Cotas podem gerar discriminações
Sob o título “Lei das cotas de humilhação!”, o artigo a seguir é de autoria Edison Vicentini Barroso, desembargador do Tribunal do Justiça de São Paulo.
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O sistema de cotas raciais, até então adstrito às universidades públicas brasileiras, foi aprovado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) mediante resolução que obriga os tribunais do país a reservar no mínimo 20% das vagas, nos concursos para servidores e juízes, para negros.
Esse sistema, adotado como política social de desenvolvimento e aprovado pelo Supremo Tribunal Federal (STF), foi implantado como política afirmativa para diminuir diferenças sociais entre brancos e negros, causadas pelo sistema escravagista dos séculos XVIII e XIX.
E apesar de posição contrária daquele Tribunal, ousamos dela divergir –-pois que, a um só tempo, conquanto à decisão judicial sempre se deva cumprir, no campo da livre manifestação e expressão do pensamento, não há impedimento à sua discussão.
Esse modelo de afirmação foi historicamente mal sucedido nos países que o adotaram –-inclusive nos Estados Unidos da América-– e sua aplicação no Brasil é suscetível de gerar diversos tipos de discriminação, assim como beneficiar uns em prejuízo doutros, por via de critérios absolutamente injustos e inconstitucionais.
Cientificamente, só existe uma raça: a humana! De fato, contrariando o antropólogo alemão Johan Friedrich Blumenbach, que chegou à classificação das ‘raças’, em 1987, cientistas do mundo todo se uniram para desvendar o código genético humano, estudo conhecido como Projeto Genoma.
Então, chegou-se à conclusão da insignificância da diferença genética dentre os grupos das mais diferentes etnias; por isso, incapaz de justificar classificação dos indivíduos por raças. Para tanto, para que o conceito de raça tivesse validade científica, disse a pesquisa, essas diferenças haveriam de ser muito maiores.
Assim, não importa a cor da pele, as feições do rosto, a estatura ou, mesmo, a origem geográfica de qualquer ser humano (traços culturalmente distintivos das etnias) – geneticamente, somos todos muito semelhantes!
País de miscigenação ímpar, o Brasil é formado por brancos, negros, mamelucos, caboclos, amarelos, dentre outros. Para o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), existem cinco termos aceitos para classificar a cor da pele dos brasileiros: branco, preto, pardo, amarelo e indígena. Por aí se vê da dificuldade de, aqui, se limitar a classificação da cor da pele a ‘brancos’ ou ‘negros’.
Voltemos à questão jurídica. O artigo 5º, caput, da Constituição Federal diz que ‘Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza…’. Seu artigo 3º, IV, afirma que constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
A só leitura dos dispositivos acima, sob viés técnico/jurídico e à distância de aspecto meramente político, leva à conclusão de que o tal sistema de cotas viola o fundamento da igualdade perante a lei, expresso naquela Constituição.
O passado de erros, de que exemplo maior a escravidão dos negros, não pode servir à justificativa de distorções atuais do sistema constitucional, de forma a favorecer alguns em detrimento de outros, pelo só aspecto da cor da pele.
Cabe ao governo, seja qual for, se desincumbir de iguais oportunidades aos cidadãos do País –-de que cor ou etnia forem! É uma correção visceral, de raiz e de rumo, em que se dá maior e melhor educação a todos os brasileiros, favorecendo-os chegar aos postos sociais desejados por meio de sua só competência individual –-em nada condizente à pigmentação da pele!
Mormente no setor público, há de se contratar mão de obra profissional, baseada na seleção do mais capaz, tenha a cor que tiver. Em verdade, passou da hora de os governos adotarem regime de cotas especial: 100% das vagas têm de ser ocupadas por pessoas capazes, nem que sejam verdes ou roxas –-na expressão feliz do jornalista Reinaldo Azevedo.
O que disso fuja, equivalerá à má administração do dinheiro público, pois que a eventuais incapazes (ou menos capazes), cotistas, se dará a primazia a que não têm direito, em prejuízo do melhor serviço a ser prestado à sociedade brasileira.
Obedecidos aqueles 20%, inda que mais gabaritado, alguém que não seja negro será preterido, em flagrante agressão ao princípio constitucional da igualdade perante a lei, sem discriminação de que espécie for, e ao próprio bem público.
Certo, estas palavras podem não ser politicamente corretas, mas traduzem a realidade das coisas, num País tão distanciado do ato autêntico de ser verdadeiro, de ser honesto! Preconceito haverá, isto sim, com a institucionalização do discrímen da cor da pele.
