Juiz criminal de Caraguatatuba agiliza o julgamento de casos mais simples
O artigo a seguir, sob o título “Projeto ‘Fast Track’ Penal – A oralidade aplicada ao processo penal”, é de autoria de Bruno Luiz Cassiolato, Juiz de Direito da Vara Criminal de Caraguatatuba (SP).
Trata de experiência realizada na comarca para agilizar o julgamento de casos mais simples, desde que as partes estejam sempre de acordo. “Os ganhos em celeridade e efetividade, no entanto, não estarão restritos a esses processos mais simples, que não são maioria”, diz Cassiolato.
“O tempo e os gastos materiais que seriam nele empregados, com o atingimento da mesma finalidade, serão mais bem empregados para a condução dos processos mais complexos, relacionados com crimes mais graves, nos quais a realização do procedimento escrito, em toda sua profundidade, é imprescindível”, esclarece.
A seguir, a íntegra do artigo:
São sete horas da manhã em Caraguatatuba/SP. O despertador toca. Levanto, tomo um banho, coloco meu terno e vou para a Vara Criminal da qual sou titular. Em Curitiba/PR, Sergio Moro faz o mesmo.
Ambos teremos muito trabalho ao longo do dia. Proferiremos decisões, sentenças, faremos audiências, atenderemos advogados, delegados, e tantas outras atividades.
No entanto, algo mais nos une.
Para presidir a instrução do processo criminal decorrente da “Operação Lava-Jato”, Sergio Moro utilizará exatamente o mesmo procedimento que eu empregarei para presidir a instrução do processo criminal do “Seu Chico”, que há alguns meses foi denunciado pelo furto de uma panela de pressão do interior de uma residência de veraneio.
As pessoas denunciadas no processo penal conduzido por Sergio Moro não são, sob qualquer aspecto, mais importantes que o “Seu Chico”. Não. Todos eles merecem ver cumpridos os direitos legais e constitucionais que o ordenamento jurídico prevê para os acusados em geral.
Mas será que esse procedimento, com todas as fases que o compõem, precisa ser desenvolvido de forma idêntica por mim e por Sérgio Moro nestes diferentes casos?
O procedimento ao qual eu e Sergio Moro estamos sujeitos nesses dois processos serve – em linhas gerais – para que as partes conheçam a forma pela qual eles serão conduzidos, para que os direitos das partes sejam respeitados e para que a sua finalidade seja atingida, ou seja, para que os fatos denunciados sejam avaliados e julgados por um magistrado, por meio de uma sentença, após o exercício da ampla defesa e do contraditório.
O processo conduzido por Sergio Moro conta com mais de uma dezena de réus que moram em diferentes lugares do país, com inúmeros e complexos fatos criminosos descritos pela acusação e com um sem número de oitivas de testemunhas e interrogatórios que deverão ser feitos. Milhares de documentos serão juntados e todos deverão ser periciados. Várias testemunhas residem fora de Curitiba e poderão ser ouvidas na comarca de seus domicílios, por juízes diferentes, dentre outras complexas providências.
Para que tudo isso seja possível, os servidores da Justiça expedirão ofícios, mandados, cartas precatórias, requisições, uma infinidade de documentos de diferentes espécies. Oficiais de Justiça irão a vários endereços para entregar as ordens do Juízo. Peritos serão nomeados e produzirão seus laudos. Servidores de tantos outros órgãos serão movimentados para atender às ordens judiciais. Advogados precisarão de muito tempo para analisar a substanciosa denúncia e para apresentar suas respostas escritas. As partes precisarão requerer diligências complementares. Sergio Moro precisará de muito tempo para analisar tudo o que for trazido aos autos, de muita estrutura para realizar as diversas audiências que serão designadas e, ao final, para proferir a sentença.
Tudo isso consome tempo e dinheiro público. Em grandes quantidades. A complexidade do caso, no entanto, (e não a “qualidade” dos réus envolvidos, reafirmo) mais do que justifica e impõe o cumprimento do procedimento em toda essa extensão.
O processo conduzido por mim conta apenas com o “Seu Chico” como réu. A ele a acusação imputa um único furto. Nada mais. Não há testemunhas presenciais além dos policiais que fizeram a prisão em flagrante do “Seu Chico”, que foi pego enquanto saía da casa da vítima com a panela de pressão nas mãos e que de pronto confessou os fatos e deu suas justificativas sem maiores rodeios.
Apesar da simplicidade deste processo, eu terei que movimentar a máquina da Justiça tal como Sergio Moro faz no processo que conduz.
