Especialistas criticam projeto de mediação
O Centro Brasileiro de Estudos e Pesquisas Judiciais (Cebepej) e os juristas Ada Pellegrini Grinover e Kazuo Watanabe, professores da Faculdade de Direito da USP, emitiram nota em que criticam a aprovação do PL que regula a mediação judicial. Consideram que o projeto está em total descompasso com as regras aprovadas pela mesma Câmara de Deputados, por intermédio do Projeto de Código de Processo Civil.
Grinover e Watanabe são especialistas em formas alternativas de solução de conflitos.
O Cebepej foi fundado em 1999 por profissionais do Direito e das Ciências Sociais. É uma associação civil, não governamental, sem fins lucrativos, dedicada a desenvolver estudos e pesquisas sobre o sistema judicial brasileiro.
Eis a íntegra da manifestação:
POR QUÊ O PL 7169/1014 NÃO PODE SER APROVADO EM RELAÇÃO À MEDIAÇÃO JUDICIAL? (*)
Introdução – Tendo bem presente a recente aprovação, pela Câmara dos Deputados, do novo Código de Processo Civil, que contém disciplina bem elaborada sobre a conciliação e mediação judiciais – e que deve retornar ao Senado Federal para aprovação final – as razões pelas quais somos contrários à aprovação do PL 7169/2014, nessa parte, terão como foco principal não apenas o de apontar os principais defeitos do PL; como também indicar as divergências entre as disposições do PL e as do Projeto de CPC, bem como as vantagens destas sobre aquelas.
Nossa análise será sintética, até porque já foram elaboradas Notas Críticas ao referido PL pelo Instituto dos Advogados de São Paulo – IASP, pelo Centro Brasileiro de Estudos e Pesquisas Judiciais – CEBEPEJ e pela APAMAGIS – Associação Paulista de Magistrados, em que alguns dos temas abaixo destacados são examinados em profundidade.
Ainda como observação prévia, vale salientar que, embora se afirme que o PL seja resultado da combinação dos vários projetos propostos, não soube ele aproveitar, no que toca à mediação judicial, as valiosas contribuições do PLS 408/2013, nem as próprias diretrizes da Resolução CNJ n. 125/2010.
E, finalmente, cumpre notar que a redação final das regras do Projeto de CPC sobre conciliação e mediação partiu de uma proposta formulada pelo Fórum Nacional de Mediação – FONAME, amplamente debatida na Câmara dos Deputados, seja quando o Projeto se encontrava sob a Relatoria do Deputado Barrada, seja quando era relator o Deputado Paulo Teixeira.
Portanto, diversamente do que ocorre com o PL – fruto apenas do pensamento de comissões -.as disposições sobre conciliação e mediação do Projeto de CPC resultaram de amplos debates e de um consenso democraticamente construído.
Passamos, portanto, a examinar os principais defeitos do PL, comparando suas disposições com as já aprovadas pela Câmara dos Deputados por intermédio do Projeto de CPC.
1 – Mediação e Conciliação. O PL trata apenas da mediação, sem qualquer referência à conciliação e sem preocupação em distinguir um meio consensual de outro e, aliás, confundindo-os. Dizer que a conciliação já está prevista em nosso sistema é ignorar que o que está previsto é apenas a conciliação conduzida pelo juiz, ao passo que o que necessita de regulamentação é a conciliação conduzida pelo terceiro facilitador, ao lado da mediação. Ao contrário, mediação e conciliação, pelo terceiro facilitador, estão previstas e devidamente conceituadas no Projeto de CPC (art. 166, par. 3º e 4º).
2 – PL: modalidade única de mediação. Ao definir a função do mediador, no par.1º do art. 4º, o PL contempla um único modelo de mediação (a chamada “mediação facilitativa”), que na verdade não é forma de mediação mas sim de conciliação. No entanto, já estão sendo utilizadas no Brasil diversas modalidades de mediação (transformativa, transformativa/reflexiva e circular narrativa), de modo que o PL é nocivamente limitador. O Projeto de CPC não contém essa restrição, pois se limita a distinguir mediação de conciliação, indicando os conflitos para cuja solução é mais indicada uma ou outra modalidade, bem como as técnicas (flexíveis) a serem utilizadas num ou noutro caso (art. 166, par. 3º e 4º).
3 – PL: exclusão dos conflitos de família. Injustificadamente, o par. 3º, I e II, do art. 3º do PL exclui do âmbito da mediação conflitos que versem sobre filiação, adoção, poder familiar, invalidade de matrimônio e interdição. Ora, é de conhecimento geral que os conflitos de família são os que mais se adequam e mais frequentemente são submetidos à solução conciliatória. A idéia aparentemente encampada pelo PL sobre a indisponibilidade de certos direitos é equivocada e ultrapassada, pois mesmo em relação a direitos indisponíveis existe disponibilidade a respeito da modalidade, forma, prazos e valores no cumprimento de obrigações, passíveis de uma construção conjunta, e que são, assim, perfeitamente transacionáveis (como, v.g., na guarda dos filhos) e em que pode haver reconhecimento da pretensão (por exemplo, investigação de paternidade). O Projeto de CPC limita-se a afirmar que conciliação e mediação podem ser utilizadas em qualquer processo em que se admita a autocomposição (art.335, par.4º, II).
