhões. Ainda, A Justiça do Trabalho repassou R$ 15 bilhões a trabalhadores que ajuizaram ações ou fizeram acordos em 2011. Segundo levantamento feito pelo Tribunal Superior do Trabalho, o valor é 32% mais alto do que os R$ 11,2 bilhões registrados em 2010. Do total de 2011, R$ 10,7 bilhões, ou 72%, decorrem de execuções trabalhistas encerradas. Os dados estão no TST e no CJF.

  4. A Ministra Rosa Weber sabe melhor do que ninguém que o problema não residente no GRANDE NÚMERO DE HABEAS CORPUS, mas na falta de uma devida estrutura judiciária para julgá-los. A estrutura atual do STF, com apenas 11 ministros, foi pensada em outra época. O País cresceu nas últimas décadas, e o acesso à Justiça também se multiplicou exponencialmente. Há hoje no Brasil cerca de 1.400 faculdades de direito, e cerca de 5 milhões de bachareis. Há 800 mil advogados em atuação, e um grande número de defensores públicos (que não existia há alguns anos). Veja-se que se cada advogado brasileiro ingressasse com apenas 1 habeas corpus no ano, teríamos quase 1 milhão dessas ações para serem julgadas. O Supremo Tribunal Federal, como todos sabem, não se mostra mais com estrutura suficiente para dar a resposta jurisdicional que sua competência determina e o povo brasileiro precisa. A Corte precisa ser ampliada, com mais ministros para julgar. Porém, uma Suprema Corte mais dinâmica significa mais “mensaleiros”, deputados, senadores e todos os demais com prerrogativa de foro sendo julgados mais rapidamente, sem falar nas ações de inconstitucionalidade interessam ao Executivo, cujo atraso no julgamento beneficia os interesses escusos dos detentores do poder. Nesse sentido, a Ministra na verdade não está pensando em solução de problemas, mas dando sua retribuição ao Executivo pelo fato de ter sido nomeada ministra. Ela sabe, melhor do que ninguém que a Suprema Corte deve se adaptar para atender à demanda, e não o contrário, mas teima em adotar postura visando infirmar a Carta da República, retribuindo o favor da nomeação puramente política para o cargo que ocupa. E assim a Constituição vai se esfacelando, enquanto os tentáculos do Executivo e daqueles chegados à arbrio estatal vão se estendendo e dominando a todos.

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