Propaganda negativa e crime eleitoral

Frederico Vasconcelos

José Jairo e livro

Sob o título “Sobre crimes e castigos eleitorais“, o artigo a seguir é de autoria de José Jairo Gomes, Procurador Regional da República, atuando perante o TRF da 1ª Região/DF. Foi Procurador Regional Eleitoral em Minas Gerais de 2002 a 2010, bem como Promotor de Justiça e Promotor Eleitoral de 1993 a 1997. (*) O autor deverá lançar em breve seu novo livro “Crimes e Processos Penais Eleitorais“, pela Editora Atlas [foto].

 

O processo eleitoral é certamente uma das mais relevantes expressões da democracia ocidental. É por ele que o povo – bem ou mal, não importa aqui – reflete e decide sobre o modelo de gestão pública que pretende ver implementado. Nele, os postulantes têm sempre expostas e confrontadas suas histórias, os benfeitos e malfeitos que praticaram ou, pelo menos, as díspares interpretações de fatos que protagonizaram.

O arriscado palco do processo eleitoral se presta também à desconstrução (ou será destruição?) de reputações e biografias aparentemente bem estruturadas. Em geral, isso se dá no ácido ambiente da comunicação negativa, no qual as misérias dos candidatos são expostas publicamente, à luz do meio dia. Ao contrário de arranhar a ideia de democracia, tal exposição a reforça, já que a legitimidade do governante supõe o voto consciente e bem esclarecido. Afinal, igualdade, liberdade e transparência são fundamento da democracia.

Nesse contexto, as novas tecnologias, notadamente a Internet e as redes, sociais têm realizado um papel sem paralelo em nossa história. Têm mesmo contribuído para o estabelecimento de um novo padrão de comportamento no meio político-social, notadamente nas campanhas. Afinal, tudo e todos estão em permanente exposição pública. Se alguém é filmado ou gravado dizendo ou realizando algo inconveniente, indigno, falso, moralmente incorreto ou mesmo ilícito, logo em seguida (ou em tempo oportuno) isso provavelmente virá à tona, sendo debatido nas redes sociais, exibido no YouTube, transmitido pelo WhatsApp e assistido por milhares de pessoas. Pode-se, pois, dizer que a presença das novas tecnologias e da Internet no jogo político-eleitoral impõe que as pessoas redobrem o cuidado com suas palavras e ações. Como efeito colateral, tem-se que os atores políticos tornam-se menos espontâneas e mais apegadas a roteiros pré-elaborados.

De qualquer forma, as eleições de 2014 evidenciaram que as novas tecnologias e a Internet tornaram-se ferramentas essenciais nas campanhas político-eleitorais, que delas já não podem prescindir. Ainda que haja pessoas que não tenham acesso a elas, certamente os formadores de opinião a acessam, sendo, portanto, aquelas pessoas indiretamente influenciadas pelos discursos que circulam na web.

Mas é importante ressaltar que, com vistas a atrair eleitores, as estratégias empregadas nas campanhas virtuais nem sempre envolvem a veiculação de comunicações positivas acerca dos candidatos e partidos em disputa. Ao contrário, em numerosos casos, o discurso tem o sentido de “detonar” o adversário político. Não mais se tem um adversário que deve ser respeitado, mas um inimigo a ser abatido. Por isso, no mais das vezes a comunicação assume um tom agressivo, virulento, de baixo nível. Mas não é só isso, pois em circulação há muita informação distorcida, enganosa, falsa – e muitos textos (artigos?) panfletários disfarçados de apreciação desinteressada e objetiva da realidade. Na luta pelo poder, até mesmo aplicativos e jogos para tablets e smartphones são desenvolvidos com vistas a suscitar nos eleitores sentimentos de medo ou aversão ao candidato visado.

Sabe-se que no submundo virtual é possível se comprar falsos seguidores e inflar artificialmente o número de fãs das páginas de candidatos e partidos. Com isso, o beneficiário aparece mais popular do que realmente é, o que lhe rende aparente poder de influência política que na realidade não possui, confundindo, assim, o eleitor. Conforme informa Nick Bilton (http://bits.blogs.nytimes.com/2014/04/20/friends-and-influence-for-sale-online/?_php=true&_type=blogs&_php=true&_type=blogs&_php=true&_type=blogs&_r=2– Acesso em 26-05-
2014, às 11:06hs.), uma pessoa pode ganhar 4 mil seguidores pagando apenas cinco dólares; por 3.700 dólares garante-se 1 milhão de seguidores. Pena que esses seguidores não são também eleitores!

Como tática eleitoral, a propaganda negativa e a distorção da comunicação no meio virtual podem provocar sérios danos à imagem de suas vítimas, contra elas atraindo sentimentos de antipatia, indignação, repulsa ou desprezo por parte dos eleitores. Mormente quando fundada em fatos mendazes, se for inteligente, divertida e de fácil compreensão, pode ser devastadora para uma candidatura eleitoral, sobretudo quando o candidato passa a ser alvo de chacotas e piadinhas.

