A deferência passiva ao STF

Frederico Vasconcelos

O artigo a seguir é de autoria de Márcia Dometila Lima de Carvalho, Subprocuradora-Geral da República aposentada e Ana Lúcia Amaral, Procuradora Regional da República aposentada.

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Em artigo, sob o título “A VOZ ISOLADA DO TRIBUNAL”, publicado no caderno “Aliás” do jornal “O Estado de S. Paulo”, edição de 10/5/15, o Dr. Conrado H. Mendes, professor de Direito Constitucional da Faculdade de Direito da USP, analisa os efeitos de uma decisão monocrática do STF.

O objeto da análise é a ordem liminar, concedida 24 horas após o protocolo do pedido. A rapidez da decisão contrasta com a gravidade do decidido: empresa incluída na “lista suja do trabalho escravo” consegue, no recesso de fim de ano, a suspensão da política do Ministério do Trabalho e da Secretaria de Direitos Humanos do governo federal – reconhecida pela ONU e pela Organização Internacional do Trabalho – permitindo que a empresa requerente pudesse voltar a se beneficiar de linhas de crédito. A liminar considerou os prejuízos econômicos da empresa, por estar incluída na denominada “lista suja”, não os danos de sua atividade predatória, a exploração do trabalho escravo.

O prestigiado professor de Direito Constitucional considerou a nova portaria do MTE e SDH, baixada depois daquela decisão monocrática, uma maneira de demonstrar a persistência na política, retirando uma lição: ”não se deve deixar de disputar, por deferência passiva ao STF, o melhor significado da Constituição.”

Na mais alta Corte do País, em que pese ser órgão colegiado, tal prática tem se tornado, perigosamente, corriqueira: ministros do STF, em decisões monocráticas, impõem “soluções provisórias” com efeitos muitas vezes de difícil reparação, se, ao final, não forem referendadas pelo colegiado.

Aquela lição nos motivou a tecer estas considerações sobre outra decisão monocrática do STF: a ordem liminar na Ação Originária n.º 1.773/DF. Em setembro de 2014, foi deferida medida liminar determinando o pagamento de auxílio-moradia, no valor de R$ 4.377,73, a todos os juízes do País. Segundo a decisão, ressalte-se, não definitiva, a verba teria natureza de ajuda de custo, não estando, assim, sujeita ao Imposto de Renda nem ao teto remuneratório do funcionalismo público.

E para assim decidir, invocou o Ministro Relator paridade com membros do Ministério Público. Sabemos que há previsão legal do benefício para os membros do Ministério Público da União “em caso de lotação em local cujas condições de moradia sejam particularmente difíceis ou onerosas” (inciso VIII do art. 227 da Lei Complementar n.º 75/93). Constata-se que há condicionantes limitadoras para a concessão de verba de cunho eminentemente indenizatório. No entanto, foi retirada da norma de cunho restritivo uma generalidade e linearidade que ela não comporta, vale dizer, não há no benefício concedido — via ordem liminar! -, relação efetiva à cobertura de despesas com moradia, sofridas por magistrados, para que possam residir no local de sua lotação.

Criou-se um “direito” de natureza pecuniária, interpretando-se de forma ampla e genérica norma que previa indenização excepcional, restritiva. Mandou-se pagar a todos os magistrados brasileiros, sem a menor preocupação sobre haver dotação orçamentária ou não, ainda que consideradas despesas de custeio.

Como se fosse ordem do monarca absolutista, que não pode ser contrastada, o Conselho Nacional do Ministério Público, invocando a simetria entre as carreiras da magistratura e do Ministério Público, da mesma forma como feita pelo ministro relator a justificar sua decisão, estendeu o benefício a todos os seus membros ativos. A partir de outubro de 2014, todos os membros do Ministério Público da União em atividade, que não dispunham de imóvel funcional, através da portaria PGR/MPU de n.º71, passaram a receber a vantagem.

