Livre manifestação e hipocrisias

Frederico Vasconcelos

Sob o título “Livre manifestação do pensamento?”, o artigo a seguir é de autoria de Edison Vicentini Barroso, desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. O autor assina o texto como “cidadão brasileiro”.

 

No seu art. 5º, IV, a Constituição Federal diz ser “livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato”. Em seu inciso IX, dentre outras coisas, alude à liberdade de expressão da atividade intelectual e de comunicação, “independentemente de censura ou licença”.

Não nos esqueçamos de que esses preceitos estão inseridos no Capítulo relativo aos “Direitos e Deveres Individuais e Coletivos”, insuscetíveis, pois, sequer, por traduzirem cláusulas pétreas, de retoque por via de emenda constitucional. Disso, ressalta sua indiscutível importância. Mais que isto, sua indispensável observância.

Uma primeira indagação nos vem à mente: o que está grafado na Constituição é pra valer, ou não? Querem saber a razão da pergunta? Estamos num país chamado Brasil, donde, duns tempos pra cá, muitas são as distorções. Que o diga a gritante inversão de valores, associada a mal disfarçada hipocrisia.

Enfoquemos o fato. Há mais dum ano, o cidadão brasileiro Davy Lincoln Rocha, por acaso procurador da República, filho de pai já falecido e ex-Oficial da Marinha de Guerra brasileira, sempre na só condição de cidadão deste País, postou em rede social (facebook) “Carta Aberta às Forças Armadas Brasileiras”, pela qual, historiados fatos recentes da vida nacional (de todos conhecidos), externou estranheza e decepção com os oficiais militares, tidos por tímidos diante do grave quadro social estabelecido.

Fê-lo, repita-se (sem entrar no mérito dos termos da apontada Carta), sob invocação de sua só condição de “Cidadão Brasileiro” – do que se vê ao início da manifestação do pensamento, a também traduzir liberdade de expressão de atividade intelectual e de comunicação – na dicção das já mencionadas diretrizes constitucionais! E, para fazê-lo, inda segundo a Constituição, dispensava licença, sem risco de censura!

Porém, um dos conselheiros do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) teve acesso à publicação e não gostou do que viu. Propôs abertura de procedimento de apuração disciplinar, aventada hipótese, inclusive, de ocorrência de crime contra a ordem democrática, afrontado decoro pessoal. E o que, de cara, sobrou para o procurador/cidadão (não seria cidadão/procurador?)? Pena de afastamento de noventa dias.

Consta ter o cidadão, agora na posição de procurador da República, impetrado Mandado de Segurança no Supremo Tribunal Federal (STF). E o fez bem, digo eu – aqui, também na só condição de cidadão brasileiro, sem invocação de minha atividade funcional!

Causa espécie a hipocrisia, o farisaísmo com que, neste País, as coisas são tratadas. Como se a um cidadão, seja ele o que for, faça ele o que fizer, escudado na Constituição Federal, não fosse permitida a livre manifestação do pensamento. Afinal, estamos mesmo numa democracia? Mas, no contexto do fato, existe “ordem democrática” a preservar? Mais que isso, em que ponto do caminho perlustrado pelo conselheiro, inda que em tese, se divisa falta de decoro? E não serei eu a lhe dizer o que essa palavra significa ou de seu real alcance – que vá ao dicionário!

Do que não se admite é o cerceamento do direito de se dizer o que pensa; ao menos, numa democracia que não seja só de papel! Nesta, a de papel – disposta de maneira a mascarar, quiçá, uma ditadura real –, sim!, admitem-se restrições, limitações de toda ordem, até contra a ordem constitucional!

E se nos abalançássemos a examinar os termos da indigitada “Carta”, nela não haveríamos de detectar inverdades. Ao menos, numa análise permeada por uma consciência sã e imparcial!

E quanto do aceno, pelo tal conselheiro, de incitamento à intervenção militar no Brasil, agravada pela participação dos Estados Unidos da América, de igual forma, daquele texto não se pode concluir. Definitivamente, dele não se vê incitação a golpe, mas da só opinião dum cidadão brasileiro.

Golpes, sim, temos sofrido com a sucessão ininterrupta de escândalos relativos à sangria dos cofres públicos e à ameaça frequente de perturbação institucional, da ordem pública, mediante atos inequívocos de aparelhamento do Estado. Enfim, mercê da corrupção desenfreada neste País, que, de celeiro da humanidade, passou a paraíso da impunidade!

Até quando haveremos de ver e conviver com a aparência de cumprimento de diretrizes constitucionais, segundo a conveniência de tal ou qual? Até quando daremos de ombro com atos, hoje mais habituais do que se pensa, tendentes a rasgar a Constituição Federal (que sirva de exemplo a tentativa governamental de mexer na Lei de Diretrizes Orçamentárias)? Até quando, em nome dum discurso sem beira nem eira (vazio de conteúdo), dissociado dos acontecimentos reais da vida social brasileira, se chamará à Justiça a quem ouse falar o que pensa, com sinceridade e sem hipocrisia? Até quando haveremos de ver prevalecer, impunes, os ratos dos porões do País?

Passou da hora de se dar um basta a esse “jogo de faz de conta”, pois é tempo de renovação de ideias, que de fato se ajustem a direitos constitucionais não sujeitos à ação política e perniciosa dos homens! Viva a Constituição nacional, acima de interesses particularistas de cunho populista. Avante, Brasil!