Extração da piaçava e trabalho escravo
Sob o título “A extração da piaçava e o trabalho escravo contemporâneo na Amazônia”, o artigo a seguir é de autoria dos Procuradores da República Fernando Merloto Soave e Julio José Araujo Junior e do Procurador do Trabalho Renan Bernardi Kalil. (*).
O Brasil admitiu o trabalho escravo até 13 de maio de 1888, quando foi promulgada a Lei Áurea. Atualmente, o trabalho escravo contemporâneo ou o trabalho em condição análoga à de escravo são repudiados e tipificados no art. 149 do Código Penal.
A caracterização legal do trabalho escravo contemporâneo no país engloba quatro hipóteses: trabalho forçado, jornadas exaustivas, condições degradantes e restrição de locomoção.
O trabalho forçado é aquele para o qual a pessoa não se ofereceu de forma espontânea e é coagida física, moral ou psicologicamente a realizá-lo, sob ameaça de aplicação de penalidades.
A jornada exaustiva ocorre quando o empregador exige a prestação de trabalho do empregado desproporcionalmente, por uma quantidade de horas que leva ao esgotamento físico e mental em que o trabalhador não consegue se recuperar.
As condições degradantes são verificadas quando o empregador submete os empregados a situações em que direitos fundamentais como moradia, saúde, segurança, repouso e alimentação são desrespeitados, além da exposição dos trabalhadores a riscos, como a ausência de fornecimento de equipamentos de proteção individual.
A restrição da locomoção também é conhecida como “escravidão por dívida” ou “sistema de barracão”. O empregado contrai dívidas com o empregador em razão da aquisição de alimentos, ferramentas de trabalho ou equipamentos de proteção por valores acima dos praticados no mercado ou pela cobrança desarrazoada de moradia. Assim, o salário do empregado é retido e nada ou muito pouco é pago no final do mês. Nessa situação, a liberdade do trabalhador é constrangida, física ou moralmente, pois não consegue romper o vínculo empregatício até a quitação da dívida.
Na região do médio Rio Negro, que envolve os Municípios de Santa Isabel do Rio Negro e Barcelos, a extração da piaçava é uma das atividades mais importantes, abrangendo diversos agentes sociais, inclusive povos indígenas.
Os piaçabeiros, trabalhadores que extraem a piaçava, detêm conhecimentos específicos para a realização do trabalho de extração e beneficiamento das fibras da piaçava, além de conhecerem efetivamente a região, em sua imensidão de rios e igarapés. Estão submetidos, porém, a um regime de trabalho dominado por poucos, os chamados patrões, que se dizem proprietários dos piaçabais – locais de onde se extrai a piaçava – e controlam a comercialização do produto.
O modo pelo qual os patrões exploram a força de trabalho dos piaçabeiros se subsume a duas modalidades do trabalho escravo contemporâneo: as condições degradantes a que são submetidos os trabalhadores e a servidão por dívida.
A servidão por dívida ocorre da seguinte forma: o empregador arregimenta intermediários para contratar trabalhadores para extrair a piaçava. O patrão fornece ao intermediário a embarcação e vende alimentos, ferramentas, equipamentos de proteção e gasolina por valores mais elevados que os verificados nos estabelecimentos comerciais.
Por sua vez, o intermediário vende esses mesmos produtos para os piaçabeiros por valores ainda maiores. Desta forma, o trabalhador inicia a relação de emprego endividado, sendo que o débito é abatido conforme a entrega da sua produção para o intermediário. Em posse das toneladas de piaçava extraídas pelos trabalhadores, os intermediários quitam suas dívidas com os empregadores. Existem diversos casos em que o trabalhador, mesmo após ter laborado por cinco meses na extração da fibra, não recebe valor algum.
As condições degradantes são verificadas a partir de uma série de violações legais, como a precariedade dos alojamentos disponibilizados, a ausência de quaisquer materiais de primeiros socorros nas frentes de trabalho, a negligência no fornecimento de equipamentos de proteção e inexistência de meios para preparação de alimentos e para refeição.
Tal modelo, fundado no “sistema de aviamento”, presente na Amazônia já na época do ciclo da borracha, coloca os piaçabeiros na condição de “fregueses” dos patrões e dependentes deles, com o auxílio dos intermediários.
A extração da piaçava é atividade econômica expressiva em diversos municípios e relevante fonte de renda para os piaçabeiros. Contudo, a forma como é realizada acarreta a violação de direitos fundamentais das comunidades nela envolvidas. Isso impacta profundamente sua autonomia e suas formas de organização, as quais são essenciais para superar o atual modelo da cadeia produtiva.
Em abril deste ano, realizou-se operação conjunta que envolveu o Ministério Público do Trabalho (MPT), Ministério Público Federal no Amazonas (MPF-AM) e Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), a qual garantiu o resgate de 13 trabalhadores em condições análogas à de escravo no município de Barcelos.
Os empregados faziam a extração da piaçava de segunda a sexta-feira, durante todo o dia, e aos finais de semana trabalhavam no beneficiamento da fibra. Estavam alojados em construções improvisadas no meio da floresta amazônica, sem condições mínimas de segurança e higiene, e eram submetidos a um ciclo de servidão por dívida. Nos depoimentos, os resgatados afirmam que o patrão tinha consciência das condições precárias a que estavam submetidos os trabalhadores, já que periodicamente visitava os locais de extração.
Há denúncias do envolvimento de um número mais expressivo de trabalhadores na extração da piaçava, vinculados a poucos patrões e regidos por uma relação de manutenção da dívida com a permanência em longos períodos nos piaçabais.
Para enfrentar este cenário, não existe a opção da tolerância ou da resignação com a realidade secularmente intocada. A mudança se faz necessária por meio da valorização dos espaços onde os piaçabeiros criaram sua identidade coletiva e realizam suas atividades, livres de opressões e do controle ilícito dos patrões, dando-lhes condições para o desenvolvimento autônomo de suas relações sociais.
Incumbe ao Poder Público e a todos os envolvidos na cadeia produtiva da piaçava despertar para o fato de que o respeito à dignidade dos piaçabeiros e a observância da legislação só vão ocorrer quando o sistema de aviamento for definitivamente afastado – sem prejuízo da responsabilização daqueles que o mantiveram -, assim como forem garantidas condições mínimas de trabalho. Caso contrário, em pleno século XXI, continuaremos fechando os olhos para o trabalho escravo à nossa porta.