União estável, corações e mentes
Sob o título “Quando a paixão consome a alma, a doçura e a razão se dissipam“, o artigo a seguir é de autoria de Roberto Wanderley Nogueira, juiz federal em Recife (PE).
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Ainda no que se refere ao assunto mais repercutido da semana passada, por causa de uma decisão da Suprema Corte dos EEUU, penso que um outro nome jurídico conviria melhor à ideia de “casamento” entre pessoas do mesmo sexo. União estável, talvez, pelo que os direitos do par de iguais estariam a salvo e respeitados, sobretudo. Fazê-lo por via da instituição do casamento parece, todavia, uma oblicuidade, em razão dos argumentos já exaustivamente expostos nessa polêmica que ainda não encontrou epílogo no Ocidente ou em parte alguma.
É claro que casamento civil não é a mesma coisa que casamento religioso. Mas, quem por aí anda dizendo do instituto com tamanho refino qualificador? Quem se refere coloquialmente ao casamento, diz-se casado e ponto final. A circunstância agrava o problema. Desse modo, a igualdade jurídica (dignidade) nada tem a ver com a igualdade/desigualdade material que é o substrato dos casamentos tradicionais, clássicos e multisseculares. Estamos falando apenas de “lege ferenda” (a depender da Constituição e das leis), não do que está legalmente estabelecido. Um pouco de compassividade e esforço de entendimento fará com que o caminho seja pavimentado adequadamente para que não se polemize tanto por tão pouco, ainda e continuamente.
Quero deixar claro que a opção das pessoas não é problema algum para mim. Convivo muitíssimo bem com as diferenças. Eu sei o que é sofrer discriminação por causa de minha deficiência. Não faço proselitismo disso. O mais é bobagem rematada, pois quando a paixão consome a alma, a doçura e a razão se dissipam.
Quanto ao caso brasileiro, convém esclarecer o seguinte: o Supremo Tribunal Federal, com dois votos divergentes, reconheceu a “legitimidade” das uniões estáveis de caráter homossexual (igualitário por equiparação ficta), não o casamento dessa mesma natureza, propriamente dito. O que aconteceu foi que o Conselho Nacional de Justiça, órgão administrativo, sem base constitucional, estendeu o entendimento do Supremo e também de algumas decisões do Superior Tribunal de Justiça (que é Corte para dirimir conflitos acerca da aplicação de leis infraconstitucionais) ao instituto nupcial, motivo pelo qual determinou, por meio de resolução administrativa, que os cartórios de todo o Brasil lançassem nos Livros de Registro próprio os assim denominados “casamentos igualitários”, ou entre pessoas do mesmo sexo.
No meu modesto entendimento, casamento entre pessoas com mesmo sexo, à luz da Constituição Federal e do Código Civil brasileiro, os quais são expressos em sentido OPOSTO, continua sendo uma inconstitucionalidade, portanto, ato jurídico nulo de pleno Direito. O ativismo judicial da Suprema Corte brasileira não foi a tanto e não parece correto contabilizar decisões precárias como se fossem situações consolidadas. Talvez isso explique a repercussão midiática e feérica entre nós da decisão recente da Suprema Corte norte-americana.
Vale, pois, registrar que o excesso de regulação em nosso caso é devido ao CNJ, cuja Resolução 175/2013 pode ser a todo o tempo revogada, quer pela própria Administração Pública quer por meio do “judicial revew” (controle judicial da inconstitucionalidade/ilegalidade).
Por outro lado, o que se passou nos EEUU recentemente foi que a Suprema Corte norte americana chancelou, mediante os votos de apenas 5 dos seus 9 juízes não eleitos, como categoria jurídica constitucional, os “casamentos” entre pessoas do mesmo sexo que vinham sendo celebrados à luz das ordens jurídicas locais, ou seja, dos Estados federados da União norte americana que sempre privaram de formidável autonomia política. Por esse motivo, o (DOMA), de 21 de setembro de 1996, que é uma lei federal norte-americana, vinha sendo localmente relativizado, tendo perdido “enforcement” (eficácia), doravante, haja vista a última decisão da Suprema Corte de Washington, até que seja novamente revisto (“Defense of Marriage Act”).
