“Responsabilidades que não nos pertencem”

Frederico Vasconcelos

Para juiz, recuperação de valores subtraídos do erário pode readequar orçamento

O texto a seguir é a íntegra do discurso de Heyder Tavares da Silva Ferreira, presidente da Associação dos Magistrados do Estado do Pará (AMEPA), proferido na abertura do “XXI Congresso Brasileiro de Magistrados”, realizado na semana passada em Belém (PA):

Colegas magistrados,

A magistratura nacional desembarca no coração da Amazônia para discutir desafios, elaborar novas ideias e traçar o panorama de transformação social do Século XXI. Talvez por ironia, a mudança de paradigmas que será traçada nos próximos dias, em que a magistratura se vê à porta do futuro, das novas tecnologias, da agilidade nas informações, precisasse voltar seus olhos à simplicidade do caboclo amazônida, do mergulho na vastidão da natureza da maior floresta tropical do mundo, banhada por um rio-mar.

Como anfitriã desse momento ímpar na história associativa, a AMEPA, desde logo, saúda todos os participantes, os quais terão a oportunidade de se encantar com as belezas naturais e arquitetônicas de Belém, prestes a completar quatrocentos anos de História, bem como, aos que aqui chegam pela primeira vez, descobrir o manancial de cultura que brota de nosso solo.

O momento é apropriado para que a magistratura brasileira reflita sobre a atual situação que atravessa diante dos dilemas que lhe foram impostos pela nova ordem constitucional de mais de duas décadas: qual visão a sociedade tem do “ser magistrado”, do cidadão por detrás de uma veste talar.

Estamos enfrentando, sem dúvida, o período de maior cobrança e exposição de todos os tempos. Os julgamentos que outrora estavam restritos a salas fechadas, ao salão dos passos perdidos, ganhou a dimensão de juízo televisionado, ao vivo, on-line, e a população se acostuma com discussões e termos jurídicos, desde o primeiro dedilhar em seus computadores de mão ao noticiário antes da novela do horário nobre.

As rodas de discussões, atualmente, continuam a tratar dos assuntos triviais, da “piada do bar ou o futebol pra aplaudir”, mas, também, hoje se discute dosimetria de pena, domínio do fato entre outras querelas.

E nessa “nova” responsabilidade atribuída ao Poder Judiciário, passamos a viver dicotomias, ora involuntárias, ora derivadas de um engessamento doloso contra a independência na arte de julgar.

Diariamente juízes são cobrados a prolatar sentenças em nome de uma celeridade fictícia, um sem número de relatórios e estabelecimento de metas que, ao invés de nos aproximar da verdadeira entrega da jurisdição, do dizer o direito, nos transforma em simples máquinas de repetição, de copiar e colar, visando a satisfação de vorazes aritméticos de plantão.

E alguns ignoram o trabalho incessante de tão somente 17.000 mil magistrados para uma demanda infinda e retida de causas, muitas delas derivadas da inércia de outros aparatos do estado, especialmente do Poder Executivo em todas as esferas da federação.

Menosprezam, por exemplo, que 26 milhões de julgados no ano de 2011 não surgiram do exercício do ócio, da leniência.

Somos cada vez mais cobrados por responsabilidades que não nos pertencem. A cada dia somos responsáveis desde “a certidão pra nascer à concessão pra sorrir”, esquecendo-se nossos críticos que não cabe ao Judiciário colocar em prática conteúdos programáticos, suprir carências que não estão ao nosso alcance.

À medida que essa visão deturpada progride, outros equívocos em nome dela se consumam: fala-se que magistrado deveria bater ponto. Deveria se sujeitar ao mesmo regime jurídico de um servidor público. Aos algozes do Poder Judiciário bastariam poucos meses de regular acompanhamento de um magistrado para a constatação da necessidade de um banco de horas e da compensação.

Para os juízes da área criminal, por exemplo, um Tribunal do Júri permitiria várias jornadas em repouso. E o que dizer dos magistrados na jurisdição eleitoral? Dias e dias de preparação para votação e apuração já justificariam um afastamento longínquo das funções.

