Auxílio-moradia e aceno ao passado

Frederico Vasconcelos

Sob o título “Sobre o auxílio-moradia”, o artigo a seguir é de autoria de Alexandre Gonçalves Frazão, Promotor de Justiça do Ministério Público do Rio Grande do Norte. (*)

 

Como é do conhecimento público, a partir de decisões liminares concedidas pelo Ministro do STF, Luiz Fux, no bojo de ações ajuizadas por associações classistas de magistrados, determinou-se o pagamento de ajuda de custo para gastos com moradia a todos os membros do Poder Judiciário e do Ministério Público, com equiparação de ambas as carreiras em termos de vantagens e direitos.

Em decorrência da decisão, tanto o Conselho Nacional de Justiça quanto o Conselho Nacional do Ministério Público editaram resoluções estabelecendo a obrigatoriedade de pagamento do auxílio-moradia, tendo por teto o valor fixado para ministro do Supremo Tribunal Federal (R$ 4.377,73).

Neste momento, em função das referidas resoluções, todos os tribunais do país e unidades do Ministério Público se organizam para o pagamento da verba –-se já não o faziam por força de lei local previamente existente, como no meu Estado –, independentemente de lei específica autorizando-o, a despeito dela (em caso de divergência da mesma com as resoluções) e independentemente da existência de planejamento financeiro. Adaptar-se-ão as respectivas execuções orçamentárias para tanto, seja gastando reservas existentes, seja se adiando despesas de custeio e investimento antes programadas, transferindo-se os recursos para o novo gasto.

Não venho discutir, neste artigo, os problemas morais que pagamentos como esses geram. E esclareço que sou beneficiário do auxílio, entendendo que a questão não é individual nem que a vantagem percebida me impeça de racionar impessoalmente.

Levanto, na verdade, preocupações político-institucionais que a decisão do Ministro Luiz Fux e as consequentes medidas generalizadoras do CNJ e do CNMP certamente trarão para o país.

É óbvio que a novidade trazida pela decisão do Ministro de 2 de setembro, proferida na Ação Originária 1.773-DF, tem, como pano de fundo, o insistente descumprimento pelo Congresso Nacional da obrigação constitucional de revisão anual do subsídio dos Ministros do Supremo Tribunal Federal e do Procurador-Geral da República, com perdas inflacionárias sucessivas aos rendimentos dos mesmos e, reflexamente, aos de todos os demais magistrados e membros do Ministério Público do país, cujos subsídios também estão limitados ao teto do valor pago pelo STF a seus integrantes.

Mas a medida de autorizar, independentemente de lei, o pagamento de “verbas indenizatórias” para suprir essas perdas, se possui o componente defensivo referido, o qual deve servir de alerta político ao Congresso Nacional e à Presidência da República para que negociem as saídas do imbróglio, gera efeitos colaterais que nos levarão a alimentar cadeias  de reação extremamente maléficas à saúde das instituições afetadas, à suas capacidades de melhora do serviços por elas prestados ao cidadãos, bem como ao valor legitimador da Constituição como norma fundamental a ser respeitada e defendida notadamente pelo Poder Judiciário e pelo Ministério Público.

Enfim, penso que demos um aceno ao passado em termos de desenvolvimento institucional com a forma de tratamento do tema até agora. Destaco quatro motivos.

É que, primeiro, despreza-se a legalidade estrita para o pagamento de vantagens financeiras a agentes públicos, servindo as resoluções do CNMP e do CNJ, além da decisão do Ministro, como fundamento originário para o pagamento de benefícios que, pelo regrado nos artigos 37, 93, 127 e 128, e em seus respectivos incisos e parágrafos, da Constituição Federal, deveriam ser autorizados por lei especifica, garantindo, assim, controle democrático da expansão desses gastos estatais, notadamente sobre os seus reajustes futuros, agora possíveis por atos administrativos.

Note-se que os artigos 65, II, da Lei Complementar n. 35/79 (Lei Orgânica da Magistratura Nacional) e 50, II, da Lei 8.625/93 (Lei Orgânica Nacional do Ministério Público) condicionam, explicitamente, o pagamento de ajuda de custo para moradia a leis específicas, o que restou violado e desprezado.

Segundo, ao permitir o incremento de nossa remuneração por valores indenizatórios percebidos permanentemente, incentiva-se, a não mais poder, a transferência de recursos das áreas de custeio e investimento para o pagamento de pessoal de forma disfarçada, sem a limitação, baseada na ideia de responsabilidade fiscal, prevista no artigo 169 da Constituição Federal e na Lei Complementar 101/2000, dois marcos da difícil e dolorida evolução institucional brasileira, agora essencialmente tangenciados.

Terceiro, esse mesmo mecanismo de incremento da remuneração por pagamentos indenizatórios será logo imitado no âmbito do Poder Executivo e do Legislativo, como forma de driblar os impedimentos legais para aumento de gasto com pessoal, mais uma vez com prejuízo aos investimentos na melhoria dos serviços públicos, agora em proporção muito maior. 

Quarto, essa nova via de incremento remuneratório leva ao arrefecimento da proteção dos membros aposentados de ambas as carreiras, bem como de seus pensionistas, privados que estarão desses pagamentos “indenizatórios”, destinados que são apenas aos membros do quadro ativo das respectivas instituições.

Desrespeito à Constituição e à lei, maior gasto com pessoal sem a limitações legais, preterição de recursos para investimentos, injustiça e desrespeito com aposentados, voluntarismo jurídico. Eis alguns sérios motivos pelos quais a decisão do Ministro Luiz Fux deveria ser revista por seus pares.

Quanto à defesa do subsídio do Poder Judiciário e do Ministério Público, há meios jurídicos de fazê-lo, reforçando a vigência do artigo 37, XI, da Constituição Federal (vedando o pagamento dos diversos auxílios hoje instituídos) e dando efetividade ao seu inciso IX, podendo o STF autorizar, na omissão do Congresso, em ação própria, o reajuste geral anual de seus subsídios com base em índices inflacionários oficiais, permitindo assim as demais revisões, por lei, dos subsídios das demais carreiras dele dependentes.

Seria arroubo jurídico infinitamente mais legítimo do que o realizado na questão do auxílio-moradia. E ao menos defensável no âmbito do Estado de Direito.

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email: alexandre.frazao@bol.com.br.