O regime constitucional de remuneração por subsídio e do teto constitucional restaram violados, além de quebrar o princípio da paridade de vencimentos entre ativos e inativos, prevista no artigo 40 §8º da Constituição Federal, que por ser direito preexistente à emenda constitucional de n.º 41/2003 foi por ela ressalvado.

O fato é que o valor pago sob o título de “auxílio-moradia”, a bem da verdade, é aumento nos subsídios aos magistrados e membros ativos do Ministério Público Federal, mas escapa à incidência do Imposto de Renda, relembre-se.

Em que pese o assento constitucional da matéria, e a própria disciplina estabelecida pelo Conselho Nacional do Ministério Público CNMP, em respeito às leis orgânicas do Ministério Público, dentro de sua função de proceder ao controle externo do Ministério Público Brasileiro, ao seguir a decisão monocrática, repita-se, em caráter precário, a Instituição Ministério Público, destinada à defesa da ordem jurídica e da defesa dos direitos individuais e coletivos, por “deferência passiva ao STF”, deixou de buscar o melhor significado não só da Constituição Federal, como de sua própria lei orgânica.

O que tem caráter de transitoriedade, peculiar a essas indenizações, converte-se em simples atualização de vencimentos defasados, mera complementação de subsídios.

Foi abandonado, sem pejo, o que já havia deliberado o mesmo CNMP, e há pouco tempo. Pelo PCA Nº.0.00.000.000446/2011-03, o órgão de controle externo disciplinou a matéria, qual seja, em que situações seria pago o denominado auxílio-moradia aos integrantes do Ministério Público, nas diversas unidades da Federação.

Em percuciente voto, do então Conselheiro do CNMP, o Subprocurador Geral da República Mario Luiz Bonsaglia, foi analisada, minuciosamente, toda a conceituação doutrinária sobre a natureza peculiar das verbas ditas indenizatórias e a necessidade de sua interpretação restritiva, do qual destacamos:

“Desde logo cabe sublinhar a particularidade, a singularidade do motivo que gera o pagamento da verba indenizatória, motivo esse invocável unicamente pelo agente que teve de suportar um ônus econômico não inerente às atribuições do cargo.  Isso significa que a principal função da indenização – e, portanto, das vantagens pecuniárias de natureza indenizatória – é a de reequilibrar a relação econômica entre o agente público e a Administração, sempre que tal relação se veja afetada por um acontecimento que atinja aquele servidor e não os demais”.

Portanto, toda verba paga a título de auxílio-moradia que não leve em conta essa natureza específica de indenização deve ser compreendida como um mero acréscimo à remuneração, isto é, um adicional de natureza remuneratória, o que, em princípio, é vedado no regime jurídico do subsídio.”

A indenização, prevista na Lei Orgânica do MPU, invocada pelo Ministro Luiz Fux ao proferir a ordem liminar, se presta ao ressarcimento de prejuízo peculiar experimentado pelo agente público beneficiário, causado por uma circunstância específica de necessidade do serviço. O serviço habitual dos beneficiários dessa verba já é remunerado pelo subsídio recebido. As exceções indicadas na ordem liminar, ao fim e ao cabo, tentam desfigurar o caráter de aumento dos subsídios defasados, mas não conseguem destruir a generalidade com que está sendo pago.

Ao levar o assunto ao Tribunal de Contas da União, o Procurador da República Luciano Rolim, demonstrando acreditar na persistência de valores e princípios, e que “não se deve deixar de disputar, por deferência passiva ao STF, o melhor significado da Constituição” lembrou que a Emenda Constitucional n.19/98, que instituiu o regime remuneratório do subsídio, em uma só parcela, vedou qualquer acréscimo remuneratório, a não ser a excepcionalidade indenizatória, por óbvio.

