Fora da Constituição não há salvador ou herói
“O papel do juiz é muito mais modesto do que se imagina”, afirma magistrado
Sob o título “A entrevista do Ministro Joaquim Barbosa: dos quadrinhos para a vida real”, o artigo a seguir é de autoria de Rosivaldo Toscano dos Santos Júnior, juiz da 2ª Vara Criminal da Zona Norte de Natal (RN) e membro da Associação Juízes para a Democracia. O texto foi publicado originalmente em seu blog (*).
“(…) fora da Constituição não há salvador ou herói. Ademais, a aceitação do utilitarismo e de discursos moralistas-reducionistas, por mais honestos e íntegros que sejam seus emissores, abre as portas à permissividade para a criação de caudilhos – porque o fundamento é sempre o mesmo: o discurso de autoridade lastreado apenas na pretensa boa vontade dessa mesma autoridade. Temos que lembrar que os homens passam, mas as instituições permanecem. Nunca devemos deixar um legado que possa ser mal utilizado no futuro, ainda mais quando a história mostra um mal uso dele.”
Li a entrevista do ministro Joaquim Barbosa. Segundo ele, a mentalidade do juiz “é mais conservadora, pró status quo, pró impunidade.” Já os membros do Ministério Público teriam uma mentalidade mais rebelde, contra o status quo, com pouquíssimas exceções. Segundo ele, ainda, as carreiras de juízes e de procuradores ou promotores de justiça seriam muito próximas. Disse também que ainda que o nosso sistema penal é um sistema “muito frouxo”. E cobrou uma reforma na mentalidade dos juristas.
Creio que a entrevista foi paradoxal em algumas passagens e que, por isso, merece algumas colocações.
As funções de promotor e de juiz são bem diversas e não dependem da mentalidade de cada um. Derivam da Constituição e das leis. Promotor investiga, acusa. Juiz julga. Promotor é parte. Juiz é imparcial. Promotor denuncia, com base em indícios, após um procedimento de natureza inquisitiva e sigilosa. Juiz julga com base em provas, somente após ouvir a antítese, e em um processo que é, via de regra, público. E ai do Estado em que há confusão entre elas. O que ambos têm em comum é a necessidade de respeitar a Constituição. Dela deriva, dentro de um Estado Democrático de Direito, o sistema acusatório, marcado pela separação das funções de acusar, de defender e de julgar.
O sistema penal não pertence ao Judiciário. O papel do juiz, aliás, é muito mais modesto do que se imagina dentro desse sistema. Primeiramente, devido ao princípio da inércia. O juiz não investiga. Ou se investiga, não está agindo como juiz. Só atua nos limites do que lhe chega às mãos e com o que lhe chega. Ademais, o sistema penal é apenas parte do sistema de controle social, que compreende não só instituições públicas, mas privadas também. Desde o Poder Legislativo – que tem a função de criar as normas penais e processuais penais que serão interpretadas pelo Judiciário nos casos concretos; passando pelo Executivo, que cria e mantém os órgãos da Segurança Pública, que previnem e investigam crimes, e o sistema carcerário; pelo Ministério Público, que tem mais de uma centena de atribuições e, entre elas, acusar e fiscalizar o cumprimento das normas por toda a sociedade. Instituições como a igreja, a família e os meios de comunicação também interferem nesse processo.
É reducionista o discurso que acusa a magistratura de modo generalizado e sem levar em consideração essas implicações.
Não nos enganemos: toda solução simples para questões complexas é um engodo. E toda postura de se contentar com respostas prontas, argumentos de autoridade e reducionismos revela deficiente senso crítico. Um existência autêntica requer esforço, e a pior prisão é a da mente que se contenta com o que está-aí-dado. Viver com autenticidade requer reflexão. E uma reflexão dessa ordem engloba – antes de tudo – a compreensão sobre o que se está refletindo numa perspectiva multidisciplinar: social, política, jurídica, econômica e histórica.
