Juiz, cidadão que não está acima da lei

Frederico Vasconcelos

O artigo a seguir, sob o título “Sobre a judicatura atual“, é de autoria de Ricardo Arcoverde Credie, advogado, desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo, aposentado.

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A vida intramuros do trabalho do juiz, como qualquer função pública, é papel encenado por um intérprete que, uma vez nela ungido, deverá assumir o script que lhe atribuem. Está assente que esse papel limita o ator e, sabe-se também, não permite ele possa sair dos limites que estritamente se lhe assinalam. A performance a desempenhar na função significa medirem-se as palavras, os gestos e até apurar o estilo. Há uma deontologia, ou um sistema de deveres éticos inerentes ao papel, em que renúncia, abnegação e disciplina se impõem em cada momento da atuação judicante e fora dela.

Tenho como fundamental  –além da independência, serenidade e exatidão, as três virtudes da Magistratura exortadas pela sua Lei Orgânica–  que os juízes incluissem, de ofício, mais um quarto item no seu patrimônio de valores: a empatia. 

O ensino para ele se colocar no lugar das outras pessoas ou procurar sentir como elas, no caso o jurisdicionado e quem o representa em juízo, e dar solução possível e que melhor atenda a essas súplicas, deveria constar do currículo das escolas de magistrados. 

Dificilmente isso ocorre no começo da vida profissional, porque melhor se haverá na judicatura quem advogou antes e cresceu na prática, nas alegrias e nos reveses da postulação em juízo, a partir das dificuldades na consecução dos objetivos de clientes, no atendimento obrigatoriamente cordial da difícil formação de clientela.

Sofrerá mais o concursado sem esse requisito. No mais das vezes ele saiu há pouco tempo da faculdade, ligou-se à teoria do Direito por uma exigência dos concursos, mas sem o absorver anterior da realidade da vida, e talvez mais, sem nenhuma vivência desta, a demonstrar-se clara a falta de traquejo ou de experiência. No clima de tensão daí decorrente, como exteriorizar a empatia?

A própria investidura do juiz pode estorvar esse intento. Ela pode trazer aos nomeados uma aparente sensação de onipotência, algo megalômana, geradora da magistratite, mal que recebe pronta diagnose pelos gaiatos do entorno, dispensada aí anamnese mais profunda.

Os novatos vão amadurecer com o tempo, é o que se espera.  Mas em alguns casos nem mesmo a própria carreira ensina tal melhoramento àqueles mais empedernidos nas suas convicções, posturas ou, desculpem, na sua rigidez.

Neste particular os menos adaptáveis criam, por eles próprios, condutas que exorbitam daquelas exigidas, papéis intransigentes de encenação que inviabilizam uma postura mais humana e segura diante do usuário da Justiça ou de seus representantes, a complicar assim essas relações, a se desorientarem nos trâmites procedimentais e, perdido este norte na busca da solução das lides, ensopam o processo em lauta burocracia.

A propósito, editado pelo Conselho Nacional de Justiça, o recente Código de Ética da Magistratura proíbe, em seu art. 25, por não ser mais de justiça, que o juiz profira uma resposta de mero procedimentalismo, que não contenha a devida ponderação sobre os efeitos práticos ou implicações da decisão na ordem das coisas, ou seja, sugere aplicar-se a regra do consequencialismo, a advertir sobre o quanto de teratológico, absurdo ou irreparável pode resultar de um ato jurisdicional praticado afoita, imponderada ou irresponsavelmente.  

Ainda como problema obstativo da serenidade, exatidão e empatia  –o labor excessivo. Quem não se prepara técnica e pessoalmente (e esse aprendizado no curso da carreira, apesar de exigir muito, não chega a ser impossível), nunca enfrentará com a devida proficiência comarcas, varas ou câmaras de tribunais mais trabalhosas.
               
Abra-se um parênteses, todavia, neste ponto. Em razão de atrasos avulsos, particulares, todos os juízes nacionais vêm sendo instados a proferir um número mínimo de decisões, sentenças e votos, isto determinado por um órgão superior com parte da sua composição desconhecedora das peculiaridades regionais de cada estado, a pretender uma justiça uniforme em todo este Brasil de mil contrastes. Nos estados com maior movimento de feitos, é como chicotear cavalos cansados o acelerar ou acrescer os serviços forenses com tão poucos integrantes. Deveria este organismo, ao invés, sem descura dos casos individuais de retardo, exigir dos governos estaduais e federal a nomeação de tanta gente e aparelhamento quanto necessários à realização dos misteres judicantes e auxiliares. 

A queda de qualidade é a resultante inexorável desta grande quantidade de trabalho atribuída a cada juiz. No dia a dia, sem dar a cada um o que é seu, no afã de desbastar a pletora, vão-se cometendo ultrajes irremediáveis aos direitos mais comezinhos.