Observou o Procurador da República, em sua representação junto ao TCU, que o argumento do aviltamento dos subsídios, para justificar os atos administrativos ilegais e inconstitucionais, pela não observância da regra constitucional impositiva da revisão geral anual dos subsídios dos magistrados, membros do Ministério Público e defensores públicos, acabou por gerar um quadro de injustiça: uma massa de servidores públicos não podem se valer de atos administrativos de seus órgãos de controle, para remediar a defasagem salarial – na medida em que não se dá nos termos do inciso X do art.37 da CF – porque, via de regra, são combatidos pelo MP, perante o Poder Judiciário e mesmo o TCU.

Assim, a invocação pelo Ministro Relator das leis orgânicas seja da magistratura, seja do Ministério Público – ambas anteriores à emenda Constitucional n. 19/98 –, para justificar a simetria/paridade, e que seria pura questão de direito a situação ali tratada, ignorou a alteração constitucional que deu nova redação ao art. 37 da CF, no inciso X, que exige a elaboração de lei para o reajuste dos subsídios, submetidos a um teto, que não pode ser ultrapassado por vantagens pessoais ou de qualquer outra natureza (inciso XI).

Muito embora denominado de “auxílio-moradia”, a sua denominação não tem o condão de mudar sua natureza. O tema, verbas que parecem excepcionais, de sorte que parecem só devidas a servidores que se encontram em atividade, não é novo.

A propósito, cabe invocar julgado do próprio STF sobre o tema, proferido em agosto de 2014, o RE n.596.962. No caso, discutiu-se sobre a gratificação para docentes, em exercício, defendida sua concessão apenas para professores no efetivo exercício da docência, isto é, em sala de aula. O Supremo Tribunal Federal, mantendo acórdão do Tribunal de Justiça do Mato Grosso, esclarece logo no início do voto relator: “O fato de a Lei complementar do Estado do Mato Grosso ter aludido a essa gratificação como ‘ verba de caráter indenizatório, por si só não impede de pronto, sua extensão aos aposentados, pois muito embora as verbas dotadas desse caráter não sejam, em regra, extensíveis aos inativos, o certo é que a simples nomenclatura não define sua natureza jurídica, para o que se faz necessário analisar a sua destinação”.

E nesse caminho, o Ministro Relator reportou-se aos termos do parecer do Procurador Geral da República, lançado nesse Recurso Extraordinário, em abono à tese amparada no julgado. O Ministro Relator, acompanhando os argumentos do acórdão recorrido, por considerá-lo juridicamente correto, conclui que: “deve ser reconhecida a necessária e automática extensão aos inativos de gratificações de caráter geral concedidas ao pessoal da ativa, notadamente quando essas não estão efetivamente vinculadas ao exercício direto de uma determinada atividade, ou seja, quando não dotadas de caráter pro labore faciendo“.

Verifica-se, portanto, que, segundo a jurisprudência desta Corte acerca do tema, as gratificações dotadas de caráter geral devem ser estendidas aos inativos, entendidas essas como aquelas concedidas a todos os servidores em atividade, independentemente da função exercida, e que não se destinam a remunerar ou indenizar o servidor em razão do exercício de uma função específica ou extraordinária.”

Esse julgado não é isolado! No mesmo acórdão são citadas outras tantas decisões daquela Corte Constitucional, referindo-se ora às características de impessoalidade e generalidade das gratificações negadas aos aposentados, esclarecendo que “A pedra de toque da incidência do preceito é saber se em atividade os aposentados lograriam o benefício”.

A Corte Suprema, no apontado recurso extraordinário, decidiu que essa gratificação, dado seu caráter geral, deveria ser estendida aos inativos, conforme havia decidido o Tribunal recorrido. Para a Corte, não adiantava o argumento do Procurador do Estado de tratar-se de verba de caráter indenizatório, a qual não seria indistintamente paga a todos os professores da rede pública daquele Estado, senão àqueles que estivessem no efetivo exercício da docência, i.e., em salas de aula.