Também vejo com preocupação a criação, pela mídia, de uma figura super-heroica, ainda que sua capa seja uma toga. Isso porque como toda criação mítica (e mística), o super-herói precisa de uma antítese. Afinal, que seriam deles sem os vilões. E, claro, o super-herói, com base em sua visão individual, no seu “ideário de justiça” é quem elege quem são os vilões e quem é contrário à sua “justiça”. Mas a vida em sociedade é muito mais complexa do que as histórias em quadrinhos. Mais grave quando estamos a tratar do Brasil, marcado historicamente pelo autoritarismo. O discurso do herói abre as portas para posturas autoritárias, ainda que bem intencionadas e paternalistas. Isso é fruto do nosso próprio processo de colonização, estabelecido por meio de uma invasão violenta que “descobriu” o Brasil, “encobrindo” os nativos e, posteriormente, os escravos. Tudo feito à força pelos “bons”, pelos “homens de bem”.
Se todo agente público tem o poder potestas (o que manda, diretamente), é sempre fundamentado no potentia, o poder difuso e reconhecido logo no primeiro artigo da Constituição. Este deve ser o seu norte de atuação. Portanto, fora da Constituição não há salvador ou herói. Ademais, a aceitação do utilitarismo e de discursos moralistas-reducionistas, por mais honestos e íntegros que sejam seus emissores, abre as portas à permissividade para a criação de caudilhos – porque o fundamento é sempre o mesmo: o discurso de autoridade lastreado apenas na pretensa boa vontade dessa mesma autoridade. Temos que lembrar que os homens passam, mas as instituições permanecem. Nunca devemos deixar um legado que possa ser mal utilizado no futuro, ainda mais quando a história mostra um mal uso dele.
Se formos olhar para trás, esse mesmo discurso utilitarista, desvinculado da normatividade, estava aqui sendo utilizado há menos de quarenta anos… Vivenciamos as trevas de uma ditadura militar faz pouco tempo, também com base em discursos morais. A democracia, por outro lado, exige o respeito às regeras do jogo democrático. E a democracia é algo muito importante para ser posta de lado em nome de utilitarismos. Precisamos ter muita cautela. Uma democracia nunca se consolida. Ela se renova (ou não) a cada manhã. O core, o seu núcleo, reside na obediência às regras do jogo democrático – no respeito aos direito fundamentais. Na entrevista, aliás, não houve acusação de que os juízes desrespeitavam a Constituição. Aliás, só consta uma vez a transcrição da palavra “Constituição” na entrevista, ao tratar da competência do STF. Isso não me passou despercebido e acredito que a muitos também.
Soa paradoxal a afirmação de que o sistema penal brasileiro é “frouxo”. Temos a 5ª população do planeta, mas 4ª população carcerária do mundo: mais de quinhentas mil pessoas presas. E temos, ainda, duzentos mil mandados de prisão não cumpridos. Prendemos muito e prendemos mal. Isso não restou esclarecido na entrevista. O que temos, sim, é uma seletividade penal muito acentuada. Dados estatísticos do INFOPEN, do Ministério da Justiça, apontam que temos duzentas e cinquenta mil pessoas presas por crimes contra o patrimônio, apenas mil por crimes contra a administração pública e, pasmem, só cento e oitenta por tortura. No Brasil, é mais fácil alguém morrer atingido por um raio do que ser condenado por tortura.
Essa seletividade começa já na feitura da lei. Não por menos, um furto qualificado tem pena igual à tortura. A pena de uma sonegação fiscal milionária é praticamente a metade da prevista para o mesmo furto. Nosso sistema penal termina protegendo quem tem contra quem não tem. Ademais, a investigação policial no Brasil é toda direcionada contra as camadas mais pobres. Não existe, sequer, infraestrutura adequada para apuração de crimes econômicos, financeiros ou contra a Administração Pública. Ao invés do trabalho de inteligência voltado à proteção de valores metaindividuais, a brutalidade da criminalidade patrimonial individual e ordinária, das ruas, o que serve para isolar os que já são oprimidos. Protege quem tem contra quem não tem. O discurso reducionista termina por reafirmar essa violência sistêmica, que está diluída secularmente no seio de nossas relações sociais. Apenas bradar que os juízes são pró-impunidade – quando as leis que punem os poderosos é que são brandas – serve apenas para desviar o foco desse problema. Já se tem o herói e agora os vilões: os juízes. Essa ficção vira discurso ideológico da razão instrumental em favor do status quo. Por que não, então, questionar tratamento tão desigual nas leis penais?