Posto que haja liberdade de comunicação e manifestação do pensamento na web (liberdade essa assegurada por lei), vale assinalar não ser esse um ambiente completamente livre, em que tudo pode ser dito e feito impunemente. Há limites bem delineados nas normas eleitorais. A conduta ilícita pode provocar a responsabilização do agente, candidato e partido nas searas eleitoral, penal, administrativa e civil.

No que se refere ao âmbito penal eleitoral, pode-se cogitar a incidência de crimes como o de divulgação de falsos fatos na propaganda eleitoral, previsto no art. 323 do Código Eleitoral, bem como de calúnia, difamação e injúria eleitorais, previstos respectivamente nos arts. 324, 325 e 326 do mesmo Código. De ver-se, ainda, que os §§ 1º e 2º do art. 57-H da Lei nº 9.504/97 pune a contratação de pessoas com a finalidade específica de emitir mensagens ou comentários na Internet para ofender a honra ou denegrir a imagem de candidato, partido ou coligação.

Esses tipos penais eleitorais incidem sempre que o agente extrapolar as fronteiras ético-jurídicas por eles demarcadas, veiculando, por exemplo, informação falsa ou atacando a honra objetiva (calúnia e difamação) ou subjetiva (injúria) de candidato.

A propósito, notadamente no pleito presidencial de 2014, tornaram-se comezinhas agressões à chamada honra dignidade, que identifica o sentimento da pessoa em relação a seus próprios atributos ou valores morais, tais como honestidade, retidão de caráter, agir ético-moral; isso pode ter ocorrido, por exemplo, quando se chamou o oponente de leviano, mentiroso, tendencioso. Também a honra decoro restou afetada, entendida ela como a estima da pessoa em relação a suas qualidades físicas e intelectuais; assim, por exemplo, a honra decoro pode ter sido agravada quando se insinuou que o oponente praticou corrupção ou improbidade administrativa, ou que é incompetente.

Advirta-se, porém, que nos crimes contra a honra ocorridos nos domínios eleitorais, a análise do contexto da conduta assume especial relevo para a afirmação da tipicidade da conduta. É preciso ter presente que o ambiente é de embate político, de disputa, de ânimos quase sempre exaltados. Nesse ambiente, é corrente a crítica ácida, a comparação mordaz, o uso de expressões ásperas, o tom caricatural, enfim, a ironia e o sarcasmo. Nesse contexto, tênue é a linha que separa a ação lícita da delituosa.

Sob outra perspectiva, um traço tradicional do processo eleitoral brasileiro é o uso da máquina administrativa estatal em prol ou contra candidaturas. Não há dúvida de que quem quer que a controle a usa em seu próprio proveito ou em benefício daqueles a quem emprestam seu apoio. E é tão evidente e disseminado esse uso que se chega a zombar de candidatos à reeleição que não são reeleitos ou sequer chegam ao segundo turno.

Como exemplo desse mau uso (ou abuso), tomem-se dois fatos que se tornaram públicos e que supostamente teriam ocorrido nas eleições presidenciais de 2014. Refiro-me às denúncias de uso eleitoral da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (que juridicamente se constitui como empresa pública federal). Em São Paulo, afirmou-se que os Correios teriam sido usados para distribuir, de forma irregular e com prioridade, panfletos (ou santinhos) eleitorais (vide em: http://politica.estadao.com.br/noticias/eleicoes,mpf-da-prazo-de-30-dias-para-dilma-explicar-eventual-uso-dos-correios,1573121; e também, em:  http://www.youtube.com/watch?v=wQh-WC7RpPI&feature=youtu.be; e ainda em: http://epocanegocios.globo.com/Informacao/Dilemas/noticia/2014/09/correios-entregam-panfletos-de-dilma-em-sao-paulo.html – Acesso desses três sites em 7-10-2014). Já no Estado de Minas Gerais, asseverou-se que os Correios não entregaram as correspondências contendo propaganda eleitoral de um dos candidatos (vide em http://g1.globo.com/sp/mogi-das-cruzes-suzano/eleicoes/2014/noticia/2014/10/aecio-questionara-correios-na-justica-por-cartas-de-campanha-nao-entregues.html – Acesso em 7-10-2014).

O Direito Eleitoral contém institutos de direito material e processual que têm o fim precípuo de coibir o uso da máquina administrativa em eleições. Tal uso é ilícito, proibido, traduzindo abuso de poder político. Mas a afirmação de ocorrência ou não de abuso dependerá do confronto do caso concreto (que deve ser devidamente comprovado) com os parâmetros legalmente estabelecidos.