Quanto a dizer-se que essa tendência observada no Ocidente para o tratamento do fato de que se cuida traduza uma “evolução do pensamento humano”, é essencial que se compreenda que a matéria ainda é bastante polêmica e nada sugere que vá pacificar-se tão cedo, porque há variáveis conceituais que não estão sendo apreciadas com verdadeira isenção de ânimo, mas de um modo inteiramente passional. A passionalidade é sempre capaz de gerar ondas sociais que vão e que vêm ao acalanto dos acontecimentos. Cabe insistir: Quando a paixão consome a alma, a doçura e a razão se dissipam!
Convém esclarecer que o conteúdo jurídico e racional do princípio da igualdade não é tão cartesiano quanto possa parecer a determinados objetos. O assim denominado “casamento igualitário” é um deles, conquanto estabeleça, por equiparação ficta derivada da chamada “Ideologia de gênero”, um “mix” de categorias antropológicas que, de fato, deveriam ser complementárias e não exatamente iguais. A igualdade dos cônjuges reside da dignidade de cada um deles, e não nas suas respectivas corporeidades. Estas, e não aquela, constituem a categoria subsumível historicamente à ideia multissecular de casamento que as religiões tradicionais, precedentes do Estado, reivindicam ao seu patrimônio imemorial e consubstancial à liberdade de confissão religiosa e de culto. Para os cristãos, aliás, o casamento é um Sacramento, cujo valor é absoluto por reportar-se ao Criador. Nessa discussão sempre há muito mais de ideológico (vontade idealizada, individual ou coletiva) do que de substância prática, e disso tomamos em consideração porque a verdade residente nos fatos não tem vida efêmera, ela é universal e transcendente. Como tal estabelece uma variável constante que não pode servir de argumento de resistência à regulação legal tradicional sobre o casamento por não afetar, desse modo, o princípio da isonomia (ver: “Conteúdo jurídico do princípio da igualdade”, 1ª e 2ª conclusões, Celso Antônio Bandeira de Mello).
Abstraídas as questões empíricas que envolvem a ideia multissecular do casamento, o fato é que a apropriação pelo Estado desse conceito preexistente, mas com clara elasticidade ressignificante, desqualifica a própria laicidade, que é um ambiente lógico de mão dupla. Do modo com que as religiões não interferem no Estado, o Estado não interfere nas religiões. É assim que funciona. Agora, reconheço que para os não crentes pode não ser tão fácil captar essas nuances epistemológicas e conceituais.
Sobre isto, ainda, uma passagem muito interessante que me foi transmitida e é pertinente ao assunto: “O que a humanidade chama de “casamento” há milênios é uma instituição social que busca gerar e criar novos membros para sociedade e sempre teve um cuidado específico para que funcionasse. Isso não tem nada a ver com preconceito com união entre homossexuais, por exemplo, nada, mas como estamos lidando com profissionais eles jogam tudo no mesmo saco e conquistam os corações e mentes pouco informados ou interessados em se aprofundar nos temas sociais além de uma frase de efeito ou imagem para postar numa rede social. Em vez de gritar, de reagir com o fígado, feche a boca e vá estudar. Leia, por exemplo, “What is Marriage?”, do Ryan Anderson, ou “Coming Apart”, do Charles Murray (alô editoras, por favor traduzam essas duas joias para ontem!). Pense, reflita e aja com calma numa estratégia para dar certo em cinco, dez ou quinze anos, que é o que leva uma vitória num tema cultural complexo.” (Alexandre Borges)
Por fim, convido aos que creem que releiam a passagem de Mateus 16,13-19; e aos que não creem, convido que leiam a grande obra de uma dupla nada paradoxal de autores católico (Carlo Maria CARDEAL Martini) e ateu (Umberto Eco): “Em que creem os que não creem”.