Prova ilícita e proteção fora dos trilhos

Frederico Vasconcelos

Garantia importada dos EUA é usada em formalidades para anular as ações contra políticos e empresários.

Sob o título “Excludentes de ilicitude da prova“, o artigo a seguir é de autoria de Helio Telho Corrêa Filho, procurador da República em Goiás. (*)

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A garantia constitucional de inadmissibilidade das provas ilícitas foi importada do direito norteamericano, onde nasceu a partir de construção jurisprudencial da Suprema Corte dos Estados Unidos da América – SCOTUS e consiste em um conjunto de regras não escritas na lei (no sistema da Common Law boa parte das regras jurídicas é construída pela jurisprudência, através dos chamados precedentes) segundo as quais as provas obtidas em violação à Quarta Emenda à Constituição dos EUA (que assegura a inviolabilidade do cidadão contra buscas e apreensões sem autorização baseada em causa provável), à Quinta Emenda (que assegura o devido processo legal e o direito à não auto-incriminação) e à Sexta Emenda (que assegura ao acusado um julgamento público, imparcial, com direito de defesa e de conhecer a acusação que pesa contra si e a identidade de quem o está acusando) são inadmissíveis no processo criminal (exclusionary rules).

Releva observar que, no direito norteamericano (onde a regra nasceu e de onde veio importada para o direito brasileiro) as “exclusionary rules” se aplicam tão somente aos processos criminais e se destinam a prevenir que os agentes do estado violem direitos constitucionais para obter provas e delas se utilizem contra o suspeito da prática de crime. Em outras palavras, as regras de inadmissibilidade das provas ilícitas objetivam dissuadir os policiais de violar direitos constitucionais e, ao mesmo tempo, fornecem remédios aos réus ou investigados que tiveram seus direitos violados.

Quando da importação para o Brasil, contudo, o legislador brasileiro, inexplicavelmente, se divorciou das origem e se distanciou dos objetivos que levaram a criação das “exclusionary rules” e criou um estranho sistema de regras que, além de disfuncional, possui caráter extremamente subjetivo, que se traduz em insegurança jurídica, conduz a decisões seletivas, transforma o processo em uma autêntica loteria e resulta em impunidade.

São, portanto, necessárias mudanças.

A primeira na própria conceituação do que sejam provas ilícitas. A lei em vigor as conceitua como sendo “as obtidas em violação a normas constitucionais ou legais.” O conceito é por demais amplo e permite a anulação de provas (o sepultamento de grandes operações policiais de combate ao crime ou de complexas ações penais em fases avançadas ou até mesmo já julgadas) por inobservância de uma simples formalidade, por menor importância que tenha, mesmo que fique a quilômetros de arranhar as camadas mais superficiais da esfera de proteção dos direitos ou garantias do investigado ou réu.

Mas não é só. A amplitude do conceito em vigor leva a interpretações subjetivas, que por sua vez conduzem a decisões seletivas, conforme denunciado em tese de mestrado  por Diogo Castor de Mattos. (**)

O referido pesquisador, após analisar decisões do STJ, comparando julgamentos de crimes do colarinho branco com julgamentos de outros crime, cujos réus não eram políticos nem empresários abastados, mas assistidos da Defensoria Pública, acusados de latrocínio, tráfico de drogas e lesão corporal, constatou que argumentos  que levaram o STJ a anular ações penais em casos de graves crimes praticados por ricos ou poderosos não acudiram acusados menos endinheirados, embora em situações análogas.

Contudo, como se viu, as “exclusionary rules” foram criadas para proteger os direitos constitucionais do investigado ou do réu e não para tutelar formalidades, muito menos para adicionar variáveis aleatórias, próprias das loterias e dos jogos de azar, ao processo criminal. Assim, sugere-se que sejam consideradas ilícitas as provas obtidas com violação a direito ou garantia constitucional ou legal.

Mas não é só. Considerada a finalidade dissuasória das exclusiorary rules, a praticidade e a objetividade própria da jurisprudência norteamericana identificaram e reconheceram várias exceções à regra da inadmissibilidade, que se constituem verdadeiras “excludentes de ilicitude da prova”. De fato, sempre que a regra de exclusão não tiver o condão de dissuadir os agentes do estado ou moldar a sua conduta com vistas ao respeito aos direitos e garantias do investigado ou réu, ela não deve ser utilizada.

