Pressa e falácia no caso Pizzolato

Frederico Vasconcelos

Pizzolato TV FOLHA

Sob o título “A não extradição de Pizzolato, o ‘By Pass’, a motivação da decisão e as condições carcerárias brasileiras“, o artigo a seguir é de autoria do procurador de Justiça Edilson Mougenot Bonfim, do Ministério Público do Estado de São Paulo.(*) Foi publicado no último dia 10 no site “Fato Notório“.

Reproduzido no Blog com permissão do autor, o texto revela, na sua avaliação, semelhanças com o entendimento do Ministério Público italiano, que na última segunda-feira recorreu contra a decisão do tribunal de Bolonha que negou a extradição do ex-diretor de Marketing do Banco do Brasil condenado na ação penal do mensalão.

 

Quem tomou conhecimento pela mídia nacional da recente decisão da Itália em não extraditar Pizzolato (ex-diretor do banco do Brasil, condenado no “Mensalão”), pelas ‘péssimas condições das penitenciárias brasileiras que colocariam um cidadão italiano em risco”, rapidamente faz uma operação mental que acaba, sem muito questionamento, por dar razão ao decidido. Chamamos isso de conclusões per saltum ou by pass,  que são aquelas decisões que saltam instâncias de um processo lógico do raciocínio, como aquelas que partindo de uma premissa qualquer, sem a averiguação da veracidade da mesma, apressa-se em concluir. Isto se dá sem muito engajamento mental e sem perguntar, se a conclusão chegada,  baseia-se na razão. O método caboclo é bem simples: todos os dias, bombardeados por centenas de denúncias das péssimas condições do sistema carcerário brasileiro, e diante de uma decisão estrangeira que invoca tais e péssimas condições carcerárias, automaticamente aderimos à mesma, saltando à conclusão apressada e dizemos: estão certos!

As questões que se põem: do “to be or not to be” shakespereano à versão italiana do “se è vero o no”?

Duas questões aí se impõem para aqueles que não “comem o prato feito” sem antes analisá-lo, perscrutando a situação com critério, para só então chegar às suas próprias –e legítimas- conclusões: a primeira questão é perguntar-se se a fundamentação escrita da sentença é sempre uma expressão de fé, vale dizer, sempre o real motivo que levou à decisão final, ou seja, à parte dispositiva da decisão?

b) a segunda questão que se levanta, considerando verdadeira a motivação dada,  é perguntar-se em relação a qual ou quais países as condições carcerárias brasileiras são tão mais terríveis – sobretudo considerando-se a Penitenciária da Papuda, para onde iria o aludido condenado- a ponto de impedir a extradição?

Referente à primeira parte, o que importa esclarecer é que nem tudo que está escrito como “fundamentação da sentença”, necessariamente, foi realmente a causa daquela decisão. Isso pode não estar correto, mas, é humano. As constituições democráticas, como a brasileira (art. 93, IX), impõem apenas o requisito obrigatório das fundamentações das sentenças. Contudo, há de se  questionar os reais motivos que a ditaram. Não sem razão o grande Piero Calamandrei, italiano e mestre inconteste do processo,  dizia com acerto que a motivação ou fundamentação pode se configurar apenas em um “biombo dialético” da sentença: muito magistrado fundamentaria bem, e decidiria mal, por vez que apenas escolheria como razão de decidir, algo que reputasse conveniente para si, defensável como argumento, ainda que não fosse verdade. Daí ser um “biombo”, no sentido de proteger-se o prolator, escondendo eventualmente um real intento censurável. Primeiro se chegaria à decisão pretendida (condeno ou absolvo, concedo ou não concedo…), e depois, dentre as possíveis razões invocáveis para decidir, se escolheria a que melhor lhe aprouvesse, como fundamentação. É um processo, digamos, politicamente menos arriscado, já que, somente um louco, caso decidisse por antipatia com a parte vencida, venalidade, ideologia diversa, maldade, escreveria com todas as letras as razões de tal decisão. Sempre –humanamente- preferível, sair-se bem na foto do julgamento social a que  estamos sujeitos…

Da doutrina italiana ao “case”: as funções da motivação da sentença

Em meu “Curso de Processo Penal” (10 ed., no prelo, Saraiva, 2015), partindo da própria doutrina italiana (Paolo Tonini), explico que a motivação/fundamentação da sentença tem duas funções: uma, chamada endoprocessual, que é aquela voltada às partes do processo, para que o vencido, em razão dos motivos nela apontados, possa –em tese- saber porque sucumbiu, podendo assim recorrer; outra,  extraprocessual,   que é voltada à sociedade  e que desenvolve uma atividade eminentemente democrática, uma vez que possibilita um controle externo sobre o fundamento da decisão, em razão de que com a motivação o juiz expõe e justifica as razões de sua opção, ao exercitar o poder decisório, administrando a justiça em nome do povo.

