Maioridade penal, vícios e artifícios
Sob o título “Duvidosa legalidade da primeira aprovação da PEC da maioridade“, o artigo a seguir é de autoria de Ighor Raphael das Neves Amorim, Coordenador da Escola Judicial dos Servidores do Tribunal de Justiça de São Paulo na 7ª Região Judiciária.
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Nos últimos dias, muito se tem falado sobre o Deputado Eduardo Cunha, Presidente da Câmara dos Deputados, e a aprovação naquela casa, em primeiro turno, do projeto de redução parcial da maioridade penal. Pouco se compreende, entretanto, quais os motivos do falatório e das supostas irregularidades (os mais inflamados chamaram de “golpe”) sem que isso esbarre na polarização política e confusão com opiniões a respeito da matéria posta em votação.
Adiante-se que não há consenso sobre a questão aqui considerada. Tudo indica que caberá ao Supremo Tribunal Federal se pronunciar quando for provocado a respeito, fato já prometido por alguns parlamentares e entidades da sociedade civil.
Nestas notas, não se enfrentará a questão de fundo, que é a eficácia, ou não, da redução da maioridade penal; assim como não se levará em consideração se essa mudança acompanha, ou não, uma demanda da sociedade. Esses dois critérios são extraídos do fato de a pertinência de um determinado projeto de modificação legislativa não autorizar seja ele conduzido de maneira contrária ao que determina a legalidade e o processo legislativo (obediência ao regimento interno, à legislação e, sobretudo, à Constituição Federal), pois a norma não pode conter vícios de origem, devendo ser idônea dos pontos de vista formal e material.
É a Constituição Federal que estipula que são penalmente inimputáveis os menores de dezoito anos, razão pela qual a alteração dessa regra depende de uma emenda no texto original.
Desde 1993 tramita na Câmara dos Deputados a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 171, que buscava a redução da maioridade penal para 16 anos em caso de prática de qualquer crime. A ela foram unidas diversas outras propostas sobre o mesmo tema, muitas delas idênticas, alongando por mais de 20 anos o tempo de resposta do Legislativo. Em março deste ano, enfim, a Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC) da Câmara dos Deputados deliberou favoravelmente pelo seguimento do projeto, por não vislumbrar conflito com a Constituição Federal (ressalva-se, aqui, entendimento em sentido contrário).
Consequência disso foi a criação de uma Comissão Especial para encaminhamento do projeto e elaboração de um novo parecer na PEC nº 171, agora já tendo por alvo a sua redação, e não apenas a sua adequação à Constituição Federal, sendo que dita Comissão produziu um texto substitutivo ao original, restringindo a redução à prática de crimes determinados, tais como os inafiançáveis, os hediondos, os insuscetíveis de graça ou anistia, tráfico de drogas e roubo com causa de aumento de pena.
Na noite de 30/06/2015, esse substitutivo foi levado à votação em plenário, com sobreposição ao texto original, e não foi aprovado, na medida em que alcançou apenas 303 votos pela sua admissão, cinco a menos do que o necessário (três quintos de todos os deputados). Note-se que o artigo 191, inciso II, do Regimento Interno da Câmara dos Deputados estabelece que “o substitutivo de Comissão tem preferência na votação sobre o projeto”, isto é, primeiro vota-se o substituto proposto, e só depois o texto original. Assim, o projeto original (aquele que previa a redução total da maioridade) não chegou a ser votado.
Dispensa maior explicação dizer que se os deputados não admitiram a redução para alguns crimes, muito provavelmente não a aprovariam para todos os crimes, como previsto no texto original naquele momento prestes a ser votado. Assim, estava claro que a PEC inteira caminhava para a rejeição, fato que carregava em si muito mais do que uma questão de interesse social, mas sim um confronto político.
Antevendo-se isso, foi articulada a elaboração, às pressas, de mais uma emenda no projeto antes de ele ser votado. Essa, diferentemente das tantas outras, aparentemente foi feita apenas com o objetivo de provocar nova votação, pouco modificando o texto rejeitado no dia anterior, valendo-se do que dispõe o artigo 191, inciso V, do regimento da casa, que determina que o projeto original seja votado “depois das emendas que lhe tenham sido apresentadas”.
Emendas, esclareça-se, são alterações feitas a algum item, acrescendo, suprimindo, fundindo, modificando ou substituindo alguma de suas partes.
