Mensalão, Donadon e o trânsito em julgado
Sob o título “O trânsito em julgado das ações penais originárias no STF e a efetividade de suas decisões”, o artigo a seguir é de autoria de Marcos Alaor Diniz Grangeia, Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de Rondônia (*).
Ultimamente muito tem se discutido sobre a possibilidade da expedição de mandado de prisão pelo Supremo Tribunal Federal, antes que ocorra o trânsito em julgado formal e material das condenações, nos casos em que a Suprema Corte atua em sede de Ação Penal Originária.
Em matéria penal, a coisa julgada deve ser entendida como a qualidade de imutabilidade da decisão judicial de mérito ou de seus efeitos, após se esgotarem todos os recursos cabíveis.
Esse conceito, mais moderno, que vem sendo propagado pela doutrina acerca da imutabilidade da decisão judicial, tem como base estrutural o pensamento de Liebman, ao prelecionar que “a coisa julgada não é um efeito da sentença e muito menos pode identificar-se com a eficácia declaratória da mesma sentença: a coisa julgada é algo mais que se acresce à decisão para aumentar a sua estabilidade” (in Manuale di Diritto Processuale Civile, 3ª ed., vol. III, Milano, 1976, pág. 137).
Ao aplicar o instituto da coisa julgada no processo penal, em regra, o Supremo Tribunal Federal tem se posicionado no sentido de que, inexistindo o trânsito em julgado da decisão judicial de mérito, se mostra impossível o cumprimento imediato da pena de prisão, ressalvados os casos de prisão cautelar.
Desde o reconhecimento da inconstitucionalidade da execução provisória da pena no julgamento do HC 84.078 pelo STF, a Corte Suprema assentou o entendimento de que o cumprimento antecipado da pena ofende o direito subjetivo constitucional de não-culpabilidade. Esse posicionamento se embasa, de forma relevante, no Pacto de São José da Costa Rica, ao estabelecer que “toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa” (art. 8º, I).
Recentemente o Procurador-Geral da República, Dr. Roberto Gurgel, requereu a prisão imediata dos acusados nos autos da Ação Penal Originária n. 470/MG. No entanto, embora tenha o Procurador-Geral alegado que foi a primeira vez que o Supremo Tribunal Federal se debruçou sobre um pedido de execução imediata de pena decretada pelo próprio Tribunal, e que acima dele inexiste instância revisora, o Presidente do Supremo Tribunal Federal negou o pleito e reafirmou o entendimento de não ser cabível o início da execução penal antes do trânsito em julgado da condenação e, no caso específico, completou o Min. Joaquim Barbosa a prisão cautelar não se justificava.
De outra banda, noticiou a “Folha de S.Paulo”, na edição de 9.1.2013, coluna “Painel”, que, nos autos da Ação Penal Originária n. 396/RO, em que figura como réu o Deputado Natan Donadon, o Procurador-Geral da República também requereu no dia 8.1.2013, a execução imediata da pena aplicada ao mencionado deputado federal. Segundo relatou o Procurador-Geral da República, o acusado foi condenado pelo Supremo Tribunal Federal em sua composição plenária, a 13 (treze) anos, 4 (quatro) meses e 10 (dez) dias de prisão em regime inicialmente fechado.
Apontou ainda o Procurador-Geral da República, que o acórdão condenatório foi impugnado por meio de embargos de declaração, que foram desprovidos pelo Plenário do STF em 13.12.2012 e, muito embora não tenha sido publicado o acórdão dos embargos de declaração e, consequentemente, ainda não tenha sido formalizado seu trânsito em julgado, a aplicação imediata da pena de prisão é medida que se impõe, pois o acórdão condenatório carrega a característica de definitividade. (doc. 8901-PGR-RG, petição datada de 8.1.2013)
A comparação entre os casos mencionados determina a necessidade de se fazer um corte temporal em relação ao processo da Ação Penal Originária n. 470/MG (mensalão) e a Ação Penal Originária n. 396/RO (Deputado Natan Donadon).
Na Ação Penal Originária n. 470/MG (mensalão), sequer houve a publicação do acórdão condenatório. Assim, a meu ver, não ocorreu a concretização da jurisdição do Supremo Tribunal Federal, aplicando-se aqui corretamente o entendimento da impossibilidade de se iniciar o cumprimento das penas impostas aos réus, porquanto os recursos cabíveis em relação à condenação podem levar à sua alteração, no que tange à fixação das penas e seu regime de cumprimento.
Estando a jurisdição aberta à interposição inicial de embargos de declaração, ainda que de forma excepcional e atípica, pode ocorrer a modificação do julgado por meio do que parte da doutrina e jurisprudência denomina efeitos infringentes ou modificativos, afastando, por ora, a conclusão de que o acórdão, neste caso, possui carga de definitividade.
