Problemas da máquina e inépcia estatal
Trechos de entrevista concedida pelo juiz Guilherme de Souza Nucci ao repórter Pedro Canário, do site “Consultor Jurídico“:
Sobre se o Ministério Público pode investigar:
Sozinho, não. O próprio promotor abre investigação no gabinete, colhe tudo, não dá satisfação para ninguém, e denuncia. Não. Não e não mesmo. As pessoas estão confundindo as coisas. Ninguém quer privar o Ministério Público de fazer seu papel constitucional. Estão divulgando essa questão de uma forma maniqueísta: pode ou não pode investigar? O MP é bom ou é mau? Isso não existe, é infantil. Ninguém é criança, para achar que é o legal ou o não-legal, o bacana ou o não-bacana. O que a gente tem de pensar é o seguinte: o Ministério Público é o controlador da Polícia Judiciária. Está na Constituição Federal. A Polícia Judiciária, também de acordo com a Constituição Federal, é quem tem a atribuição da investigação criminal.
Sobre o foro especial por prerrogativa de função, ou foro privilegiado:
Sou contra. Não vejo nenhum sentido em qualquer autoridade ter direito a um foro específico, especial. Acho que deputado, senador, juiz, promotor, seja quem for, tem que ser julgado por um juiz de primeiro grau. Daí ele tem direito a recurso para o tribunal, depois para o Superior Tribunal de Justiça e, se for o caso, para o Supremo. Como qualquer réu.
Sobre o preso no regime fechado, que ganha o direito de progredir, mas não há vagas no semiaberto:
Tem que ir para o aberto direto. Está no fechado, ganha o direito, defiro. Não tem vaga, mas o que o preso tem com isso? O que é que o indivíduo tem com a inépcia estatal? “Ah, ele que apodreça no fechado porque a sociedade também não tem nada com isso.” Mas foi a sociedade que elegeu o governo. Então alguém tem que ser responsabilizado por esse indivíduo ter ido para a rua antes da hora. E se ele matar, estuprar, fizer acontecer, a culpa é do governante. A culpa não é do desembargador que deferiu o Habeas Corpus para ele ir para o regime aberto. É preciso que amanhã, quando esse indivíduo delinquir de novo porque ele não estava preparado para ir para o aberto, que todo mundo se reúna e fale: “Culpa de quem? Do Executivo”.
Sobre o prazo prescricional:
A prescrição existe porque o Estado é ineficiente. Se o Judiciário leva 20 anos para julgar, o que o réu tem com isso? O problema da máquina é a efetividade, um processo não pode se arrastar por milênios. A prescrição atrapalha? Vamos reformar o Regimento Interno do STF, que está muito desatualizado, vamos reformar algumas leis penais e processuais, para readaptar, porque o Código Penal é de 1941. Mas tenha certeza: mudar lei não muda mentalidade.
Sobre a atuação do CNJ:
Não acompanho diretamente, não sei internamente como as coisas funcionam, mas pelo que leio, o impacto tem sido positivo. Juiz que trabalha não é perturbado pelo CNJ. O mau juiz, de fato, deve responder, deve ser perturbado. Mas é claro que a gente tem de ponderar. Fui assessor da Corregedoria aqui em São Paulo em 2000 e 2001. A gente fiscalizava bem, perguntava por que não estava trabalhando. E o juiz respondia: “Porque estou sem funcionário”. E aí o que se pode fazer? Nada. Precisamos ponderar para que não haja injustiça.
É estranho que o Dr. Nucci, com a experiência que tem, defenda a exclusividade da Polícia para investigar, quando esta exclusividade, no mundo, ocorre apenas no Quênia, Uganda e mais um ou dois países com tradição “democrática” similar. Este absurdo fica mais evidente quando é público e notório o estado de desaparelhamento das Delegacias de Polícia de norte a sul do país, com pessoal insuficiente e mau remunerado. No que toca à progressão de regime em salto do fechado para o aberto, também chama atenção em suas considerações uma postura digna de Pilatos, visto que o entrevistado simplesmente lava as mãos como se ele, enquanto Juiz, não tivesse responsabilidade alguma nas conseqüências negativas oriundas de tal progressão espúria. Chega a ser notável o esforço que o Magistrado faz para tentar convencer os leitores de sua absoluta ausência de responsabilidade em relação a um novo estupro ou um novo homicídio que aquele condenado (antecipadamente colocado no regime aberto) venha a praticar. De forma que, ao contrário do que pensa o entevistado, quando a sociedade se reunir e perguntar “Culpa de quem?” por mais um estupro ou por mais um homicídio, a resposta será, sim, que a culpa é também do Juiz ou Desembargador, do Promotor de Justiça ou do Procurador, que contribuíram, no caso concreto, para a colocação daquele condenado em liberdade. Que conversa mole é esta de que “alguém” tem que ser responsabilizado, mas nunca o Juiz que assinou a progressão indevida?! Nesta situação, tentar jogar a culpa exclusivamente no Poder Executivo é muito conveniente, motivo pelo qual convém lembrar ao Dr. Nucci que, na qualidade de Magistrado, ele também figura como um órgão do Estado, com tanta responsabilidade ao liberar o preso do regime fechado para o aberto, quanto a tem o governador que não constrói presídios suficientes, ou o legislador que cria leis frouxas. Fato é que nós podemos adotar uma série de justificativas para ter um posicionamento tal como o do entrevistado, mas depois não adianta querer fingir que não temos nada a ver com as derivações nocivas desta atitude; a velha estória do “filho feio não tem pai”; tem, sim, muitos pais, um deles, neste caso, o Juiz da Execução Penal. Fica a triste impressão que é fácil se iludir para tentar dormir com a consciência tranqüila. Boa noite.
