“O pedaço de Justiça que lhes falta”

Frederico Vasconcelos

Sob o título “No tempo de Magistratura que me resta”, o artigo a seguir é de autoria do juiz Newton Fabrício, do Rio Grande do Sul, e foi publicado originalmente em seu blog “Peleando contra o poder” (*). O texto foi motivado pelo vídeo em que funcionários de uma vara cível em Novo Hamburgo (RS) dançaram no estilo Harlem Shake, na última sexta-feira (12/4), fazendo dos processos uma pista de dança.

 

Os olhares são diferentes.

Vêem coisas diferentes.

Alguns, quando olham pra um processo, vêem, entre a capa e a contra-capa, folhas, papel, letras.

Outros vêem um processo, um número, um trabalho a fazer (mais um), uma sentença a proferir.

Eu olho e vejo vida. Na verdade, vejo vidas. E nas vidas, conflitos. No conflitos, amores desfeitos, lares estraçalhados, vidas a serem refeitas. Ilusões findas; desilusões. Vejo tristezas, mágoas, paixões fulminantes que terminam, casais que se separam, filhos que choram. Empresas quebradas, chefes de família desempregados, sonhos que se tornam passado.

Enxergo contratos não cumpridos, negócios desfeitos, palavras não honradas, apertos de mão sem qualquer valor, pois feitos por homens que não sabem o que significa o valor da palavra. Vejo dramas – e, às vezes, tragédia.

Porque isso tudo é vida. Isso é o que existe dentro de cada processo.

Porque o juiz trabalha com vidas em conflito. O juiz trabalha com pessoas que se encontram no momento mais triste e cinzento da sua vida. O juiz trabalha com vidas em desarmonia, em confronto, em litígio, em luta – enfim, com pessoas de carne e osso, com emoções à flor da pele, envolvidas em disputas de toda espécie – e todas acreditando terem sido vítimas de injustiça (com ou sem razão).

Porque todo ser humano que procura o juiz busca um pedaço de felicidade que lhe foi tirado. Busca um pedaço de Justiça que lhe falta. É nesse momento do homem desempregado, da mulher em desespero com o filho que chora, sem leite e nem pão, que as pessoas precisam do juiz.

E precisam do processo, através do qual vão expor os seus dramas, as suas lágrimas, as suas tragédias, ao juiz. Porque é através do processo que falam com o juiz. É através do processo que vão ficar na frente do juiz. É com o processo que vão ter a chance de dizer a sua verdade ao juiz. E de falar com o juiz, esse ser humano – tantas vezes incompreendido – que vai julgar o seu caso.

Porque só restou a esperança de receber o pedaço de Justiça que lhes falta.

Por isso tudo, não entendo como é possível que seja normal dançar em cima de um processo.

Ali há vida. Muitas vidas. Há tudo isso. Mas, pelo jeito, isso nada mais significa.

Obs: pra mim, o fato de dançar em cima de um processo é muito grave. Mais grave, só uma coisa: o juiz que nada pergunta para o réu. Porque tanto o funcionário que dança em cima de um processo, quanto o juiz que nada pergunta para o réu – nem para a vítima, nem para as testemunhas, aferrado que está à doutrina garantista – fazem a mesma coisa: esquecem que dentro de um processo há vida. Muitas vidas.

Obs 2: no tempo de Magistratura que me resta, espero ver uma coisa – que o entendimento de que o juiz não pode mais perguntar, em processos criminais, seja superado. Porque, no meu olhar, isso é o mais triste. Ainda mais triste. Mas, talvez, o meu tempo esteja passando. Ou não?

(*) http://www.peleando.net/

Comentários

  1. Belíssimas, as palavras do magistrado. Parabéns por elas e pela sensibilidade que parece impregnar o exercício de seu ministério (não venham substituir ministério por sacerdócio!).

  2. Com todo respeito: alguém dançaria no enterro da própria mãe ? iria a um casamento na igreja de chinelos e camiseta rasgada, despenteado e com barba por fazer? E tirando caca do nariz durante a cerimonia? saindo na fotografia desta forma e tudo o mais?

    No mundo de hoje nada mais é grave. Depois, largam o gás ligado e entrarmcom HC na porta do céu pelo abuso cometido por Deus.

    Quanto a este pobre julgador, já tive ensejo de ver (passando pelo corredor) há quase duas décadas), um “bolo de aniversário” sobre processos em uma mesa de cartório. O parabéns terminava de ser “executado”. NINGUÉM ESPERANDO DO OUTRO LADO DO BALCÃO E CORREDOR VAZIO. Menos mal.

    Quanto ao perguntar: o atual processo penal passou as perguntas às testemunhas ao Promotor e Advogados. O juiz só indaga no final, alguma dúvida relevante. Antes era ele quem perguntava. Depois o promotor e o advogado REperguntavam através dele – e ele poderia INDEFERIR a repergunta. No interrogatório, continua o juiz perguntando. Depois o promotor e o advogado também pode. Esclarecido, Bruno ?

    Quanto as vidas no processo (em verdade para além dele) fico extasiado de ler o texto. É exatamente isso que eu penso. O verdadeiro processo é imaterial, Precisamos dos autos para lembrarmos dos atos anteriores e para que o tribunal julgue o recurso. Em Roma era tudo na boca e as partes compareciam com as testemunhas. Pretor decidia na hora.

    20 anos depois, quem voltasse na mesma praça (os pretores no início ficavam na praça, depois FORVM ) e indagasse, aqueles que presenciaram o julgamento dele iriam se lembrar. Vivia-se 30/40 anos naqueles tempos.

  3. Muito bom! Parabéns!
    Só não entendi uma coisa: por que o Juiz não pode perguntar ao réu?
    Alguém pode me explicar?

  4. Respeito a manifestação do juiz, podendo até mesmo entendê-la. Todavia, não vi algo de tanta gravidade. Apenas uma brincadeira que internacionalmente é propagada através de diversas maneiras. Nada mais do que isso.

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