Aliás, nem todos os negros o aceitam. Por exemplo, José Roberto Militão, histórico militante do movimento negro, advogado e então membro da Comissão de Assuntos Antidiscriminatórios – CONAD-OAB/SP e exsecretário geral do Conselho da Comunidade Negra do governo do Estado de São Paulo (1987-1995), que desenvolveu grande discussão contrária às cotas raciais, por entendê-las discriminatórias e inconstitucionais.
Disse ele, a certa altura, que as ações afirmativas não fazem reparações do passado, não fazem cotas estatais, mas atuam com eficácia para que as discriminações históricas não persistam no presente. Pontuou que os afrobrasileiros precisam de políticas públicas de inclusão, indutoras e garantidoras da promoção da igualdade, e não das cotas de humilhação.
Ora, a Constituição Federal –-dita Cidadã (portanto, aplicável a todos indistintamente!)-–, desenvolvida pelo sistema do bem-estar social, defende a justiça e a igualdade. Logo, para garantir esses princípios, não se dispensam formas de erradicação da pobreza e diminuição das desigualdades sociais, em benefício de todos os cidadãos –-sejam negros, pardos, índios ou brancos (pois os há, também, pobres e necessitados); homens ou mulheres, crianças, adultos ou idosos, homo, hetero, bi ou transexuais.
A discriminação e o preconceito são realidades enfrentadas por todos os brasileiros, independente de cor, raça, credo, religião, sexo ou idade. E a
Constituição Federal traz ferramentas para o combate desses males, sem que se haja de recorrer à discriminatória sistemática das chamadas ‘cotas raciais’.
Neste País, acima de tudo, o que há são políticas e políticos mal intencionados, que não fazem o dever de casa e se aproveitam de medidas oportunistas baseadas no que se costuma dizer ‘politicamente correto’. Deixam de pôr o dedo na ferida, na busca de subterfúgios que os coloquem bem na fita perante a opinião pública.
A rigor, pois, a lei de cotas raciais tenciona separar, sob argumento falso de ‘compensação por danos causados’, uma heterogenia típica do Brasil. E, definitivamente, não é a cor da pele que determina o merecimento do cidadão!
Quando falamos em falta de oportunidades no sistema educacional, será que só os pretos e pardos preenchem esses requisitos? Sim, os brasileiros precisam de ações afirmativas compensatórias do atraso sofrido, da falta de oportunidades, do não reconhecimento pela luta diária da sobrevivência. Porém, isso não se conquista com um ‘atalho’ à universidade ou a cargos públicos. As ações afirmativas hão de ser desenvolvidas para todos, de que cor for, que não tenham casa, comida, hospital – enfim, desprovidos de acesso a seus direitos constitucionais!
A cidadania não tem cor! O sistema é invenção desumana para referendar privilégios que mais desagregam que somam, que mais dividem que multiplicam. As oportunidades hão de ser de todos. E que venham de parte de representantes que honrem seus mandatos e não fujam às suas graves responsabilidades.
O racismo existe no Brasil, como em todo o mundo –-fato lamentável! Discrimina-se o negro, mas também aos homossexuais, aos deficientes físicos e mentais, idosos, doentes, dependentes químicos. Tantos os segregados, todos a merecer iguais oportunidades, no contexto duma sociedade mais justa.
A este passo, avulta a necessidade dum ensino fundamental consistente, digno e de qualidade, que bem prepare aos brasileiros de todas as cores, equiparando-os no tratamento igualitário previsto na Constituição Federal. Há de se ter um governo que faça isto, com reais chances de que o cidadão aprenda, ao menos, a ler, a escrever, a fazer cálculos, a conhecer sua história e a do mundo que o cerca.
Que a todos, pois, se deem oportunidades de se tornarem aptos, ao serviço que for, mediante políticas de efetivo desenvolvimento do ser humano, integrante duma só e mesma raça humana, seja de que coloração for.
Exemplifiquemos. Dois seres humanos, da raça humana. Um preto e pobre. O outro, branco e pobre. Diante deles a perspectiva de ingresso na magistratura. Entre ambos, a só diferença de cor! No Brasil, mais que isso: o preto, com 100% de chance de ingresso; o branco, pela só questão de pele, com 80%. Não é uma violência, aos olhos da Constituição? Entendo que sim. O STF, que não. Questão de opinião!
Passa longe o referencial da competência, fica distante o primado da igualdade perante a lei. Esta é a cara do Brasil de hoje! Mas, como tudo evolui, torçamos para que, em tempos vindouros, o Brasil mude de cara, conquiste sua posição no contexto das nações positivamente civilizadas e se erija à condição de Estado Democrático de Direito a serviço das diretrizes maiores de sua Lei Magna!