Assim, analisando em linhas gerais a decisão referida, o faço em exercício meramente extraprocessual, ousando dizer, que a decisão prolatada desta feita, muito mais que preocupada com fatores endoprocessuais (as partes são Estados soberanos, que resolvem e elucidam tais questões, não somente por caminhos nada-mais-que-jurídicos, mas, principalmente, por interlocuções diplomáticas), voltou-se muito mais à função  extraprocessual -pela natureza do crime praticado e pela extensão midiática do caso- voltando-se ao grande público, sabedora da especulação política que a mesma por ventura viesse a ter. Assim, muito mais simpático ao prolator, parece-nos,  atacar um fato conhecido e notório, um consenso –as más condições carcerárias do país- que dizer, por hipótese –e apenas por hipótese-, que a extradição não se daria por uma questão de reciprocidade ao país que negou  extradição análoga: como sabido, Cesari Batistti, condenado na Itália por diversos crimes, teve negada a extradição pelo Brasil; donde mereceria o Brasil, igualmente, por reciprocidade, ter negado da Itália a extradição de Pizzolato.

Se assim o fizesse, algo que não fora consensual desde sua origem –o país se dividira, à época, entre conceder ou não conceder a extradição de Battisti-, tornar-se-ia agora, muito mais polêmico, ensejando frontais ataques ao governo que não concedera aquela extradição. Se non è vero, è ben trovato!

Por que se analisa a decisão?

Mas, por que esta minha análise quanto às razões de decidir? Simples especulação ou busca de especificação por critérios técnicos na decisão? Prevenção contra Pizzolato? Não mais do que qualquer outro brasileiro que, como eu, não o conhece pessoalmente, mas, que aceitando o que disse o STF, sabe o que ele fez no “verão passado”? Prevenção, no sentido comum do termo, contra a justiça italiana? Ora, todos sabemos, que erros judiciários e boas decisões, não se pautam, de regra, pelas nações que as prolatam, havendo elogios e críticas, por doquier (por todas as partes), como diriam os hispânicos. Prazer em atacar –l’art pour l’art- uma decisão estrangeira praticamente consolidada? Ora, pois, reservo os prazeres –como diria Churchill- para coisas físicas e analisar decisões não se alista em meu rol de prazeres, muito ao contrário, talvez, dever do ofício…!

Faltou técnica nas razões de decidir? A análise da segunda questão: as péssimas condições carcerárias brasileiras?

Aqui voltamos a um consenso: as condições carcerárias brasileiras, normalmente são muito ruins, havendo muito que melhorar. Se quiserem mais ênfase, de modo a atacar mais as penitenciárias nacionais, já teremos que começar uma discussão: de qual penitenciária falamos? Temos aquelas de nível internacionalmente aceitável, modelares, até as de pior nível, reprovadas no menor teste humanístico. Mas, considerando-se a Penitenciária da Papuda – para onde se dirigiram os demais condenados do “Mensalão”- pretender qualificá-la de péssima, parece-nos um adjetivo pessimamente enganador.

Consenso: todo cárcere é castigo, portanto, ruim para o apenado. Controverso: as penitenciárias brasileiras são as piores do mundo?