Ao mesmo tempo em que nos comparam ao exercício funcional quase paritário a um celetista, desconhecendo todo o organograma constitucional destinado ao Poder Judicante, por outro lado sofremos, especialmente pelo Executivo Federal, a negligência da simples reposição inflacionária de nossos subsídios.

Somos servidores públicos para o trabalho, mas agentes políticos quando o assunto é a recalcitrância na concessão de direitos.

Custo a acreditar que a questão derive da ausência de recursos financeiros, como bradam os responsáveis pela distribuição orçamentária. Comumente estamos sendo instigados a indicar fontes orçamentárias. Já o fazemos diariamente nas decisões de execuções fiscais e no recolhimento de tributos nas mais variadas demandas.

E digo, Presidente Calandra, a fonte mais adequada para se operar a readequação orçamentária está no controle da corrupção, na recuperação de valores subtraídos do erário. O Poder Judiciário tem feito, diuturnamente, o combate exemplar na restituição de tais valores.

O que se vislumbra, contudo, é que a discussão não mora em recursos, mas na adoção da velha política de cooptação. Muitos querem que sejamos “companheiros”, que utilizemos o nobre juízo de valor como moeda de barganha, do toma lá, dá cá.

E, pasmem, alguns andam descobrindo a pólvora, sustentando que os armazéns de miseráveis não servem para ressocializar ninguém, que preferem à morte a cumprir pena de restrição da liberdade.

Coincidência que o assunto venha a lume depois que penas privativas de liberdade, nunca antes fixadas nesse país, tenham sido exaradas por um Supremo Tribunal Federal independente.

Há pouco mais de cinco anos, uma magistrada paraense foi massacrada indevidamente, com afastamento de suas funções, por lhe ser atribuída a responsabilidade de manter uma mulher em um cárcere inadequado.

Seria dela a missão de distribuir alojamentos entre homens e mulheres, imputáveis ou não? Certamente a resposta é negativa.

Assim como, não nos cabe decidir entre qual paciente um único leito de hospital deve ser sorteado, numa verdadeira roleta-russa pela vida nos centros médicos de todo o Brasil. Qualquer dia, algum “companheiro” doente poderá perceber que, além de presídios, também não temos escolas adequadas, estradas viáveis e casas de saúde compatíveis.

Devem saber, contudo, que ser magistrado não é cargo em comissão. Não é possível nossa demissão desmotivada, tampouco as garantias constitucionais, cláusulas pétreas, podem ser modificadas ao sabor de cores partidárias.

Mas essas inquietações não resumem o sacerdócio da judicância. Sobrevivemos apesar disso, muito além das limitações orçamentárias e das dificuldades de seis anos suportando o galope inflacionário do mundo real.

E mais, caros magistrados, encontros como o que aqui se inicia, servem também como um panorama de um cenário jurídico extremamente diversificado.

Quando se estabelecem metas uniformes em um país continental, ignoram-se particularidades regionais insuperáveis. Sem o risco do discurso do bairrismo, mas na condição de quem recebe convidados em casa, cabe-me destacar que o exercício da magistratura no estado do Pará é profissão de fé.

Algumas comarcas desafiam o transporte sucessivo marítimo, terrestre e aéreo. Em determinadas sedes, isoladas por quilômetros de distância, segurança pública se resume a um batalhão de cinco policiais militares. A regra constitucional da residência na sede da jurisdição se faz de maneira quase forçada, sobretudo no inverno amazônico, em que as vias são levadas pela chuva de dias seguidos.

Os familiares geralmente são deixados na Capital para que tenham acesso condigno a serviços essenciais, como consultas médicas e educação de qualidade. A sina do juiz papachibé, como são conhecidos os paraenses, é a solidão, é a provação de se viver uma vida pela metade, sem poder acompanhar os primeiros passos de seus filhos, sem usufruir do contato social pleno.

