Streck: Decisões judiciais e artesanato
Em artigo no “Consultor Jurídico“, o jurista Lenio Luiz Streck aborda declaração do presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo, José Renato Nalini, reproduzida em reportagem na Folha.
Eis alguns trechos do artigo de Streck:
Questionado acerca do fato de 30% dos processos atrasados no Tribunal de Justiça de São Paulo estarem na mão de poucos desembargadores (portanto, a maioria está em dia com os feitos), o presidente do tribunal paulista, José Renato Nalini, afirmou que a produção doutrinária nas decisões judiciais deve ficar para horas de lazer. Disse também que muitos dos desembargadores que atrasam processos ainda fazem citações doutrinárias e trabalham artesanalmente.
Tenho enorme apreço pelo desembargador Renato Nalini, presidente do TJ-SP. Ele mesmo é doutrinador dos bons.
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Mas que há problemas na (e a partir da fala) do desembargador Nalini, ah, isso há, por mais razões pragmáticas que ele tenha para acelerar os processos que tramitam no TJ-SP. Afinal, é o gestor e é cobrado por isso. Entretanto, o que se pode colocar como solução para quem trabalha, digamos assim, mais artesanalmente? Uma produção em massa “tipo indústria de carro” (modelo fordista ou toyotista)?
Posso até concordar com o que disse Nalini. Mas, então, temos que assumir que o Direito é uma mera técnica, uma mera racionalidade instrumental. E que não é necessário muito brilho ou raciocínio sofisticado para produzir sentenças, as quais, pelo visto – em face da exigência de efetividades quantitativas (e esse problema não se restringe a SP, é óbvio) – devem ser seriadas.
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De todo modo, penso que não podemos dicotomizar a discussão, com algo do tipo “ou o julgador é rápido e raso ou ele é lento e profundo”. Nem de longe o desembargador Nalini, magistrado e intelectual reconhecido, pensa assim. E nem eu. Ambos não seríamos ingênuos para dizer isso. Deve haver outro modo – e sei que há – para que não precisemos escolher entre um modelo socrático e um modelo fordista para o Direito. Ou seja: uma decisão não precisa ser um livro ou um tratado; mas, por favor, também não deve ser uma mera reprodução de um dispositivo de lei ou de uma ementa jurisprudencial (no mais das vezes sem contexto). Nem oito, nem oitenta.
O furo, claro, é sempre mais embaixo. O problema de São Paulo (e do resto do Brasil) – e as declarações do pesidente do TJ estão inseridas em algo bem maior – é a crise de paradigma(s) que atravessa(m) o Direito. E isto é assim porque estamos lidando com o “que está aí” a partir de um conjunto de sentidos coagulados. Há uma grande poluição semântica cobrindo e recobrindo as significações do direito.
(…)
Imagino o dilema ou o drama do presidente Nalini. O intelectual e o gestor em um lugar só, tendo que dar conta de demandas pragmáticas que somente se realizam, pelo menos no imaginário jurídico dominante, por intermédio de efetividades quantitativas. Metas: eis a palavra de ordem do CNJ. Sabemos todos das dificuldades que a operacionalidade do direito enfrenta em um país em que, depois da Constituição, a falta de políticas públicas fez com que a cidadania fosse toda “transferida” para os fóruns e tribunais. Presidencialismos de-coalisão-e-de-emendas-parlamentares geram poucas políticas; e como os direitos estão previstos na Constituição, corramos todos ao Judiciário. Resultado? Lotação esgotada. Bingo!
Resposta do establishment: súmulas vinculantes e repercussão geral, enfim, a famosa jurisprudência defensiva. E pau no utente. Tudo para tentar, por dentro, minimizar o caos. Adaptação darwiniana – é isso que vem ocorrendo paulatinamente.
Mas, convenhamos, também a comunidade jurídica “ajudou” nisso tudo. Paradoxalmente, enfraquecemos a cidadania ao proporcionar uma corrida ao (pai) Judiciário.