Então, já no dia 01/07/2014, os Deputados Federais Rogério Rosso (PSD/DF) e André Moura (PSC/SE) apresentaram a Emenda Aglutinativa nº 16, que conduzia à alteração do projeto original para que a redução pretendida atingisse apenas menores de 18 anos que cometessem crimes hediondos, homicídios dolosos e lesões corporais seguidas de morte. E aqui começa o problema: o artigo 118, § 3º, do Regimento Interno da Câmara descreve que “emenda aglutinativa é a que resulta da fusão de outras emendas, ou destas com o texto, por transação tendente à aproximação dos respectivos objetos”.
Só que essa emenda apresentada era uma inovação, isto é, não fundiu ideias preexistentes (muito embora sua minuta diga isso), apenas criando uma versão mais branda do texto já rejeitado na noite com a finalidade de obter alguns votos a mais tendentes à apreciação.
E mais: a redução da maioridade para os crimes contemplados na emenda aglutinativa (hediondos, homicídios dolosos e lesões corporais seguidas de morte) já estava inserida no texto votado e rejeitado no dia anterior.
O texto da emenda aglutinativa nº 16 foi aprovado com 323 votos, superando, portanto, os necessários três quintos de concordância dos deputados. Essa emenda passou a figurar como texto-base da alteração e aguarda votação em segundo turno, para depois seguir aos dois turnos no Senado Federal.
Ao menos em princípio, parece que a retirada de determinados crimes (tráfico de drogas, terrorismo e roubo) não eliminou o fato de os crimes que sobraram já haverem sido objeto do projeto votado e rejeitado no dia anterior, o que esbarraria no artigo 60, § 5º, da Constituição Federal, norma superior a qualquer lei ou regimento interno, que estabelece que “a matéria constante de proposta de emenda rejeitada ou havida por prejudicada não pode ser objeto de nova proposta na mesma sessão legislativa”, observado que sessão legislativa significa o ano de trabalho parlamentar, de 02 de fevereiro a 22 de dezembro, não se confundindo com a sessão diária na qual os parlamentares se reúnem para deliberar.
É uma questão simples que a matemática descreve na teoria dos conjuntos. O objeto da emenda aglutinativa criada no dia 1º de julho estava incluído na emenda rejeitada no dia anterior.
Pense-se no seguinte exemplo: um pai tem três filhos – A, B e C – todos com 16 anos. Hoje, A, B e C pediram ao pai para viajarem sozinhos para o exterior, mas o pai nega, dizendo que apenas permitirá quando eles completarem 18 anos. Se amanhã apenas A e B repetirem o pedido, não se pode dizer que eles apresentaram pedido com “nova matéria” pelo simples fato de “C” haver sido excluído do novo pedido. Isso porque a resposta negativa já foi dada para todos e não se modifica à sorte da inclusão ou exclusão de um ou de outro.
No caso das emendas constitucionais, o raciocínio é o mesmo e deve ser preservado. Do contrário, seria possível que, diariamente, fosse tentada a aprovação de uma relevante mudança da lei maior, até que aprovada.
Relembre-se que embora sejam necessários 308 votos para a apreciação de uma PEC, o início da votação não exige a presença dos 513 deputados. Assim, alguns dos presentes hoje podem se ausentar amanhã, e vice-versa. É essa “loteria” que se busca evitar com o impedimento de rediscussão da matéria dentro do mesmo ano.
Não se pode perder de mira a superioridade da norma constitucional e a necessidade de que a sua modificação obedeça a requisitos sérios, os quais não podem ser burlados. A Constituição Federal é clara ao dizer que uma matéria (tema) não pode ser reapreciada no mesmo ano, podendo-se dizer que com uma ou outra modificação, o tema maioridade penal foi reanalisado em intervalo de apenas um dia.
O Presidente da Câmara, Eduardo Cunha, apega-se à literalidade do texto do regimento, fato que deve ser cuidadosamente analisado, afinal, não se pode permitir o manejo de expedientes regimentais ou jogo de palavras com a finalidade de contrariar o que a Constituição Federal proíbe. A interpretação das normas leva em conta sua finalidade, não sendo meramente literal.
Pela mídia, os Ministro Marco Aurélio Mello e o ex-presidente do Supremo Tribunal Federal, declararam vislumbrar inconstitucionalidade na votação do projeto, o que sinaliza que o assunto ainda vai render.
De todo modo, espera-se que em breve venha definição por parte da Corte Suprema, respondendo positiva ou negativamente frente ao ocorrido, para que se resguarde a segurança jurídica da qual a sociedade depende, ainda mais em tema tão tormentoso quanto o que a alteração envolve.