Terceirização: “fantasia de ocasião”
Sob o título “Uma bomba plantada contra a economia e os direitos sociais!”, o artigo a seguir é de autoria de Germano Siqueira, presidente eleito da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra).
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Ao custo social e econômico que pode chegar a aproximadamente 100 bilhões de reais por ano (quatro vezes mais que o orçamento do “bolsa família”) o projeto de lei da terceirização (PL 4330 na Câmara e 30/2015 no Senado) segue em discussão no Parlamento, dentro de uma moldura aterradora.
O tema entrou na pauta política nacional em definitivo e merece a atenção de toda a sociedade, tais são as consequências gravíssimas para gerações de brasileiros e brasileiras, no presente e no futuro, caso seja aprovada a proposta incorporada no PL 4.330/2004, em sua redação final, que legitima a venda do trabalho humano por intermediários, sem qualquer restrição, com objetivo de lucro, ofendendo princípios constitucionais e convenções da Organização Internacional do Trabalho.
Se na intermediação de qualquer produto no mercado o custo para o consumidor fica mais caro no final da cadeia de consumo, no caso da terceirização ocorre o contrário. O emprego direto custa mais caro e contrato de trabalho com intermediação (terceirizado) fica mais barato. Quem paga o prejuízo? Quem banca a diferença? O trabalhador, evidentemente, já que a empresa intermediária ainda terá lucro com essa transação e ainda pode ser pior no caso da contratação de uma outra empresa (quarteirização), figura permitida expressamente no PL.
Não há dúvidas, portanto, que há forte interesse do poder econômico em torno do projeto. Nas palavras de Adam Smith, teórico do liberalismo, “frequentemente os patrões fazem conchavos destinados a baixar os salários (..). Essas combinações sempre são conduzidas sob o máximo silêncio e sigilo, que perdura até o momento da execução (..) e quando os trabalhadores cedem, como às vezes fazem , sem resistir, embora profundamente ressentidos, isso jamais é sabido em público” ( “Riqueza das Nações”) .
No caso, esses conchavos, para usar o termo de Smith, são explicitamente trazidos a público nos tempos atuais, tanto que no afunilamento dos debates ocorridos na Câmara a população recebeu em seus lares, em horário nobre, informações falsas e tendenciosas, por peças publicitárias e jornalísticas, assegurando que o referido projeto de lei representaria um acréscimo de conquistas sociais para parcela de trabalhadores brasileiros hoje desassistidos e informais, de modo a equipara-los à maioria, quando se sabe que o grande e principal problema dos terceirizados não é a informalidade.
Mas para além da farsa construída com auxílio do peleguismo sindical e dos pronunciamentos a soldo existe a realidade, a dura realidade, que se opõe a essa fantasia de ocasião. E essa realidade não deixa esconder que os caminhos do projeto de lei apontam para a iminência de um grande golpe contra os direitos conquistados progressivamente ao longo de mais de um século, garantias que não são apenas de trabalhadores (considerados em suas individualidades), mas da sociedade brasileira, que não pode admitir no Brasil uma moldura de relações de trabalho para nossos irmãos, filhos e netos dentro de um patamar semelhante ao chinês, por exemplo.
Ao se dizer que o PL é uma “bomba” armada contra direitos sociais e contra a economia não vai nisso nenhum exagero, salvo pela figura de linguagem, mas os efeitos são realmente destrutivos e aniquilantes, a ponto de se questionar se a economia suportará devidamente esses impactos (muito consideráveis) e se todo um processo de inclusão social ocorrido nos últimos tempos e objetivamente reconhecido por organismos internacionais como iniciado no começo da década passada, não será desperdiçado, já não fosse o evidente cenário de supressão de direitos que simplesmente poderiam vir a ser extintos.
É preciso alertar, primeiramente, para o fato de que o mercado conta aproximadamente com 12 milhões de trabalhadores terceirizados, contra 35 milhões de contratados diretos. A remuneração média dos contratados diretos é da ordem de R$ 2.361,15 (reais) enquanto os trabalhadores terceirizados percebem, em média, R$ 1.776,78 (reais).
Em um panorama de aprovação do projeto a tendência é, em termos razoáveis, que essa proporção se inverta ou pelos menos haja forte, ampla e majoritária migração dos contratados diretos para o regime de terceirização, com redução de salários em no mínimo 30%, com aumento de jornada sem pagamento regular de horas extras e até quintuplicação de acidentes de trabalho.
Nesse ponto, a título de esclarecimento, cabe repelir com veemência a desinformação sempre repetida em matérias e informes publicitários dando conta de que o PL 4330 equipara os diretos dos terceirizados aos contratados diretamente. Falácia! Ao contrário, haveria ampliação dessa desigualdade hoje vivida pelos 12 milhões para um universo muito mais amplo, como já referido.
