Jogo de cena que teima se repetir
Sob o título “Choque de Poderes ou cumprimento da Constituição?”, o artigo a seguir é de autoria do desembargador Edison Vicentini Barroso, do Tribunal de Justiça de São Paulo.
O Estado brasileiro é um só. Apesar disso, para melhor atuar, subdivide-se em três Poderes – o Executivo, o Legislativo e o Judiciário. É a chamada tripartição de Poder ou separação dos Poderes. Essa é uma previsão do art. 2º da Constituição Federal, a também estabelecer da independência e harmonia daqueles.
Esses Poderes não podem ser vistos ou tidos, nas relações entre si, como compartimentos fechados, pois que se interpenetram, respeitadas as respectivas prevalentes funções de cada um – o Executivo faz cumprir as leis; o Legislativo as elabora; o Judiciário julga. Isto em essência, e respeitados os estreitos limites daquilo a que esta explanação se propõe.
Tudo se dá, note-se bem, por expressa determinação constitucional, no sentido da preservação da harmonia entre os Poderes. Para tanto, incide mecanismo de freios e contrapesos, desenvolvido por Montesquieu, em cujo contexto as respectivas esferas de atuação servem ao equilíbrio do todo. Noutras palavras, cada um cumpre sua função como deve e o Estado, que delas se serve, aparelha-se para bem regular a vida da população.
Em suma, os Poderes são, sim, independentes e harmônicos, mas isso não afasta a interferência dum no outro, quando preciso, atento ao campo de suas preponderantes atribuições – sempre tendo por norte as diretrizes da Constituição Federal (Lei das leis e início, meio e fim de suas respectivas atuações e limitações).
Cabe se diga, ainda, só ser admissível a interferência de um Poder na esfera de atribuição de outro, em tese, quando para impedir abusos, propiciar a real harmonia daqueles ou garantir liberdades e assegurar exercício pleno das funções específicas. Mas, e de novo a pedra de toque, à vista daquilo disposto na Constituição Federal (a bússola, o norte). Ou seja, a rigor, mercê do substrato legal/constitucional, inviável “queda de braço” entre os Poderes.
Fixadas dessas premissas, enfoquemos o ponto objeto destas reflexões. Fato notório: em razão dos escândalos havidos, com base no art. 58, § 3º, daquela Constituição, congressistas da oposição solicitaram abertura de Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) específica à apuração de irregularidades na Petrobras.
Por resistência de setores do governo (a chamada “situação”), capitaneados pelo Presidente do Senado e do Congresso Nacional, Renan Calheiros, ao pretexto da conveniência duma CPI ampliada, que doutras coisas viesse também a apurar, os oposicionistas ajuizaram medida cautelar em mandado de segurança, no Supremo Tribunal Federal, relatora a ministra Rosa Weber.
Em decisão liminar, aquela determinou implementação da CPI exclusiva da Petrobras, como requerido pela minoria parlamentar, baseada na Constituição Federal e em sua melhor interpretação, segundo jurisprudência sedimentada daquele Tribunal. Dentre outras coisas, de forma clara, fez ver do cunho constitucional da controvérsia, a superar e afastar eventuais amarras do regimento interno do Congresso. Trocando em miúdos, enfatizou do direito da minoria insculpido na “Lei das leis”.
Não se pode esquecer que a interpretação da Constituição Federal só cabe ao STF (ou lhe cabe sobranceiramente), no âmbito da jurisdição constitucional. Nesse cenário, indiscutível a atribuição, exclusivamente judicial, de exercer o controle da atividade parlamentar, que, apesar da indigitada independência dos Poderes, deve se ajustar aos estritos ditames da Lei maior.
Como muito bem dito pela ministra relatora, “fundada, a pretensão, em potencial afronta a preceito constitucional assecuratório de direito subjetivo público titularizado por grupo minoritário integrante do Poder Legislativo, a controvérsia assume, na sua substância, dimensão eminentemente constitucional”.
Foi ela além, na menção de que o procedimento adotado pelo Presidente do Senado Federal, inda que baseado em preceitos regimentais, desfigura o instituto constitucional assegurado às minorias políticas. E nem a desculpa daquele, de que a instalação duma CPI alargada, de molde a abarcar outra proposta de alcance menor, não violaria direito constitucional, por vazia de juridicidade, a impressionou ou seduziu. Nesse particular, foi entrevisto indevido juízo de valor sobre prerrogativa das minorias (coisa vedada pela Constituição).
Então, veio à luz precedente do ministro Celso de Mello, dando-nos conta de que atendidas as exigências do dispositivo constitucional (no caso, o art. 58, § 3º), “cumpre, ao Presidente da Casa legislativa, adotar os procedimentos subsequentes e necessários à efetiva instalação da CPI, não lhe cabendo qualquer apreciação de mérito sobre o objeto da investigação parlamentar” (negrejei).
Inda na dicção daquele ministro, desde que adequado à Constituição Federal, o requerimento de CPI basta, fazendo-se indispensável respeito à iniciativa da minoria, expressa em seu requerimento.
Diante disso, o famigerado senador Renan Calheiros, a olhos vistos a serviço do governo (ao qual não interessa a precisa apuração dos fatos relativos à Petrobras), soltou nota dando conta de que, fundamentalmente, em nome da independência dos Poderes (e prestigiado dos regimentos internos do Congresso Nacional), recorrerá ao pleno do STF.
Ora, conquanto esse seja um direito seu, como já visto, não o pode fazer sob o argumento enganoso de que assim age respeitado o sagrado direito da minoria. Em verdade, à revelia do que prega a Constituição Federal – a cujo serviço deveria estar –, busca argumentos que desviem o foco do real objetivo de sufocar a CPI da Petrobras, criando cortinas de fumaça que encubram o objetivo de favorecer, a mais não poder, uma vez mais, na recente e triste história do Brasil, a blindagem dum presidente da “República do PT”.
A vingar a linha de pensamento do senador, não se estará prestigiando a independência dos Poderes, mas franca colisão com preceitos constitucionais manifestos, hauridos do Poder estabelecido e aparelhado, justamente, à sua preservação – o Judiciário.
As atribuições aí estão, postas e bem delineadas; ao menos, àqueles que queiram ter “olhos de ver” e “ouvidos de ouvir”. Que se respeitem, pois, as regras democráticas do jogo social, muito embora os precedentes desabonadores de alguns dos agentes em questão, protagonistas, uma vez mais, do jogo de cena que teima se repetir.
Cabe, agora, relembrar Marcus Tullius Cícero (filósofo, orador, escritor, advogado e político romano), que, num de seus célebres discursos, disse: “Quo usque tandem abutere, Catilina, patientia nostra?” – traduzindo: “Até quando, Catilina, abusarás de nossa paciência?”.
Para constar, Catilina foi senador na Roma antiga, célebre por tentar derrubar a República. E, inda hoje, enxameiam os “Catilinas”, ornados doutros nomes, mas, qual àqueloutro, a abusar da imensa paciência da Nação que lhes suporta a presença e serve de berço! Força, Brasil!