Bem, se digitarmos as palavras mágicas  “worst prison in the world”, “25 most brutal prison in the world” nos mecanismos de buscas na internet, veremos que não temos entre as 25 piores penitenciárias do mundo, nenhuma brasileira. Temos nos EUA (aliás, não creio que com relação a estes, a Itália fosse invocar o mesmo argumento que invocou ao Brasil para negar a extradição). Exitem na Rússia. Em Israel. Inclusive em Paris, na França (La Santé Prison, onde está o famoso terrorista, Carlos, o Chacal), paradigma da luta em prol dos direitos fundamentais. Temos ainda na América Central e do Sul, bem como na Ásia. Mas, o Brasil, caso figure em alguma lista, será sempre uma questão controvertida, pois não chega a ser exatamente pior do que muitos outros, aos quais se confere extradição. Má-nutrição, péssimas condições sanitárias, acusações de maus-tratos, violações de direitos fundamentais, até a surrada descrição de “inferno na terra”, não são características genuínas brasileiras, muito menos, características comuns a todos os presídios nacionais. Digite “jail” ou “prison” e “hell on Earth” e verá quantos “infernos na terra” existem como presídios. Mas, não consta –pelos céus!-, que nosso condenado ilustre fosse endereçado a qualquer destas sucursais do inferno.

A questão italiana e a falácia da decisão

Aliás, a própria Itália, já em 2012, foi criticada pela superlotação carcerária pelo departamento de direitos humanos do governo norte-americano no Report on International Prison Conditions – US Department …, apontada como a mais urgente das questões penitenciárias a ser tratadas, não sendo raros os epítetos de “desumanos” endereçados a seus presídios –vale a busca, hoje tão acessível-, como também na França, Bélgica, Inglaterra e tantos outros países ao redor do mundo. Na Inglaterra, as más condições dos presídios tem sido apontadas como causa de aumento de suicídios (veja a reportagem da BBC: “prison conditions contributing to suicides, inspector says”). Até a insuspeita Suiça, não escapou: digite “guards revolt over Geneva jail conditions” em suas “buscas”, e verá que em abril de 2013, tanto os 170 guardas do presídio de  Champ-Dollon, em Genebra, quanto centenas de presos, protestaram contra a superlotação carcerária e as péssimas condições em que trabalhavam e se submetiam os reeducandos.

Assim, a Itália falar das condições carcerárias do Brasil, é como o “roto falando do esfarrapado”: se merecem! O argumento moral para negar a extradição, aqui não se sustenta. Se um merece mais crítica que outro, é só uma questão de quantidade, de qual presídio tratamos, porque crítica, por crítica, ou seja a má qualidade de presídios, ambos as merecem e, portanto, se merecem. Não há inferno aqui e paraíso por lá, virtude de um lado e pecado de outro. Quer um paralelo com a medicina pública? Pesquisem os testemunhos de brasileiros que perambularam pelos hospitais públicos italianos e verão que em alguns casos –sempre a questão da comparação- sentiram muita saudade  do SUS nacional. Não podemos ser genéricos, generalizar como se fez na citada decisão, a justiça reclama a especificidade das premissas decidendas. Assim, nem tudo que é estrangeiro é melhor, como nem todo imigrante faz o bem para o país ao qual emigra.

A voz do condenado

A crítica às condições do cárcere, vindo da boca do interessado é quase regra. E é natural. Nesse aspecto, Pizzolato também não conseguiu originalidade: elogiou a Itália, para onde fugiu, sabendo que seria posto em liberdade caso lá permanecesse, atacando o Brasil que tanto dinheiro e poder lhe deu, com os mais violentos e baixos adjetivos, dizendo que aqui seria submetido a uma “tortura”. O que diz Amanda Knox, a famosa norte-americana  condenada por homicídio na Itália, a respeito do tempo que ficou presa naquelas paragens? Foi uma “tortura”, diz ela. Digite “Amanda Knox says her time in Italian jail was “torture”, e verão  que os crimes se repetem, os álibis se repetem, as críticas se repetem, até as falsas premissas se repetem, como as decisões equivocadas podem se repetir,  como aliás se diz, que se repete a  história, mudando somente a data e o nome dos personagens. Ademais da corrupção que se repete, o resto não deveria se repetir: como se já não tivéssemos malandros suficientes em terras brasileiras,  os importamos sem querermos, e quando buscamos extraditá-los, por crimes, conosco não se importam.

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(*) Edilson Mougenot Bonfim é procurador de Justiça (MP/SP), jurista e professor universitário – é professor convidado nos cursos de graduação e mestrado da Faculdade de Direito de Aix-en-Provence (França). Doutor em Direito Processual Penal pela Universidade Complutense de Madri-Espanha, estudou Filosofia do Direito, Direito Penal e Direito Penal Comparado no Instituto Ortega y Gasset (Madri). É autor de diversas obras jurídicas na área de Direito Processual Penal.