Emblemático quando nos deparamos com uma realidade inescapável. O Supremo Tribunal Federal tem uma história de mais de duzentos anos. E quantos foram os mandados de prisão decretados com base em condenações em ações penais originárias? Não seria o discurso mais adequado alertar para a seletividade do sistema penal, reconhecer a responsabilidade do Poder que faz as leis que os juízes aplicam e cada um assumir sua parcela de responsabilidade, proporcional à amplitude do exercício do seu poder? A começar pelo STF? Por que não uma audiência pública para se discutir o foro por prerrogativa de função?
Fora tudo isso, não creio que os problemas do Brasil se resolvam com cadeia. Antes de políticas de segurança pública, precisamos de políticas públicas de segurança (saúde, educação, transportes, moradia, salubridade, etc.). E atribuo um papel mais modesto ao Judiciário nesse âmbito. O governo não é dos juízes. O Supremo Tribunal Federal pode participar, estimulando o debate, desde que respeite a separação de Poderes. Precisamos aprofundar nossa democracia, no sentido de fortalecer o poder potentia (diluído no povo) e não o potestas (o poder delegado), a começar por uma reforma política que melhor combata a captação ilícita de votos, que dê fim aos investimentos privados em campanhas eleitorais (recuso-me a chamar de doação) e que limite a reeleição até mesmo no Legislativo, para evitar a criação de caudilhismos políticos. Precisamos de um marco regulatório do “quarto poder”, um poder de fato e que muitas vezes apenas tem em vista seus próprios interesses. Precisamos democratizar os meios de comunicação de massa, possibilitando a dialética para além do discurso único dos grandes conglomerados midiáticos, de modo a não mais permitir o atual modelo oligopólico que se esconde sob o discurso da liberdade de imprensa, como se essa liberdade só pertencessem a eles. Precisamos refletir sobre nosso modelo econômico e como se implementar uma melhor distribuição de renda. Isso somente para começar.
A entrevista do Presidente do STF, bem como sua vociferação verbal, dias depois, contra um repórter, mostrou o homem por trás da figura midiática do “Ministro super-herói” – mi(s)tificação que, aliás, sequer vi o próprio Joaquim Barbosa aprovar.
Lembro que, quando criança, nunca fui adepto nem da DC Comics e nem da Marvel. Gostava mesmo era do Pato Donald. Meu único herói era meu pai. Mas eu tinha cinco anos. Após isso, cresci sem me afeiçoar a qualquer super-herói e continuo achando que “Liga da Justiça” é coisa de história em quadrinhos. Na vida real, em se tratando de Justiça, o que existe é a necessidade do juiz nunca se afastar do referencial normativo que é a Constituição – com seu catálogo de direitos e garantias fundamentais – materiais ou processuais. Ela é a verdadeira “liga”. Entre o texto e a norma, na interpretação do direito, é o elo que nunca pode ser perdido.
O texto só confirma que o Min. Joaquim Barbosa está certo. Os juízes são frouxos e são os principais responsáveis pela impunidade e pela corrupção. Fossem eles duros e lessem a Constituição corretamente, o Brasil não seria a bagunça que é. O autor do texto vive num mundo etéreo, longe da realidade.
Fico com Barbosão. Pelo menos ele nunca absolveu indivíduo encontrado com 300 predras de crak
Parabéns pelo texto, Rosivaldo (CP). Honesto, esclarecedor e útil.