A acusação apresentará sua denúncia escrita, a qual será autuada, registrada pelos servidores da Justiça e encaminhada a mim. Uma decisão será proferida para receber a denúncia e para mandar que o “Seu Chico” dela tome conhecimento, conhecimento daquilo que ele já sabe tão bem. Posteriormente o processo será encaminhado a um advogado para que ele apresente a resposta escrita, e o que ocorre na maioria dos casos é a juntada de uma única e singela folha de papel indicando que “Seu Chico” se manifestará apenas durante a audiência de instrução. Depois disso, receberei novamente o processo para confirmar ou não o recebimento da denúncia e designar uma audiência. Na sequência, para que a audiência seja realizada, serão expedidos ofícios, mandados, cartas, requisições. Novos documentos serão juntados. Em toda essa dinâmica, fácil imaginar quantos servidores públicos – do Judiciário, do Ministério Público, da Polícia – serão envolvidos. E quanto dinheiro público será empregado.
Aproximadamente seis a oito meses terão transcorrido desde os fatos denunciados.
No primeiro caso, embora preciosos, todo o tempo e dinheiro público consumido são razoáveis e proporcionais à complexidade do caso que será apreciado pela Justiça. As pessoas compreendem e aceitam isso como fato natural em uma sociedade civilizada e democrática que decidiu resolver seus problemas por meio do Poder Judiciário. No
segundo caso, dificilmente haverá compreensão quanto à grande quantidade de tempo e dinheiro público consumido para a realização do julgamento.
José Renato Nalini, presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo, recentemente publicou um texto com esta temática (“Em busca do ‘fast track’ jurídico”. O Estado de São Paulo. 04.02.2015). Após anos de dedicação ao exercício da jurisdição, e com a enorme experiência que adquiriu, foi enfático ao expor que a morosidade da Justiça é uma das principais causas da crise de confiança que o Poder Judiciário enfrenta. E, ao final, concluiu: “Complicar é fácil. O difícil é ser simples. E se a Justiça não vier a se tornar simples, poderá ser descartada por outras fórmulas mais ágeis e econômicas de resolver questões humanas controvertidas”.
O descarte da Justiça para a solução de questões criminais em razão de sua morosidade e ineficiência pode ser desastrosa: (i) a sociedade sente-se autorizada a praticar a justiça com as próprias mãos, voltando à barbárie, (ii) os criminosos sentem que podem avançar em seus reprováveis intentos e, assim, (iii) a violência aumenta.
Nalini, de forma propositiva, com razão expõe que “o caminho para amenizar essas desventuras em série requer um primeiro passo fundamental: os juízes deveriam assumir uma atitude proativa e estabelecer um ambiente favorável para que advogados dispostos a ofertar peças processuais enxutas, estruturadas e objetivas sejam consagrados com decisões mais rápidas” e que “se os advogados forem incentivados a praticar concisão com qualidade e em contrapartida suas causas receberem atenção e ritmo especial, haverá uma verdadeira revolução no status quo jurídico, principalmente no que tange à agilidade e à eficiência”.
Nesses casos criminais mais simples, como aquele do “Seu Chico”, é realmente preciso e possível conduzir o processo de maneira mais simples, ágil, razoável e econômica.
Com a concordância do Ministério Público e de sua defesa técnica, o caso do “Seu Chico” poderia ser julgado de maneira preferencial – talvez imediata, ou muito breve – desde que as intimações as requisições dos participantes fossem realizados por meios de comunicação ágeis e modernos (telefone, email, fax) e o procedimento fosse realizado de maneira concentrada, numa só audiência, com todos os atos praticados de forma oral. É possível adotar o “fast track” penal nestes casos simples.
Como? Explico.
Uma sociedade que vive em ritmo alucinante, viciada em tecnologia e que se comunica a todo tempo, ainda precisa de tantos ofícios, mandados, cartas precatórias, requisições para todo e qualquer processo judicial?
“Seu Chico” está detido numa delegacia que fica em torno de 3 km de distância do Fórum. Os policiais que o prenderam ali estão também. Próximos do Fórum estão os responsáveis pela acusação e pela defesa. Telefonemas, emails, mensagens, videoconferência, não seriam suficientes neste caso? Quanto tempo e dinheiro público seriam poupados com estas simples medidas?
