Novo patamar na luta contra o preconceito
Sob o título “Tempos interessantes“, o artigo a seguir é de autoria do Juiz de Direito Pio Giovani Dresch, ex-presidente da Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul (Ajuris).
Se é verdade que a história acontece aos espasmos, parece que neste momento está acontecendo um no Brasil.
Desde quando pronunciadas as ofensas ao goleiro Aranha, uma sucessão de fatos têm posto em xeque preconceitos de vários vieses com uma intensidade inédita, parecendo indicar que se consolida um senso comum de condenação às manifestações de intolerância.
Embora nos últimos anos tenham ocorrido inegáveis avanços contra a discriminação por motivo de cor ou orientação sexual, ainda é forte o preconceito enrustido, e em alguns bolsões isso se revela de modo mais explícito, às vezes até militante. Exemplo disso são o futebol, algumas religiões, principalmente pentecostais, assim como o movimento tradicionalista.
O futebol é um belo laboratório de análise, porque, sendo um lugar onde, por definição, afloram as rivalidades, o afrouxamento dos freios sociais pelas torcidas possibilita o xingamento dos adversários com expressões já não aceitas em outros espaços, a demonstrar que não necessariamente o que está oculto foi banido.
E a reação é desigual. Gritos de “macaco”, vindos da torcida do Grêmio, geram forte indignação social, enquanto passam despercebidos os gritos de “gaúcho viado”, da torcida do Flamengo. Não é de se descartar, na explicação sobre as distintas reações, um outro tipo de preconceito, de natureza regional, tão conhecido dos nordestinos, que aqui acusa a intolerância dos sempre arrogantes gaúchos, mas absolve ou toma por mero chiste a provocação carioca.
Mas a razão principal disso é a de que a mobilização contra o racismo já está mais consolidada no futebol, onde conta inclusive com o engajamento da FIFA, e do mesmo modo corre mais livre na sociedade: embora inegável a permanência do preconceito de cor, cuja expressão mais clara é a manutenção dos negros em posições sociais subalternas, não se veem no Brasil pregações racistas como há pregações homofóbicas.
Há, é claro, fortes resistências às políticas de quotas, que visam à redução das desigualdades, mas sem a clara conotação de preconceito que se manifesta, por exemplo, na oposição ao casamento gay.
A cor da pele continua sendo determinante para abordar suspeitos em batidas policiais, mas já há um consenso social que censura manifestações públicas de racismo. Consequência disso, os negros não têm seu Silas Malafaia, e é mais fácil construir um ambiente de rejeição coletiva à discriminação racial.
É nesse contexto que se torna mais significativa a publicação do manifesto do Corinthians contra a homofobia, porque chegamos a um novo patamar da luta contra o preconceito, em que finalmente um dos maiores clubes de futebol do país diz publicamente que gritos de “bicha” ou “viado” são preconceituosos, e devem ser banidos, do mesmo modo que os gritos de “macaco”.
Se no futebol houve essa formidável tomada de posição, o apoio social ao casamento de um casal de lésbicas no Rio Grande do Sul e a forte crítica às pregações de Malafaia, que tenta inserir uma pauta homofóbica na campanha presidencial, revelam que a sociedade está pronta para assegurar os valores da tolerância, contra o preconceito.
Parece que estamos vivendo um daqueles solavancos da história, em que uma conjunção de fatos serve para alterar a consciência social sobre determinado fato.
Não tenho a ilusão de que a partir de agora estejam extirpados da sociedade brasileira o racismo e a homofobia, mas tenho a certeza de que serão cada vez mais difíceis as manifestações públicas de preconceito, porque já não são toleradas.
São, como diria Hobsbawm, tempos interessantes.