4 – PL: centralização e monopólio da capacitação e dos critérios para cadastramento. O art. 10, caput, do PL centraliza e monopoliza a capacitação de mediadores, afirmando que só pode se cadastrar como mediador judicial quem “tenha obtido capacitação em escola de formação de mediadores reconhecida pelo Conselho Nacional de Justiça ou pela Escola Nacional de Mediação e Conciliação do Ministério da Justiça”. Ao contrário o Projeto de CPC só exige que os Tribunais, para o credenciamento dos cursos, sigam os parâmetros curriculares da capacitação mínima definidos pelo CNJ em conjunto com o Ministério da Justiça (art. 168, par. 1º). Não nos alongaremos a respeito da posição do PL, cujos malefícios foram exaustivamente apontados nas notas críticas do IASP, do CEBEPEJ e da APAMAGIS, mas afirmamos peremptoriamente que essa centralização e esse monopólio ferem de morte o princípio federativo e a autonomia dos Estados. Impede-se, com isso, toda e qualquer participação dos Tribunais de Justiça e dos Tribunais Regionais Federais no reconhecimento de cursos locais de formação – oferecidos pela iniciativa privada, pelo próprio Estado e pelas Universidades – bem como nos critérios para o cadastramento. O mal já feito pela alteração da Resolução CNJ n. 125/2010, por meio da Emenda n. 01/2013, não pode ser perpetuado em lei.
5 – PL:Desconsideração da Política Judiciária Nacional instituída pela Resolução n. 125/2010 do CNJ. As unidades judiciárias criadas pela Resolução n. 125 do CNJ, quais sejam os Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania, são completamente ignoradas pelo PL, em mais uma demonstração de centralização e monopólio. O Projeto de CPC prevê expressamente a existência desses órgãos (art. 166).
6 – Dispensa da tentativa de conciliação ou mediação: O Projeto de CPC prevê uma audiência de conciliação e mediação, obrigatória, com a única exceção de ambas as partes a dispensarem (art. 355, caput, e par. 4º, I). E, se houver litisconsórcio, o desinteresse deve ser manifestado por todos (par. 6º do art. 355). Segundo o art. 25 do PL, o encaminhamento ao mediador fica a critério do juiz, salvo quando o autor o recusar. Ora, conciliação e mediação não podem ser impostas, mas é salutar que as partes compareçam perante o terceiro facilitador, até para efeito de conhecimento sobre os meios consensuais de solução do conflito. Pesquisas comprovam que nos Juizados Especiais, onde a tentativa de conciliação é obrigatória, frequentemente a conciliação é aceita por quem – entrevistado – se dizia contrário a ela. No PL, portanto, diversamente do que ocorre com o Projeto de CPC, não há estímulo para criar a cultura do consenso.
7 – Incentivo aos meios consensuais. O Projeto de CPC prevê sanção pecuniária para a parte que não comparecer, injustificadamente, à audiência de conciliação e mediação (art. 342, par. 8º). Nada disto existe no PL, em mais uma demonstração da falta de incentivo para a consolidação da cultura dos meios consensuais.
8 – Obrigatoriedade da presença do advogado ou defensor. O Projeto de CPC contempla a obrigatoriedade da presença do advogado ou defensor público na audiência de conciliação e mediação (art. 342, par. 9º). No PL essa presença é meramente facultativa (art.16, caput), só havendo possibilidade de a outra parte solicitar defensor ad hoc se a outra estiver assistida por advogado (parágrafo único do art. 16). Isto vulnera o Estatuto da OAB.
9 – Autonomia da vontade na escolha do mediador ou conciliador. No Projeto de CPC as partes poderão sempre escolher o conciliador ou mediador, de comum acordo (art.169, caput), inclusive se não estiver cadastrado no tribunal (par. 1º do art. 169). O art. 24 do PL, na mediação judicial, só contempla a designação por distribuição (o que, por sinal, contraria o disposto no art. 4º do próprio PL). Seja como for, a postura do PL contraria o princípio da autonomia da vontade.
10 – Formalização indesejada do procedimento de mediação. O PL formaliza demasiadamente o procedimento de mediação, disciplinando minuciosamente o termo inicial da mediação (art. 17 e parágrafos) e seu termo final (art.20 caput, e par. 1º). O Projeto de CPC, ao contrário, privilegia a autonomia da vontade dos interessados, inclusive no que diz respeito às regras procedimentais (par. 4º do art.157). A desformalização do procedimento de mediação é uma de suas mais importantes características e vantagens.
11 – Mediação judicial nos Cartórios extrajudiciais. O art. 41 do PL permite que a mediação judicial seja realizada junto aos Cartórios extrajudicias. Entendemos, porém, que a mediação judicial, como técnica inserida no campo da política judiciária, considerada hoje até como modalidade de jurisdição, não pode estar dissociada dos tribunais. O art.166, caput, determina que as sessões de conciliação e mediação judicial devem ocorrer junto aos centros judiciais de solução consensual de conflitos ou, excepcionalmente, nos próprios juízos (par. 4º). Prestigia-se, assim, o Poder Judiciário, o que não ocorre com o PL.
Conclusão. Por todas essas razões – que envolvem apenas as críticas principais ao PL n. 7169/2014 – posicionamo-nos contrariamente à sua aprovação, no que tange à mediação judicial, pois esta representaria um retrocesso em relação ao pensamento dos especialistas na matéria e uma contradição com o que a Câmara dos Deputados já aprovou sobre o assunto por intermédio do Projeto de Lei do Código de Processo Civil.
São Paulo, 5 de maio de 2014
Ada Pellegrini Grinover
Kazuo Watanabe
———————————————————————————————————
(*) Os autores são Professores da Faculdade de Direito da USP e Especialistas em Meios Alternativos de Solução de Conflitos