A respeito, vejamos a doutrina de Cândido Rangel Dinamarco, que inclusive cita alguns entendimentos jurisprudenciais sobre o tema:
A doutrina e a jurisprudência, contudo, admitem, em casos excepcionais, a hipótese dos chamados embargos de declaração com efeito infringente, em que há alteração substancial do julgado. É de se ressaltar que a modificação substancial do julgado só ocorre quando, em decorrência da correção dos vícios de omissão, contradição ou obscuridade, há, por conseqüência lógica e natural, transformação do conceito do julgado. Nesse sentido, Adroaldo Furtado Fabrício: “Nada impede, pois, que a petição de embargos inclua pedido de feição ‘infringente’ – mas o pedido primário do embargante há de ser, obrigatoriamente, o de remoção de algum dos defeitos tratados no citado artigo; só como imperativa decorrência lógica dessa correção poderá sobrevir o provimento do pedido secundário de modificação” (FABRÍCIO, Adroaldo Furtado. “Embargos de declaração: importância e necessidade de sua reabilitação” in Meios de impugnação ao julgado cível: estudos em homenagem a José Carlos Barbosa Moreira. FABRÍCIO, Adroaldo Furtado (Coord.). Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 60). No mesmo sentido, confira-se o seguinte aresto do Superior Tribunal de Justiça: “É admitido o uso de embargos de declaração com efeitos infringentes, em caráter excepcional, para a correção de premissa equivocada, com base em erro de fato, sobre a qual tenha se fundado o acórdão embargado, quando tal for decisivo para o resultado do julgamento” (STJ, 3ª T., EDcl no REsp. nº 599.653/SP, Min. Nancy Andrighi, D.J. de 22.08.2005). Em sentido assemelhado: STF, 2ª T., Emb. Decl. no Ag. no AI nº 410.536/RJ, Min. Cezar Peluso, j. 12.08.2008, D.J. de 28.08.2008, STF, 2ª T., RE nº 115.911/SP, Min. Eros Grau, j. 24.06.2008, D.J. de 14.08.2008 e STF, 2ª T., Emb. Decl. RE nº 223.904/MG, Min. Ellen Gracie, j. 14.12.2004, D.J. De 18.02.2005. (“Os embargos de declaração como recurso” in Nova era do processo civil. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 179
Com efeito, considerando que subsiste a possibilidade de atribuição de efeitos infringentes aos embargos de declaração, o acórdão da Ação Penal Originária n. 470/MG poderá em tese sofrer alterações, sendo inviável, por enquanto, o início do cumprimento das penas impostas aos acusados.
No entanto, na Ação Penal Originária n. 396/RO, o quadro processual é diferenciado. Conforme salientou o Procurador-Geral da República na petição em que foi requerida a prisão do Deputado Natan Donadon, o acórdão condenatório proferido pelo Supremo Tribunal Federal já foi publicado e os embargos de declaração propostos foram julgados improcedentes e, por via de consequência, a condenação foi mantida na sua íntegra.
É certo que, no ato da publicação do acórdão condenatório da Ação Penal Originária n. 396/RO, abriu-se para a defesa a possibilidade de impugná-lo por meio de embargos declaratórios, para sanar suas eventuais omissões, obscuridades ou contradições, bem como poderia haver a remota possibilidade de se obter efeitos infringentes de caráter modificativos.
Entretanto, diante do desprovimento dos embargos de declaração inicialmente interpostos, inegavelmente, neste caso, já se produziu materialmente o efeito da coisa julgada, e o julgamento do mérito já se revestiu da qualidade da imutabilidade ou definitividade, pois foi ele submetido ao filtro dos embargos de declaração e o Supremo Tribunal Federal reconheceu a impossibilidade de alteração dos fundamentos da condenação em virtude da não ocorrência dos defeitos processuais da omissão, contradição ou obscuridade.
Assim, salvo a existência de erro material, toda matéria e discussão relativa a fatos inerentes à pretensão punitiva sustentada pela defesa já foram apreciadas no julgado de mérito ação penal originária e nenhum defeito processual foi visualizado na ocasião do julgamento dos embargos de declaração.
Nesse passo, considerando que o Supremo Tribunal Federal ao exercer sua jurisdição originária, não se submete a outro órgão de caráter jurisdicional da República, tem-se por incabível, na seara da Ação Penal Originária n. 360/RO, a possibilidade de revisão da condenação.
Ademais, a qualificação da definitividade da decisão judicial de mérito da ação penal originária n. 396/RO já se operou. E essa conclusão, como dito, decorre do fato de que o referido processo penal, neste caso, se desenvolve perante a mais alta Corte do País que não possui instância revisora de mérito e porque os embargos de declaração propostos já foram rejeitados e, desta forma, houve a formação plena da coisa julgada formal e material, ainda que não tenha sido publicado o acórdão dos embargos declaratórios.
O próprio Supremo Tribunal Federal tem dado exemplos nesta linha de pensamento, ao decidir pela possibilidade de ser iniciado o cumprimento da pena, quando a defesa do acusado utiliza expedientes ou recursos protelatórios, manifestamente incabíveis e de caráter abusivo com o objetivo de retardar o trânsito em julgado da condenação. A respeito veja-se os seguintes precedentes do STF: AI 715215 AgR-ED-ED, AI 759.450-ED/RJ, HC 99.157/RJ, RMS 23.481-AgR-ED-ED/DF, AI 741.016-AgR-ED-ED/RR e AI 716.970-AgR-ED-AgR-ED/RJ.
Por fim, ainda que se cogite o ajuizamento de revisão criminal da condenação, vejo que essas conclusões se mantêm, principalmente em razão da excepcionalidade de eventual concessão de antecipação de tutela para sustar provisoriamente os efeitos da coisa julgada, visto que, a princípio, a medida antecipativa da tutela só tem cabimento em casos de teratologia, o que não se vislumbra no julgado condenatório do Supremo Tribunal Federal na Ação Penal Originária n. 396/RO.
Assim, conclui-se pela necessidade de adequação e releitura dos institutos da coisa julgada e dos embargos de declaração aos caracteres das ações penais originárias em trâmite perante o Supremo Tribunal Federal e diferenciar as circunstâncias concretas de cada caso sob a ótica do princípio da não-culpabilidade e da necessidade de se emprestar maior efetividade as decisões judiciais condenatórias prolatadas pela cúpula do Poder Judiciário Nacional.
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REFERÊNCIAS
LIBMAN, Enrico Túlio. “Manuale di Diritto Processuale Civile”, 3ª ed., vol. III, Milano, 1976, pág. 137.
DINAMARCO, Cândido Rangel. “Os embargos de declaração como recurso” in Nova era do processo civil. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 179.
Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), de 22 de novembro de 1969