O abuso do direito no caso Azeredo
Sob o título “A tolerância ao abuso do direito no processo”, o artigo a seguir é de autoria do Procurador da República Helio Telho Corrêa Filho. (*)
Tome-se o seguinte caso de evidente abuso do direito de recorrer. A ementa do acórdão é por si só eloquente:
EMENTA: EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NOS EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NOS EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NOS EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NOS EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NO AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO NOS EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NOS EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NOS EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NO AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. OMISSÃO. INEXISTÊNCIA. REEXAME DA CAUSA. INVIABILIDADE.
Os embargos declaratórios não constituem recurso de revisão, sendo inadmissíveis se a decisão embargada não padecer dos vícios que autorizariam a sua oposição (obscuridade, contradição e omissão). Na espécie, à conta de omissão no decisum, pretende o embargante a rediscussão da matéria já apreciada.
Embargos de declaração rejeitados.
Essa decisão foi adotada pela Corte Especial do STJ, no processo assim identificado pelo tribunal: EDcl nos EDcl nos EDcl nos EDcl nos EDcl no AgRg no RE nos EDcl nos EDcl nos EDcl no AgRg no RECURSO ESPECIAL No 1.049.052 – GO (2007/0142548-2).
Se o fôlego do leitor acabou antes de concluir a leitura da ementa ou mesmo da identificação do processo, imagine-se o da parte que foi à Justiça clamar por seu direito.
O mais notável, nesse episódio, não foi o uso abusivo em si dos recursos pelos advogados da parte a quem interessava prolongar indefinidamente o desfecho da causa, mas a sua aceitação passiva e quase condescendente por quem tem o dever de assegurar a duração razoável do processo e prestar jurisdição célere, efetiva e eficaz: o tribunal.
Infelizmente, esse não foi um “ponto fora da curva”, para se usar uma expressão da moda. Ao contrário, essa é a rotina do processo judicial brasileiro.
O caso Eduardo Azeredo (chamado “Mensalão Tucano”) é outro exemplo emblemático. Embora não se tenham dúvidas de que a renúncia (que é um direito legítimo) foi exercida com desvio de finalidade, objetivando um fim ilícito (furtar-se ao julgamento criminal iminente e escolher o foro), o STF, que tinha o dever de não permitir que esse efeito se produzisse (como o fez no caso Donadon), chancelou o abuso do direito.
Azeredo sequer se esforçou em esconder o seu real propósito. Ao contrário, fez questão de expressá-lo em sua carta renúncia, confessando assim os motivos do gesto de aparente desprendimento: “de que adianta mais eu alegar que não sou culpado? O que posso é reafirmar que estou pronto a responder em qualquer foro às acusações que me fazem. Não vou, porém, me sujeitar à execração pública por ser um membro da Câmara dos Deputados e estar sujeito a pressões políticas.”
Parece haver, com nossos juízes e tribunais, um enorme desconforto em aplicar a teoria do abuso do direito processual (que abrange o uso abusivo do direito de litigar, de defesa e de recurso), como se isso lhes fosse conferir feição autoritária ou ditatorial e, portanto, pecaminosa e toda e qualquer repressão fosse execrável.
Vivemos tempos de idolatria das garantias processuais, que são repetidas e professadas como mantras sagrados:
“Ampla defesa, contraditório, devido processo legal e presunção de inocência, se cairmos na tentação, livrai-nos da punição, Amém!”
Antes que se gere mal entendido, que fique claro que não se defende aqui a supressão ou mesmo a restrição das garantias constitucionais. Advoga-se, sim, que os abusos ou desvios no uso de tais garantias não seja tolerado.
O abuso ocorre quando um direito legítimo é exercido com desvio de finalidade, para causar prejuízos a terceiros (a outra parte no processo) ou para obter outro resultado ilícito.
A finalidade das garantias processuais é a de assegurar um julgamento justo e não o de propiciar a eternização da causa ou conferir impunidade.
Retomemos o exemplo que abriu esse texto. Os embargos de declaração são um recurso destinado a sanar omissões, contradições ou obscuridades da sentença ou do acórdão.
Essa é a sua finalidade e a sua interposição é um direito da parte. Contudo, considerando-se que a interposição dos embargos de declaração produz um efeito secundário (suspende a execução da sentença ou do acórdão, até que seja decidido), tornou-se comum o seu uso não com o objetivo de corrigir a sentença ou o acórdão, mas com a finalidade de postergar o desfecho do processo e, com isso, o cumprimento da ordem judicial. Assim, a cada nova decisão que julga os embargos anteriores, a parte volta a exercer o direito de interpor embargos, numa espiral infinita que não permite a solução definitiva da causa.
O juiz (e o tribunal) tem o dever de reprimir o abuso do direito processual, não permitindo que produza efeitos, como já o fizera o próprio STF no caso Donadon, quando identificou que “os motivos e fins da renúncia dão conta da insubmissão do réu ao julgamento”, ou seja, “a renúncia teve claro objetivo de frustrar a atuação jurisdicional do Estado, e foi uma tentativa de tornar o STF refém da opção pessoal do ex-parlamentar”, ficando claro o “abuso de direito, ao qual não dá guarida o sistema constitucional vigente”.
Não se sabe o que levou o STF a engatar a marcha à ré no caso Azeredo. Porém, uma coisa é certa: o juiz que não reprime o abuso do direito no processo está se demitindo da função judicante ou, o que é ainda pior, apenas faz-de-conta que distribui Justiça, porque ainda não aprendeu a lição que Rui Barbosa nos deixou, há quase um século, na “Oração dos Moços”: “a justiça atrasada não é justiça, senão injustiça qualificada e manifesta”.
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(*) O autor é ex-promotor de Justiça em Goiás e no Distrito Federal.