E alguns nos chamam de “meia dúzia de vagabundos”. Por ocasião do abrupto e covarde assassinato da magistrada Patrícia Accioli, que deixava o fórum da comarca de São Gonçalo após as 22h, escrevi que a última imagem da magistrada, nas câmeras de segurança do pátio forense, permitiam ver sua toga balançando leve da certeza do dever cumprido de mais um dia. “Meus ombros suportam o mundo, e ele não pesa mais que a mão de uma criança” poderia cochichar consigo a juíza. Sua armadura de pano foi manchada de sangue minutos depois. Não consigo vê-la envolta na lama de acusações levianas contra a magistratura.

Prossigamos a nos indignar e a mostrar que um país de todos não se faz com justiça nas mãos de poucos ou querendo nos encaixar em uma vida de subserviência de pedintes. 

Sejam bem vindos,

Bom encontro a todos!!! Muito obrigado.

Comentários

  1. “Comumente estamos sendo instigados a indicar fontes orçamentárias. Já o fazemos diariamente nas decisões de execuções fiscais e no recolhimento de tributos nas mais variadas demandas”.

    Frase estranha… Muito estranha… Como uma decisão judicial de execução fiscal pode ser relacionada com oportunidade de aumento de salário do magistrado?

    Seria melhor relacionar a oportunidade de maiores ganhos parta todos os brasileiros com o combate à corrupção, diga-se, nos três poderes, e não com a mão no bolso do contribuinte.

  2. É por frases infelizes como “Sobrevivemos apesar disso, muito além das limitações orçamentárias e das dificuldades de seis anos suportando o galope inflacionário do mundo real” é que o Judiciário vem caindo no descrédito da população. Peça para o nobre magistrado e os seus pares permitirem o acesso público a todos os valores recebidos pelos mesmos nos últimos 06 anos e teremos condições de dizer quem vive e quem sobrevive nesse País.

    1. Ô Paulo,
      A maior parte do Judiciário da União (federais e os do trabalho) já está, há algum tempo, com o nome e o subsídios expostos (qual nervo) no portal da transparência. Basta acessá-lo. E não confunda. O que se está a postular é tão-somente a recomposição dos subsídios (ao menos alguma). Garantia constitucional.
      Mas, convenhamos, o texto diz muito, mas muito mais do que as linhas que você fez questão de destacar. Essa atitude, bastante comum (até nos comentários que vemos direto por aqui) mais ilustra e reforça o inconformismo do redator.

      1. Caro Sérgio,

        Está disponível apenas os mais recentes, depois de todas as tentativas frustradas por parte de alguns juízes de impedir a divulgação. Vamos abrir os 06 últimos anos, talvez vá enriquecer e muito o debate. Frisei aquilo que entendi como ofensivo, e repito, ‘sobreviver’ foi um verbo muito infeliz, principalmente para um pais onde o salário mínimo é de r$ 622,00. É preciso um pouco mais de seriedade!!!

        1. Caro Paulo,
          O melhor seria abrir os últimos vinte anos. Aí você iria se surpreender mesmo. A transparência é necessária até para se saber que distinção entre ganhos dentro da própria magistratura e se podar os excessos.
          O salário mínimo é absolutamente irrisório. Até por isso, não pode servir como parâmetro para justificar toda e qualquer pretensão ao menos de recomposição salarial (veja que serviria a todos que ganham acima desse valor), sobretudo em profissões cujas exigências e restrições são (mais ainda) incompatíveis com esses valores.

  3. Realmente a corrupção é o maior mal que assola o Brasil, mas existem outros. Acho se cortar os valores acima do teto de alguns desembargadores, também ajudaria muito. Caso, fiscalizasssem melhor os concursos de ingresso na magistratura, evitando-se a fraude, o apadrinhamento, o nepotismo, a continuidade familiar no judiciário de forma nada heterodoxica, também ajudaria muito, uma nova LOMAM, com fundamentos novos para a magistratura seria muito bem vindos, o cumprimento de seus deveres funcionais por diversos juízes espalhados pelo Brasil afora, pois alguns trabalham muito outros nem tanto. Então, vamos olhar para si mesmo, para depois cobrar dos outros. No mais, torço para que a magsitratura se erga de cara nova, ocupe seu lugar na nova estrutura social e nos novos horizontes que o Brasil está trilhando.

Comments are closed.