Desse modo, chegar à repercussão negativa de 100 bilhões de reais por ano não é tão difícil, embora seja apenas uma projeção que mereça maior aprofundamento, na medida em que a redução sistêmica e global de salários na economia certamente impactará inclusive as contas públicas.
É evidente que os impactos no Sistema Único de Saúde (SUS) e, portanto, no orçamento da saúde, tendem a ser alarmantes, uma vez que a muito maior incidência de acidentalidade nesse modo de contratação é clara. No ano de 2011, das 79 mortes ocorridas no setor elétrico brasileiro, 61 foram de trabalhadores de empresas terceirizadas. Entre 2005 e 2012, 14 trabalhadores da Petrobras morreram em acidentes no exercício de suas profissões. No mesmo período, faleceram 85 terceirizados, pela mesma causa, tudo isso segundo estudos do Dieese.
Nesse contexto, algumas perguntas intermediárias parecem óbvias: O cenário de redução do consumo, especialmente em razão de salários inferiores, não teria impacto na economia nacional, principalmente no comércio, podendo gerar desemprego e menor margem de lucro? Não impacta na arrecadação tributária de estados, municípios e da União? Os bilhões suprimidos dos salários dos trabalhadores e que deixaram de circular no mercado sairão do bolso do trabalhador para mãos de quem? O rebaixamento em massa do poder de compra do trabalhador brasileiro é objetivo político e bandeira de algum partido brasileiro? O impacto sobre o SUS não é interesse de todo a sociedade? E sobre as vidas e a segurança no trabalho? E sobre o alarmante número de mortes de acidentes? E, finalmente, quem vai pagar por isso?
Mas não é só. Há outros efeitos ocultos e igualmente danosos do projeto que supostamente regula a terceirização, além dos mais óbvios como o já falado rebaixamento salarial em massa.
Trata-se da tendência de praticamente banir das relações de trabalho alguns direitos trabalhistas e, portanto, das folhas salariais, algumas conquistas importantes, o que aflora mais ainda o grande interesse de corporações empresariais.
Assim, com a terceirização indiscriminada, em que se coloca entre o tomador de serviços e o trabalhador a bizarra figura do vendedor do trabalho humano como empregador, lucrando com trabalho alheio, busca-se também extinguir ou praticamente eliminar nas empresas tomadoras (sob a ótica do que hoje acontece) direitos como os que decorrem dos planos de cargos e salários, assim como participação nos lucros e resultados, plano de saúde (tem grande impacto na vida dos brasileiros e as grandes empresas sempre querem se livrar), aviso prévio estendido e, como joia da coroa, praticamente inviabilizar o direito de greve. Até parece óbvio. Se não há vinculo direto nem perenidade, não haveria como falar em direitos cujo pressuposto é a duração do contrato a longo prazo e um projeto de vida na empresa.
Esses danos quase ocultos (que certamente gerarão ainda mais controvérsias no Poder Judiciário), logo seriam sentidos mais adiante, ao argumento de inexistência de relação jurídica direta, mas intermediada, despejados como ônus da empresa prestadora, como hoje já se faz, agravando ainda mais o fosso da desigualdade entre os cenários da contratação direta e terceirizada.
Por outro lado, impedido o tomador de serviços de comandar a relação de emprego terceirizada e funcionando o mercador de supostas especialidades como intermediário, desloca-se o poder de mando para uma pletora de empresas (cada uma com um só objeto) e o conflito trabalhista de natureza coletiva, em sua dimensão política, pode tornar-se difuso, atenuado e pouco consistente do ponto de vista da pressão sobre o capital.
O que aparentemente pode ser um “golpe de mestre”, acaba por multiplicar o caos, desorganizando a atividade sindical no cenário em que a lei de greve brasileira poderá já não responder aos limites da nova realidade, que dela poderá vingar-se, da truculência legislativa que produziria um ambiente impreciso, impondo, pela força dos fatos, o chamamento ao processo coletivo de negociação dos responsáveis econômicos.
Em outras palavras, se esse desastroso projeto de lei tem alguma potencialidade esse risco é o de suprimir garantias sociais, desorganizar a produção, acirrar ânimos e colocar ainda mais a economia do país do xeque.
E para que não haja engano, não custa lembrar mais uma memória de Adam Smith, contida na seguinte passagem de a Riqueza das Nações sobre a baixa dos salários, ao dizer que tal medida “(..) aumenta os lucros do capital e consequentemente também os juros do dinheiro. Pelo fato de baixarem os salários, os donos do capital remanescente na sociedade têm condições para colocar suas mercadorias no mercado com despesas menores que antes, podendo vendê-las mais caro.
(..) Portanto , suas mercadorias custam menos para eles, porém eles as vendem mais caro.”
Haverá consumidores suficientes para adquirir tais mercadorias com a redução salarial em massa? São muitas as graves questões e as perguntas e a sociedade brasileira merece saber as respostas!
Que o povo brasileiro não seja enganado, portanto, e que haja o mínimo de racionalidade na discussão sobre o projeto no Senado.