Após a realização destas comunicações por tais meios, “Seu Chico”, preso em flagrante, será (i) conduzido imediatamente ou em data muito próxima à presença do magistrado, da acusação e do defensor. Neste ato, em audiência judicial, (ii) a legalidade de sua prisão e a necessidade de sua custódia serão analisadas prontamente. Na sequência, (iii) a acusação apresentará a denúncia, na presença de “Seu Chico”, que estará citado e – como se ele já não soubesse – ciente dos fatos que lhe são imputados. A defesa, desde que não precisasse de mais tempo para arrolar testemunhas ou pedir alguma diligência, (iv) manifestar-se-á sobre a denúncia. A seguir, (v) o Magistrado decidirá pela viabilidade da denúncia, por sua rejeição ou pela possibilidade de absolvição sumária. Ocorrendo a primeira situação, (vi) as testemunhas do caso, chamadas em Juízo (por telefone, fax ou email), serão ouvidas. Ao final, (vii) “Seu Chico” será interrogado e, (viii) após as alegações finais das partes, (ix) a sentença será proferida. Todos os atos do procedimento serão realizados numa única oportunidade, na presença das partes e do acusado, de forma concentrada, oral, e registrada em áudio e vídeo, tudo reduzido a termo na ata da audiência judicial. A oralidade do procedimento é possível, desejável, e há muito sua utilização é defendida por juristas, embora seja empregada raramente, timidamente.
Processos que costumam tramitar entre 4 e 8 meses, em média, até que seja proferida sentença passariam a ser julgados em poucos dias. Economia de tempo e de dinheiro público. E de papel. Efetividade na prestação da tutela jurisdicional e pronta resposta à sociedade e ao preso quanto aos fatos denunciados.
A vítima, que atualmente sai contrariada por ter sido chamada para dizer o que viu quando nem mais se lembrava dos fatos, ou quando não mais tinha qualquer interesse no objeto que lhe fora, desta vez sairia da audiência satisfeita e bem impressionada, com a certeza de que funciona a máquina estatal para a qual contribui pagando caros impostos e com a consciência de que a Justiça foi feita.
“Seu Chico” não precisaria aguardar meses para retirar da cabeça a incerteza de um processo criminal que demora a terminar e que lhe impede de alegar suas razões para a conduta praticada – para talvez ser absolvido – ou de confessar os fatos e iniciar o cumprimento de sua pena em retribuição ao erro que cometeu.
A sociedade ganharia em todos os aspectos.
Repito que essa prática poderia ser adotada em casos mais simples, sem qualquer ofensa à ampla defesa ou a outros mandamentos constitucionais ou legais. Todo o procedimento é observado – com a anuência expressa das partes a cada etapa da marcha processual – mas é realizado de forma concetrada e oral.
As partes processuais, Ministério Público e Defesa, representadas por profissionais preparados e testados após aprovação em concursos públicos e exames bastante rigorosos, devem ter autonomia para decidir, durante os trabalhos, se tem ou não condições de praticar os atos processuais de maneira concentrada e oral, se haverá ou não algum tipo de prejuízo, cabendo ao Magistrado interromper o ato e designar nova data para continuação da marcha processual quando não houver essa possibilidade.
Não se exerce a jurisdição criminal com atropelos, mas tampouco ela deve ser exercida mediante a prática de atos burocratizados, mecânicos, padronizados, vazios em conteúdo e carregados de formalismos naqueles determinados casos em que, por meios mais simples, ágeis e modernos, pode-se chegar exatamente ao mesmo resultado. Sem qualquer prejuízo.
Os principais atores do processo penal, juntos, cada qual exercendo seu papel de forma ativa e efetiva, tem nessa prática a possibilidade de contribuir para que a prestação juisdicional em matéria criminal ocorra de maneira célere, efetiva, proativa, e para que o processo penal seja construído por todos eles, de maneira democrática e responsável, voltados para a consecução do resultado final pelo caminho correto, mas pela via mais célere.
A Vara Criminal da Comarca de Caraguatatuba recentemente realizou esse procedimento oralizado com a total aprovação das partes envolvidas e com reconhecimento e interesse da comunidade jurídica local.
Neste primeiro caso, o Réu foi preso em flagrante por uma tentativa de furto praticada em 23.02.2015 e, após a realização de todas as intimações e requisições por meio de telefone e fax, o feito foi julgado definitivamente, sem a interposição de recurso pelas partes, em 27.02.2015, mediante o percurso de todo o procedimento de maneira concentrada e oral, devidamente reduzida a termo na ata de audiência e gravada em áudio e vídeo em mídia digital.
No total, aproximadamente 20 páginas e apenas 4 dias foram consumidos entre a ocorrência dos fatos denunciados e a prolação da sentença definitiva, contra a qual não houve interposição de recursos. Toda a audiência foi realizada em aproximadamente 1 hora (autos nº 0001470-57.2015.8.26.0126, Vara Criminal de Caraguatatuba, TJ-SP).
