Corrupção, boas intenções e as leis

Frederico Vasconcelos

Sob o título “A corrupção e o devido processo legal“, o artigo a seguir é de autoria de Edison Vicentini Barroso, desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo.

 

Sobretudo na atual quadra do País, a corrupção é o flagelo maior a vencer. Nesse particular, a ação da Justiça é insubstituível. Porém, sua ação há de se pautar, sempre, pela estrita observação do devido processo legal. A par do clamor popular, existem regras procedimentais a seguir, baseadas em princípios constitucionais e leis que lhes digam respeito.

Assim, inexiste intenção suficientemente boa que contradiga o processo legal, próprio dum Estado Democrático de Direito. A disto se desconsiderar estar-se-á no campo da arbitrariedade, em nada condizente à justiça buscada.

Recentemente, o juiz Sérgio Moro e Antônio Cesar Bochenek, presidente da Ajufe (Associação de Juízes Federais), escreveram artigo no Estadão em defesa da mudança da lei para que réus condenados por crimes graves – relativos a grandes desvios de dinheiro público – aguardem presos o julgamento de eventuais recursos.

Para eles, a proposta não viola a presunção de inocência, a ceder passo, no compasso da lei vigente, à só existência de uma sentença condenatória da qual não mais caiba recurso (transitada em julgado). Sugerem equação invertida, no sentido de que a prisão se torne regra – a admitir exceção – já a partir do primeiro julgamento, de primeira instância. Invocam o exemplo dos Estados Unidos e da França.

Enfocam a problemática da possibilidade de erro judiciário, detectável e sanável por eventual reforma do julgado, contornando-a pela perspectiva de suspensão da eficácia daquela primeira condenação quando presente, por exemplo, a razoabilidade dos fundamentos do recurso.

Partem da premissa de que se não pode supor como geral o erro judiciário, de forma a retirar da sentença a eficácia que haveria de ter desde que nascida, transformando-a numa só opinião judicial. De igual forma quanto aos julgamentos dos tribunais, os chamados acórdãos, a positivamente valerem só a partir do trânsito em julgado.

Tudo, enfatizam, visando a uma justiça efetiva, que se não possa obstar pela sucessão e multiplicidade de recursos infundados, próprios a eternizar o processo e produzir impunidade. Trazem à tona o momento peculiar vivido pelo Brasil, sufocado por crise de escândalo a exigir mudança de ótica quanto à operosidade do atual sistema de Justiça Criminal.

Embora louvável a intenção, não nos parece juridicamente aceitável a proposição, a traduzir verdadeira antecipação de pena. Além disso, de rigor se saiba se, no contexto constitucional, a questão admite modificação. Vejamos.

O artigo 5º, inciso LVII, da Constituição Federal, inserido no Título ‘Dos Direitos e Garantias Fundamentais’ e no Capítulo ‘Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos’, prevê que ‘ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória’.

Por excelência, esse artigo dispõe sobre as chamadas “cláusulas pétreas” – insuscetíveis de mudança. Especificamente sobre a questão, basta também se leia o artigo 60, parágrafo quarto, IV, no sentido de que não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir os direitos e garantias individuais. Justamente, a hipótese de que se trata.

Assim, imutável a regra de presunção de inocência até prova de culpa por sentença penal de que não mais caiba recurso. Princípio lapidar, ínsito ao
Estado de Direito, há de prevalecer, como substrato da justiça e atributo do Judiciário – que lhe serve de agente.

Inegável a constatação do estado de crise brasileira, tanto quanto da existência de excessivos recursos processuais, cujo enxugamento tarda. Todavia, não se pode fazer pouco, ou quase nada, das conquistas da Justiça no campo do Direito, individual e coletivo, iniludivelmente, comprometidas com prerrogativas umbilicalmente ligadas a uma sociedade democrática.

Mesmo na situação atual, a denotar um país espantado, ferido e humilhado, faz-se preciso, quanto mais possível o for, aprimorar a democracia, tornando-a positiva – e não remar contra a maré do progresso feito, à distância da Constituição que rege nossos caminhos. Seria rematado retrocesso, a par da flagrante inconstitucionalidade do alvitre.

De se punir, pois, sim e sempre, os ladrões dos cofres públicos, mas nos conformes da Constituição que aí está – no que de positivo tenha. Esta a conotação do devido processo legal, a conferir legitimidade às ações da Justiça brasileira.

Assim, desarrazoado se transgrida a Constituição a pretexto de se punir bandidos, por melhor seja a intenção. A Lei Maior aí está, para ser cumprida. Questões de política criminal não se podem confundir com o proeminente aspecto da preservação de garantia individual erigida à condição de cláusula pétrea.

Que se passe o Brasil a limpo, mas dentro da legalidade. As instituições democráticas, apesar dos percalços havidos, ganharam vida própria e conquistaram cidadania.

Fora delas, pois, não há salvação. E a ninguém se dá mude isso, por consubstanciar fundamento da própria civilização. Não à corrupção, nos termos da Constituição!