A barbárie nas áreas de exceção

Frederico Vasconcelos

Sob o título “O fascista mora ao lado”, o artigo a seguir é de autoria de Rosivaldo Toscano Jr., juiz de direito no Rio Grande do Norte. (*)

 

E a guerra contra a criminalidade faz mais uma vítima. A cena de barbárie se repete como em uma profecia macabra. Não era Amarildo. Era Claudia. Fulminada por dois tiros, arrastada no asfalto pela viatura policial até ter seu corpo dilacerado. Um filme de horror da vida real, captado em imagens fortes. Mas quantas outras mortes passam em vão? Viram estatística, quando muito. Viram autos de resistência, viram… o nada. Caem o vazio desse buraco negro de opressão e desrespeito à vida humana nos guetos onde a pobreza grita e a elite não põe nem seus ouvidos lá.

Temos áreas geográficas em que o Estado Democrático de Direito não chega. Só o Estado Polícia que oprime e, não raras vezes, mata. As favelas são zonas de exclusão, como eram os guetos durante o nazifascismo. Exclusão do Estado providência e exclusão de direitos.

Quem mora e vive nas periferias é comumente tratado como se não possuísse igual dignidade. Quando abordado pelos órgãos de repressão, é suspeito até que se prove o contrário. Há um discurso de inferiorização patente e naturalizado. Mais do que somente um discurso, há uma prática. Uma prática que reforça esse rebaixamento a um subnível de dignidade ou de dignidade nenhuma.

E assim, abrem-se as portas para tratamentos desumanos que vão desde buscas pessoais (“baculejos”) individuais ou coletivas, sem fundamento qualquer anterior a não ser pelo fato de estar-viver ali, até abusos físicos, tortura ou morte. Isso tudo é atravessado pelo discurso da “guerra contra o crime”, como se crime fosse somente o patrimonial ou o tráfico de drogas, tudo em um contexto de periferia. Visa a legitimar uma dimensão no qual não portar uma carteira de trabalho assinada pode ser o divisor de águas entre ir para casa ou para a delegacia, ser “averiguado”.

Nas áreas de exceção – embora não reconhecidas oficialmente como tais pelos órgãos e agentes estatais, mais como tais tratadas – não existe também a inviolabilidade do lar e, em razão disso, invasões domiciliares pela polícia são posteriormente chanceladas pelo Ministério Público e pelo Judiciário, a despeito da não ocorrência da situação que as justificassem, em circunstâncias jamais aceitas se ocorrentes em um bairro nobre da mesma cidade. A brutalidade nas abordagens torna-se banal. E o pior: (i)legalizada.

Nas áreas de exceção, primeiro, suspeita-se. Depois, invade-se o lar e, por fim, encontra-se o que se procurava. Encontra-se de todo jeito; afinal, não encontrar nada ensejaria abuso de autoridade (para não dizer crimes mais graves). Se não colhe, planta, porque, no Judiciário, ao invés de se punir os agentes por violarem um domicílio ao alvedrio da Constituição, adota-se um novo “Juízo de Deus”: se achou a materialidade do crime, é porque havia o flagrante. Então, sempre haverá materialidade…

Da mesma forma, toda lesão corporal ou marca de tortura se normaliza, transformada em resistência, desobediência ou desacato (ou as três juntas). Contra o sem-voz, o habitante das áreas de exceção, tudo é justificado. E a cada morte, sempre haverá um “auto de resistência” para legitimá-la. Aliás, o Brasil é o campeão mundial de mortes pela polícia por resistência à prisão. As execuções sumárias cometidas diuturnamente, semana a semana, mês a mês e ano após ano são a prova mais clara de que o princípio da igualdade é uma falácia nas zonas de exclusão do estado de exceção; afinal, do outro lado estão os outsiders, os hostis.

Lamentavelmente, esse tipo de tratamento não é novidade na história humana. Só mudava o contexto: o judeu Ingo Müller, em uma obra intitulada “Hitler’s Justice: The Courts of the Third Reich”, demonstra como funcionou esse discurso penal do inimigo que envolveu até mesmo o Judiciário alemão. A máxima era a de que “aquilo que o exército faz em nossas fronteiras nossas decisões devem fazer dentro delas”. E mesmo sob a Constituição de Weimar, os atores jurídicos alinhados se mostraram uma força subversiva, adaptando e distorcendo as leis, de modo a interpretá-la com máximo rigor contra os opositores – além dos judeus, os ciganos, os homossexuais, os negros, os comunistas e os sociais-democratas –, deixando impunes os partidários, no caso, até mesmo os nazistas mais perigosos.

O fundamento subjacente da época lá na Alemanha – que era a manipulação do medo do outsider, do hostis, no caso, era o judeu, continua o mesmo, aqui e agora, contra as parcelas mais sofridas da população, os bandidos em potencial, pois como alerta Zaffaroni, “sem uma base de medo correspondente a um preconceito, é impossível construir um inimigo”.

Com o rebaixamento da dignidade dos sem-voz a um subnível, e como se tratam de inimigos que a priori não são reconhecíveis ou identificáveis fisicamente, termina por ocorrer a restrição ou limitação de garantias a todos os habitantes das áreas de exceção, indistintamente.

Aos sem-voz como Claudia, aos habitantes das áreas de exceção, pouco direito é muito. Afinal, para uma boa parcela das camadas superiores da sociedade, eles só são vistos enquanto indivíduos quando estão perto de nós, nas portarias dos edifícios, nas faxinas, nas cozinhas e nos serviços gerais. E mesmo assim, visíveis só instrumentalmente, como homens e mulheres-máquina.

São eles que devem limpar a sujeira material da ostentação, do desperdício e do excesso, e expiar a sujeira moral de uma sociedade cindida e profundamente desigual – cujo legado da escravidão – do reconhecimento de um outro como um ser intrinsecamente inferior(izado) – se mostra tão presente.

Na semana que vem ninguém mais falará de Claudia. O fascismo reina na favela, mas o fascista não mora lá. Mora ao lado.

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(*) O autor é mestre em direito, doutorando em direitos humanos e membro da Associação Juízes para a Democracia – AJD.