Pelo procedimento escrito, mais de uma centena de páginas e em torno de 7 meses seriam necesários para que o mesmo objetivo fosse atingido.
A reação das partes envolvidas foi digna de nota.
A vítima teve a oportunidade de ver os fatos julgados enquanto ainda deles se recordava. O mesmo disseram os policiais militares, eis que, ao contrário do que ocorreu nesse caso, nos demais eles pouco se recordam, após meses de distanciamento dos fatos, em razão das inúmeras diligências parecidas que realizam todos os dias. O Réu, que foi absolvido em razão da insignificância material (para a esfera penal) dos fatos a ele imputados, presente e participando da produção das provas em audiência concentrada desde o oferecimento da denúncia, recebeu pronta resposta jurisdicional após poder adentrar e explicar o mérito de sua conduta e expor sua situação a fim de justificá-la. As partes (MP e Defesa), que fatalmente chegariam ao mesmo resultado se fosse desenvolvido o procedimento escrito, puderam resolver o caso e apenas 4 dias, e não em 7 ou 8 meses e após o dispêndio de dinheiro público e particular em quantidades maiores do que o objeto subtraído (chocolates, um tempero em pó e um shampoo).
A Vara Criminal de Caraguatatuba, em conjunto com o Ministério Público, com os advogados criminalistas da Comarca e com as Polícias Civil e Militar, adotará esse procedimento concentrado e oral para processar e julgar os casos simples e prestigiará a oralização de todos os atos procesuais necessários para que o julgamento destes processos ocorra em questão de dias, em breve destacando um dia na pauta de audiências justamente para isso (“fast track” criminal).
Esta prática certamente contribuirá para que a Vara Criminal de Caraguatatuba, perante a qual tramitam aproximadamente 12.000 processos criminais, possa dar uma resposta rápida e efetiva para a sociedade, para as vítimas e também para os denunciados por fatos mais simples. Economizará não apenas recursos materiais, mas também tempo que será direcionado para a conclusão de processos mais graves e complexos que ajudam a rotular negativamente a Comarca como a mais violenta do Estado de São Paulo.
Ainda que esta prática esteja restrita a casos mais simples, que não dependam de perícias ou de atividades mais complexas, o ganho não acontecerá apenas nestes processos. A vantagem é total, na medida em que para os casos criminais mais complexos haverá mais tempo e recursos disponíveis para que a máquina judiciária seja movimentada. Tal como Moro faz no processo da “Lava-Jato”.
A Vara Criminal de Caraguatatuba, que em conjunto com o Ministério Público, Defensoria Pública, Advocacia e CDP já adotou e pratica projeto parecido no âmbito das execuções criminais, com apreciação imediata de benefícios de forma desburocratizada, acredita e perseguirá sempre a ideia de que “medidas aparentemente simples podem desafogar o Judiciário, na esfera criminal. Em verdade, representam singelas mudanças de mentalidade, voltando-se a parte para o processo útil e não para o incentivo à lentidão. Ninguém é vencedor quando o trâmite processual desenvolve-se por anos a fio, redundando em fracasso no tocante à real aplicação da lei, seja para absolver, seja para condenar. A falsa aparência de que a morosidade do processo-crime pode conduzir à impunidade tem um grave revés: após anos da data do fato, emerge, por vezes, uma sentença nitidamente injusta. Punir-se com injustiça pode ser mais grave do que deixar de fazê-lo. Mais propício a todos os que buscam um Judiciário equilibrado e imparcial, de fato, é a luta pela celeridade processual. Sentenças mais justas e mais próximas da realidade coadunam-se com provas proximamente colhidas. Possam os operadores do Direito dar uma chance à prevalência do princípio da oralidade para que se conquiste alguma mudança concreta e positiva no processo penal brasileiro”, como bem pontuou Guilherme de Souza Nucci, outro membro experiente do Tribunal de Justiça de São Paulo (“A reforma do Processo Penal e a Consagração da Oralidade”. Jornal Carta Forense. 1º.09.2008).
Se o Poder Judiciário e os demais órgãos e atores responsáveis pela jurisdição criminal continuarem trilhando sempre o mesmo caminho, acabarão chegando sempre ao mesmo resultado.
Para que mudanças importantes sejam feitas, grandes modificações e vultosos investimentos nem sempre são necessários. Basta, nos mais das vezes, uma modificação de postura, de atitude, de um olhar diferenciado sobre aquilo que vem sendo da mesma forma, automaticamente, há muito tempo.