Tenho a impressão que o MM Juiz se atem a ordem Constitucional, para que Juízes Ministros, não fujam aos conceitos, todavia, não demonstra preocupação que a norma constitucional vem sendo a muito passada por cima por um trator chamado POLITICA, o que o povo comenta não é o Herói, como Vossa Excelência quer colocar, o povo nunca viu um Magistrado, impedir, atrapalhar e insurgir abertamente diante das “maracutaias”, até pouco tempo, não havia politico condenado, eu digo condenado de verdade, não como o Sr. Maluf, onde estavam os magistrados para impedir o que nesse país vem acontecendo a décadas, crime de colarinho branco não dá cadeia, pois nosso pseudo herói, como muitos querem, está aí dando a cara a bater, seja pela mídia, seja por sue próprios colegas Ministros ou pelos inúmeros Magistrados, que para o povo simples, são imunes a muito, veja o Lalau?, não creio que sua manifestação “anticonstitucional”, seja pior que um Juiz ladrão e corrupto, porque não ajudar?, há tem a constituição, e é por essas idéias, obsoletas, retrógadas, o MP por exemplo, acusa, denuncia, e investiga (?), tudo dentro da norma Constitucional (?), há controvérsias, como pode alguém buscar provas, e ao mesmo tempo acusar?, vejam inúmeros casos de pessoas condenadas por erro do judiciário, que condena com base na prova colhida pelo MP, porque não dar ao defensor o mesmo direito de investigar, há não é Constitucional, fica então permissivo o erro que não é pequeno, pode em alguns casos ser condenado pela condenação primária da mídia, há mais isso também não é constitucional?, bom o que eu penso, não vale, mas aquilo que o Ministro Joaquim pensa, acho que vale para o povo.
Em muito contorcionismo jurídico para constar uma coisa pura e simples 😮 autor da frase pisou (e feio) na bola ponto final…
Entao o bandido e o oprimido e a policia em nome do mal, tenta usando o super poder que tem para oprimi-la mais ainda.
Por favor da uma pequena olhada para ver quem sao as vitimas dos crimes e vai ver que as vezes a vitima e a mais oprimida, porque nao tem a quem se socorrer.
Um texto simplesmente brilhante.
Vejo com um pouco de preocupação o estado emocional deste que para mim e de milhões de brasileiros, se mostra um patriota, ao ir contra a corrupção que existe e vive em nosso pais, desde o tempo do império, é a primeira vez que um juiz julga condena e põem na cadeia(faltando ainda o que chamam de embargos) os criminosos do COLARINHO BRANCO, eu gostaria que os Juizes que se encontram melidrados com o pronuciamento do Ministro Joaquim Barbosa, entendessem a pressão que recebe de um partido corrupto, onde foi desmacarado pelo Deputado Roberto Jefferson, que se não tivesse feito aquelas denuncias, nós não estariamos sabendo de tanta CORRUPÇÃO. Quando um Juiz de grande conhecimento, que tem admiração e respeito no mundo. Juiz que de familia humilde, que estudou e muito, que fala diversos idiomas, que já nos representou em paises do primeiro mundo, que sofre uma tremenda pressão, porque julgou e condenou os maiores corruptos que este pais já conheceu, claro que este juiz, mesmo sabendo que existe no fundo um certo preconceito contra sua pessoa, e que existe tambem um grande ciume, por tudo que ele representa para o povo brasileiro que pela primeria vez entende que um Juiz se coloca contra um governo que ampara e encobre alguns destes corruptos, eu como milhões de brasileiros que vive na nossa democracia, não desejamos de modo algum que nosso Pais, possa a ser governado por ditadores, que hoje se espelham por incrivel que pareça em ditadores como hoje sabemos que limitam a liberdade de ida e vinda, de expressão. Fico muito preocupado com uma parte da imprensa que demonstram grande interesses em divulgar notícias sobre este governo que grande parte da população rejeita, embora saibamos que uma outra parte, composta por alienados, ignorantes, analfabetos, que se deixam vender por estas cestas-miserías, embora tambem tenho que mencionar( oque para mim é inacreditavel ) que muitos intelectuais, artistas, empresários, apoiam este desgoverno que está nos mostrando só promessas de fatos e coisas que não se concretizam, e que, ainda pior fomentando e se deixando crescer a CORRUPÇÃO. Em razão de tudo isto e mais alguma coisa que deixei de mencionar, é que entendo perfeitamente o comportamento do Juiz Joaquim Barbosa, e torcendo para que ele não se curve, e continue nós deixando acreditar que ainda existe neste País, pessoas que não aceitam que continuemos vivendo c0m esta CORRUPÇÃO deste DESGOVERNO DO PT.