A importação para o Brasil das regras de exclusão das provas ilícitas veio acompanhada de duas causas excludentes de ilicitude reconhecidas pela jurisprudência da SCOTUS, ou seja, circunstâncias que, acaso presentes, permitem a utilização da prova. São elas:

1.1) a não evidencia de nexo de causalidade com as provas ilícitas (independent source doctrine) e

1.2) quando as provas derivadas puderem ser obtidas de uma fonte independente das primeiras, assim entendida aquela que por si só, seguindo os trâmites típicos e de praxe, próprios da investigação ou instrução criminal, seria capaz de conduzir ao fato objeto da prova (inevitable discovery).

Contudo, há diversas outras causas excludentes de ilicitude da prova, já admitidas pela SCOTUS, que ainda não foram positivadas no direito brasileiro. São elas:

2.1) A exceção de boa-fé (good faith exception): em Arizona v. Evans, 514 U.S. 1 (1995),   Davis v. U.S.131 S.Ct. 2419 (2011) e Herring v. U.S., 555 U.S. 135 (2009), a SCOTUS decidiu que não se deve excluir a prova quando o policial a houver obtido de boa-fé ou por erro escusável, assim entendido a existência ou inexistência de circunstância ou fato que o levou a crer que a diligência estava legalmente amparada, como por exemplo, quando o mandado contiver dados incorretos ou vier a ser posteriormente anulado.

Entendeu-se que, nestas circunstâncias, o policial agiu de boa-fé e a exclusão da prova não produziria o efeito dissuasório desejado, de evitar que os policiais, no futuro, voltassem a violar direitos constitucionais dos investigados.

Essa excludente é, inclusive, compatível com a regra do nosso Código de Processo Penal segundo a qual a incompetência do juiz não anula os atos probatórios, somente os decisórios.

2.2) Causa remota, atenuada ou descontaminada (attenuation doctrine), quando tiver decorrido muito tempo entre a violação da garantia e a obtenção da prova, tornando remota a relação de dependência ou consequência, ou quando fato posterior a houver descontaminado ou atenuado essa relação, como por exemplo quando o investigado resolver se tornar colaborador, passando a se constituir, ele próprio, uma fonte de prova.

2.3) Contraprova (evidence admissible for impeachment): Quando a prova for utilizada pela acusação para  refutar álibi, fazer contraprova de fato inverídico deduzido pela defesa ou demonstrar a falsidade ou inidoneidade de prova por ela produzida, não podendo, contudo, servir para demonstrar culpa ou agravar a pena

Além das excludentes de ilicitude consagradas pelo direito norteamericano, outras causa devem igualmente ser incluídas, tendo em vista a relevância de seus objetivos ou o fato de estarem sobre o pálio de circunstância protegida pela lei penal. São elas:

3.1) Destinadas a provar a inocência do réu ou reduzir-lhe a pena (de acordo com o princípio da proporcionalidade, o sacrifício de direito ou garantia individual é justificado pela objetivo maior, que é o de evitar que um inocente seja condenado ou fique mais tempo preso do que o devido);

3.2) Obtidas por quem, no exercício de suas atividades regulares, toma conhecimento do crime e o leva ao conhecimento das autoridades (whistleblower);

3.3) Obtidas por quem se encontre amparado por uma das causas que a lei penal classifique como excludente de ilicitude, tais como, a legítima defesa, o exercício regular do direito e o estrito cumprimento do dever legal.

Não se defende mudança no texto constitucional, muito menos qualquer restrição a direito fundamental. O que se advoga é conferir maior nitidez aos contornos do tema, para trazer funcionalidade ao sistema, trazendo-o de volta aos trilhos, dotando-lhe ainda de racionalidade, previsibilidade, segurança jurídica e efetividade.

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(*) O autor foi promotor de Justiça em Goiás e no Distrito Federal e Procurador Regional Eleitoral em Goiás, é procurador da República em Goiás, Coordenador do Núcleo de Combate à Corrupção da Procuradoria da República em Goiás e colaborador eventual da Escola Superior do Ministério Público da União.
(**) “A Seletividade Penal Na Utilização Abusiva Do Habeas Corpus Dos Crimes Do Colarinho Branco” defendida em fevereiro/2015 no Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da Universidade da Estadual do Norte do Paraná.