Observe-se que, em respeito à paridade, em decisão monocrática lançou-se mão do “auxilio moradia” para complementar subsídios, por isonomia ao Ministério Publico da União, favorecendo toda a magistratura em exercício, através de liminar concedida pelo Relator, Ministro Luiz Fux , em  outra ação originária (AO1946), proposta pela Associação dos Magistrados Brasileiros. Tão evidente é a sua natureza de aumento de subsídios que, em seguida, ainda em outubro de 2014, a referida AMB formulou aditamento àquela inicial para que também fosse a Ré condenada a pagar a ajuda de custo para moradia aos magistrados aposentados.

Reitere-se: a particularidade, a singularidade do motivo que gera o pagamento da verba indenizatória, e que só deve ser invocado pelo agente que teve de suportar, efetivamente, um ônus econômico não inerente às atribuições do cargo. Ora, dificilmente se conceberia um prejuízo causado ao agente público mensalmente, ao longo de sua carreira. Assim, o pagamento em caráter permanente revela que aquele suposto “prejuízo” é na verdade ínsito ao cargo ocupado e, por isso, já é recompensado pela remuneração, não podendo sê-lo por verba indenizatória.

Ressalte-se: não há um dever genérico de custeio público da moradia dos agentes públicos. Em princípio, os gastos particulares de cada agente público, inclusive com moradia, são custeados pela remuneração que percebem – no caso dos membros do Ministério Público e Magistratura, pelo subsídio.

Portanto, toda verba paga a título de auxílio-moradia que não leve em conta essa natureza específica de indenização deve ser compreendida como um mero acréscimo à remuneração, isto é, um adicional de natureza remuneratória, o que, em princípio, é vedado no regime jurídico do subsídio. Verbas de caráter indenizatório são transitórias, tão somente. Essa é a sua natureza jurídica inserta na Constituição e na Lei.

Acrescente-se apenas, por fim, que mesmo o auxílio-moradia de natureza verdadeiramente indenizatória só pode ser pago se houver expressa previsão legal, uma vez que a Administração, submetendo-se ao  princípio da legalidade estrita, não pode realizar gastos não autorizados pelo legislador.

A forma como concedida a ordem liminar, nas referidas Ações Originárias, que concedeu o pretenso “auxílio-moradia“, muito se distancia do contido no julgamento da Ação Declaratória de Constitucionalidade n. 04, quando o Supremo Tribunal Federal. Na referida ação, com parecer do Procurador Geral da República pela procedência, foi reconhecida a constitucionalidade do art. 1º da Lei n.9494/97, que veda a antecipação de tutela contra a Fazenda Pública, quando importem em: (a) reclassificação ou equiparação de servidores públicos; (b) concessão de aumento ou extensão de vantagens pecuniárias; (c) outorga ou acréscimo de vencimentos; (d) pagamento de vencimentos e vantagens pecuniárias a servidor público ou (e) esgotamento, total ou parcial, do objeto da ação, desde que tal ação diga respeito, exclusivamente, a qualquer das matérias acima referidas”.

Dentre os argumentos utilizados no julgamento da ADC n.04, está a necessidade de respeitar os limites da Lei de Responsabilidade Fiscal, vez que tais decisões não definitivas podem afetar o equilíbrio orçamentário do ente público, por força da concessão de benefícios a um grande número de servidores públicos.

Em que pese a clareza do entendimento pelo Pleno do STF, quando restou reconhecida a constitucionalidade da norma que proíbe a concessão de liminares, especificamente quando concessivas de aumento de despesas, que onerem a folha de pagamento de qualquer ente público, em se tratando de interesse dos próprios magistrados e dos membros do MP, parece que não vigora. Seriam os dois pesos e duas medidas…

Quando a respeitabilidade das instituições do sistema de Justiça sai seriamente arranhada, e em tempos tão graves, não podemos prestar qualquer deferência passiva a elas.