Deveras, reza a Lei de Inelegibilidades (LC nº 64/1990) que o abuso de poder político pode resultar na cassação de registro do candidato beneficiado, bem como na cassação de sua diplomação (se eleito) e, ainda, em sua inelegibilidade. E mais: o art. 73, I, da Lei nº 9.504/1997 considera conduta vedada “ceder ou usar, em benefício de candidato, partido político ou coligação, bens móveis ou imóveis, pertencentes à administração direta ou indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Territórios e dos Municípios […]”. Nessa regra, o termo “bens móveis” abrange serviços. Isso porque, juridicamente, os serviços têm natureza de bem móvel. Nos termos dos parágrafos 4º e 5º daquele artigo, a prática de conduta vedada sujeita os agentes e beneficiários às sanções de multa, cassação do registro e do diploma; além disso, há também a inelegibilidade prevista no art. 1º, I, j, da LC nº 64/1990.

Já sob a ótica criminal, relativamente ao primeiro fato, poder-se-ia, em tese, cogitar a incidência do art. 334 do Código Eleitoral, que prevê o crime de uso irregular de organização comercial nos seguintes termos: “Art. 334. Utilizar organização comercial de vendas, distribuição de mercadorias, prêmios e sorteios para propaganda ou aliciamento de eleitores: Pena – detenção de seis meses a um ano e cassação do registro se o responsável for candidato.”

Esse dispositivo tem por finalidade proteger bens como igualdade das campanhas, legitimidade e representatividade do eleito. Pretende-se que a representação popular seja genuína, autêntica e, sobretudo, originada de procedimentos e práticas legítimos. A vida democrática não se resume ao mero cumprimento de fórmulas procedimentais, pois o exercício legítimo do poder exsurge sobretudo do real respeito àqueles bens.

É verdade que o tipo objetivo fala em “organização comercial de vendas”. Mas, embora os Correios tenham natureza jurídica de empresa pública, não há dúvida de que constituem uma organização empresarial (comercial) que presta serviço sob o regime de monopólio (CF, art. 21, X). O serviço “vendido” ou prestado refere-se à distribuição de correspondências.

Nesse sentido, há um interessante precedente do Tribunal Superior Eleitoral, segundo o qual o “artigo 334 do Código Eleitoral encerra quatro tipos penais, todos ligados à utilização de meios objetivando a propaganda ou o aliciamento de eleitores: a) valer-se de organização comercial de vendas; b) distribuir mercadorias; c) distribuir prêmios e d) proceder a sorteios. Os três últimos não pressupõem necessariamente, o envolvimento de organização comercial de vendas, podendo resultar de atividade desenvolvida por qualquer outra pessoa jurídica ou natural, como ocorre quando a distribuição de mercadorias seja feita por entidade assistencial, colocando-se as cestas a fotografia de certo candidato.” (TSE – REspe nº 9.607/SP – DJ 9-8-1993, p. 15.215).

Quanto ao segundo fato, vale lembrar o teor do art. 338 do Código Eleitoral, que prevê o crime de não assegurar prioridade postal, in verbis: “Art. 338. Não assegurar o funcionário postal a prioridade prevista no Art. 239: Pena – Pagamento de 30 a 60 dias-multa.”

Vê-se que esse dispositivo veicula uma norma penal em branco, pois sua compreensão e aplicação dependem de complementação de outra norma. Conquanto ele descreva uma conduta típica, essa descrição demanda o complemento contido no art. 239 do mesmo Código. Este último artigo assegura prioridade postal a partidos políticos nos seguintes termos: “Aos partidos políticos é assegurada a prioridade postal durante os 60 (sessenta) dias anteriores à realização das eleições, para remessa de material de propaganda de seus candidatos registrados.”

O citado art. 338 tem por objetivo afiançar a realização de propaganda e, pois, a eficácia das campanhas eleitorais junto aos eleitores. Não há exagero em dizer que sem campanhas os pleitos ficariam esvaziados, pois é por elas que os candidatos se dão a conhecer, apresentando aos cidadãos suas ideias, propostas, projetos e programas, bem como informando-os de seus números, os quais deverão ser digitados na urna eletrônica. Isso se perfaz pelas mais diferentes maneiras, destacando-se o emprego de técnicas de marketing que incluem a divulgação de mensagens por material impresso como panfletos, santinhos, cartazes e faixas.

Como se vê, devido à sua conformação de microssistema jurídico, o Direito Eleitoral regula diversas relações, comportando sanções de diferentes ordens, inclusive de natureza criminal. Mas a responsabilização eleitoral não prejudica a incidência de outras sanções emanadas de distintos ramos do Direito, tais como as decorrentes de improbidade administrativa e de responsabilidade civil por danos morais.

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(*) Doutor em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG, onde foi Professor Adjunto. Professor no Programa de Mestrado do Instituto Brasiliense de Direito Público – IDP. Após aprovação em concursos públicos de provas e títulos, foi nomeado Juiz Federal Substituto no TRF da 3ª Região/SP, em 1996, e no TRF da 1ª Região/DF, em 1997.