Caro Senhor André,
Estamos todos limitados pela lei. Muitas vezes, a realidade é muito diferente das teses filosóficas. O Juiz estuda a teoria, mas deve adaptá-a à realidade. O que o Magistrado deve fazer sobre a questão? Penso que sobre o tema, o colega Nucci está certo.
O Magistrado deve aceitar as limitações sistêmicas e divulgar para a população os verdadeiros responsáveis pelo caos. O Magistrado tem os seus limites.
Para o senhor é fácil dizer que todos são responsáveis porque quem decide sobre a vida do homem é o Juiz. Por isso, a sociedade sempre joga culpa no Poder Judiciário – Juiz.
A situação é muito mais complexa. A população não entende que todos os operadores do direito são responsáveis pelo sistema, como o senhor bem pontuou.
Em relação ao poder de investigar do MP, eu não vejo problema, desde que, a investigação não seja sigilosa ao Poder Judiciário.
Não podemos pactuar com procedimentos kafkanianos, não?
A opinião do Professor Nuci merece ser respeitada, mas não é a opinião da maioria dos Magistrados.
Nós desejamos uma Promotoria atuante e responsável.
No entanto gostaria que o Promotores se preocupassem também com o controle prescricional das ações penais. Principalmente, no Tribunal e em algumas varas do interior. O Ministério Público não deve se omitir sobre a questão.
A função de fiscal dos processos também é relevante e acaba sendo esquecida.
Todos nós podemos contribuir para o aprimoraramento do sistema. O senhor não acha?
Precisamos mostrar para a população que o Ministério Público investiga, mas, também, fiscaliza as ações penais e impede a impunidade e as prescrições.
Afinal de contas, os Magistrados não carregam os processos nas costas sozinhos, não? Ele pode confiar que o Promotor está ali para colaborar com o Juiz contra a impunidade.
É assustador como em todas as entrevistas os juízes gostam de destacar a falta de responsabilidade do judiciário. Tudo é culpa ou do executivo ou do legislativo. É um poder sem responsabilidade NENHUMA sobre NADA. Tem que ser muito cov…corajoso para dizer tais coisas. Provavelmente quando interpretam leis, criam jurisprudências e fazem súmulas, eles encaminham algum ofício ao executivo ou ao legislativo para saber o que fariam se fossem juízes.
Caro Senhor Frederico,
Gostaria que o Senhor informasse as regras do blog para o Senhor Maurício.
O comentário acima é desabonador e demonstra que o leitor não está disposto a debater os assuntos do blog, mas, sim, atacar gratuitamente a Magistratura.
Senhor Maurício,
Faça a gentileza de denunciar os Magistrados que o senhor cita de forma genérica. E, por favor, leia a Constituição.
Respeite as opiniões divergentes.
att.
Uma questão a ser enfrentada pelo ilustre jurista. Se o MP não pode investigar, isto é, produzir a própria prova, a defesa poderá fazê-lo? Um advogado que pretender juntar aos autos criminais uma declaração em prol do réu deverá submeter tal prova ao crivo do delegado? Afinal, somente a investigação da polícia é constitucional. O advogado/defensor não poderá juntar, por exemplo, laudos que encomendou a peritos, fotos do local de um acidente, gravação de um telefonema que inocentaria o acusado?
Ou somente o titular da ação penal estará privado de buscar sua prova?????
Como assim o promotor não dá satisfação a ninguém. O advogado ou o juiz não verificarão como foi obtido as provas? Mesmo provas colhidas na legalidade são anuladas, imaginem as ilegais. Gostaria muito de ver a cena surreal do promotor fazer todas as provas dentro do gabinete. De onde o juiz tirou essa linha de raciocínio?
Gostaria que o professor esclarecesse quando que a parte deixa a produção das provas para outros?
Como pode o MP acusar, e não pode conduzir a produção das provas?
Guilherme, parabéns por sua coragem em exigir limites para atuação do MP. MP não é quarto Poder. Seus poderes de investigação não são ilimitados.
De pleno acordo com a maioria das opiniões do entrevistado. Tenho dificuldades entretanto em concordar que frente ao dilema indivíduo-sociedade esta deva ser sacrificada ou colocada em situação de risco. Sabe-se que não há recursos suficientes para transporte público, para educação pública, para saúde pública e, claro, para a segurança pública. E então o homem-comum, que contrata plano de saúde, paga escola privada para os filhos, desloca-se em automóvel (caro!) para o trabalho, ainda terá que preocupar-se com sua segurança pessoal e patrimonial ??? Parece “escolha de Sofia”…
Parabéns ao magistrado. Fala sem rodeios e sem “frescuras” o que sabemos todos.