O ator, além desses óbices mais que sabidos, deverá ainda autorrespeitar-se na sua individualidade. Não fazer do papel a sua própria vida, não viver o juiz vinte e quatro horas por dia e, sobretudo, fora do trabalho ser o cidadão comum que realmente precisa ser, nem mais nem menos.

E nessa existência de cidadão comum, ele não pode constranger ninguém, e deve fazer do respeito à pessoa humana o seu primeiro escopo. É certo que na rua ele é mais um, mas ali mesmo na rua e em razão do cargo que ocupa deverá tomar atitudes adequadas ao seu status. Jamais extrapolar ou indignificar a sua imagem e a da instituição.

Isso não obsta a simpatia, o bom convívio que deve manter com todos os cidadãos, a prestatividade e até mesmo a humildade, ou seja, em última análise, a empatia.  À conduta externa aconselhada nos livros, ao modo da mulher de César, de não bastar só o ser, mas correto seria também parecer, opõe-se a opção pela própria integridade: ser o mesmo em tudo, sem nem mesmo precisar parecer.

Esse cidadão, apesar de investido de jurisdição no seu trabalho forense, há de compreender que ele não está acima das pessoas e nem da lei, nem no foro e nem na rua.

Não poderá desobedecer à lei justamente porque é um magistrado, aquele que está incumbido de aplicá-la à comunidade e pela própria comunidade, porém no momento processual exato.

Mas hoje se descuida desse comportamento externo. Permitam-me lembrar a caricatural realidade: há o juiz que dá carteiradas; aquele que dá voz de prisão a balconistas de companhia porque o avião decolou antes de sua chegada com atraso; o que quer impor, sem ser passageiro, adentrar a embarcação atracada para jogar no cassino e fazer compras nas lojas sem impostos (saberia ele que estes locais ficam cerrados durante a estadia do navio no porto?); conduzir inspetor de trânsito à delegacia, após voz de prisão, porque está sendo multado; e outros tantos casos que, se não entram para o anedotário, dão margem a preocupações quanto ao proceder do seu protagonista. É preocupante lembrar-se que, tanto em termos psicológicos como no dito popular, cesteiro que faz um cesto faz um cento.

O certo é o juiz viver a vida particular e a pública com a mesma espontaneidade. Agir conforme o momento impõe (aí o papel atribuído ao ator), mas sem a rigidez que marca os inseguros, ou a prepotência dos deseducados, sabendo na sua vida de cidadão respeitar a quem quer que seja. Saber sorrir, rir e até se divertir quando oportuno (e aí voltamos à empatia).

Os escritos sobre mediação enfatizam a consideração devida aos envolvidos no trabalho da composição de desencontros. Nada mais que o respeito à pessoa humana.

Na vida pública, lamentáveis os pecados veniais cometidos contra esse papel, desde o comportamento de esquiva ou de inacessibilidade, de pouca produtividade, gerados pelo medo da exposição, à descortesia no trato com as demais personagens do processo, que tem o seu apogeu no decorrer das audiências.  É a prepotência, e não se deslembre que o autoritarismo é uma maneira de escamotear deslealdades, fraquezas e inseguranças.

Muito mais grave, ainda, o aviltamento do papel/conduta que uns poucos perpetram, em franca desobediência moral, até mesmo com incursão no âmbito penal.

São os que não sabem ou esquecem que na carreira só se presta serviço aos outros, jamais a si mesmo.

São os que usufruem benesses duvidosas, recebem dádivas de valor, ou abusam do equipamento público dentro e fora do exercício do cargo, ou de bens sob custódia da Justiça.
 
Aos que tomam dinheiro, esses malfeitores fantasiados de preto  –aliás o preto de suas consciências– essas aberrações deveriam sofrer imediato repúdio, jamais solidariedade corporativa.  Já se disse, mulher infiel e juiz corrupto são conhecidos por todos, menos pelo marido e pelo aparato fiscal da judicatura.  Estes jamais querem ver, sempre para salvar as aparências, como se pudessem tapar com tecido ralo o péssimo visual que fica sob o sol.   

São alguns poucos transgressores, ainda bem. Mas devem ser sancionados.

Em última conclusão, há nessas infrações uma falta palmar de educação, como bem escreveu a propósito um desembargador paulista já falecido, ao abordar essas deficiências graves. Sucede a meu ver uma falta de valores construtivos, uma tremenda falha no ensinar-se o respeito pelos outros e por si próprio desde o berço. Faltou, pelos meios educativos elementares (casa, escola, religião), lapidar o egoísmo instintivo dessas pessoas.