Sobre o afastamento de chefe de Poder

Frederico Vasconcelos

Sob o título “O efeito jurídico de afastamento do cargo decorrente da decisão do STF que aceita a denúncia contra chefe de Poder da República”, o artigo a seguir é de autoria de César Augusto Carvalho de Figueiredo, Juiz do Tribunal de Justiça da Bahia.

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É inegável que os brasileiros convivem hoje com uma grave crise política, tendo como personagens principais os ocupantes do Poderes da República. Observa-se, por um lado, a chefe do executivo federal com baixa aprovação popular e com deficiente apoio no Congresso Nacional, ameaçada inclusive de responder a processo de Impeachment. Por outro, nota-se os chefes da Câmara dos Deputados e do Senado Federal sendo investigados por crimes comuns perante o Supremo Tribunal Federal (STF), a pedido da Procuradoria-geral da República. É, portanto, nessa circunstância de instabilidade que mais se exige a força normativa da Constituição.

Conforme foi noticiado, o Presidente da Câmara dos Deputados foi denunciado pelo Procurador-geral por supostos crimes de corrupção passiva e de lavagem de dinheiro. A questão que se coloca é saber se a decisão do STF que vier a admitir a acusação de crime comum, em desfavor do ocupante de cargo com tal envergadura, tem o condão de suspendê-lo de suas funções de chefe de um dos órgãos do Poder Legislativo.

Com efeito, a Constituição da República de 1988, diferentemente do que fez o constituinte português de 1974, não disciplinou a situação do exercício do cargo quando os chefes do Legislativo se tornam réus em processos criminais, restringindo-se a prever, no art. 86, § 1º, I, que o Presidente do Executivo ficará suspenso de suas funções pelo prazo mínimo de 180 dias, nas infrações penais comuns, se recebida a denúncia pelo Supremo Tribunal Federal. Há, portanto, uma evidente lacuna da norma jurídica exigindo ser preenchida por algum dos modos de integração.

Em casos como os tais, o próprio sistema normativo prevê a possibilidade de resolver a omissão do constituinte valendo-se da analogia, dos costumes ou dos princípios gerais do Direito, conforme reza a Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro, no art. 4º. Mais recentemente, os estudiosos exigem, além disso, que a solução encontrada a partir desses métodos dito clássicos de integração seja filtrada pelos modernos princípios de interpretação constitucional, a exemplo da unidade da constituição.

Ensina o professor Tercio Sampaio Ferraz Jr. que “o uso da analogia, no direito, funda-se no princípio geral de que se deva dar tratamento igual a casos semelhantes. Segue daí que a semelhança deve ser demonstrada sob o ponto de vista dos efeitos jurídicos, supondo-se que as coincidências sejam maiores e juridicamente mais significativas que as diferenças. Demonstrada a semelhança entre dois casos, o intérprete percebe, simultaneamente, que um não está regulado e
aplica a ele a norma do outro”. (2) Esse é justamente o presente caso.

De fato, não existe um motivo justificável que autoriza entender que a norma que é aplicada para o chefe do Executivo não deva ser aplicada aos chefes dos demais poderes, quando ambos os dirigentes, a quem se atribui elevadas prerrogativas, encontram-se na mesma situação de serem de réus em processo criminal após o recebimento da denúncia pelo STF. Aliás, é impensável que o constituinte de 1988, democrático e republicano como foi, desejou privilegiar alguns em desamparo de outro, mormente face ao fato de a suspeição de criminoso que recai sobre todos é de mesmo nível e gravidade, qual seja, a de ter praticado crime comum.

Deveras, é a própria Constituição que diz que os Poderes da União, além de serem independentes, precisam ser harmônicos entre si, de maneira que um exerce sobre o outro um equilibrado sistema de freios e contrapesos. Porém, caso a norma do afastamento não seja aplicada para todos os Presidentes, o balanço do controle recíproco resta desarmonioso, na medida em que a decisão do STF possuiria o condão de afastá-lo no Executivo, mas não o teria ao se referir ao Legislativo. Decerto, por essa razão é que a Constituição Portuguesa nessa questão trata os integrantes de ambos os Poderes de forma isonômica ( art. 157, 4 vs. art. 196, 2).

Com efeito, o afastamento automático decorre do sério risco de o ocupante da posição de chefia, vendo-se ameaçado de uma condenação criminal, por instinto humano, passar a exercer as prorrogativas do cargo com abuso de poder, de sorte a não só interferir na instrução criminal, que se inicia com o recebimento da denúncia, mas também a prejudicar o adequado funcionamento da instituição que administra. É, enfim, a perigosa confusão entre o público e o privado, vedada pela Constituição, no art. 37 (princípios da impessoalidade e da moralidade).

Resta, então, avaliar se a integração analógica ora desvendada condiz com os princípios hermenêuticos de interpretação da norma constitucional, que possui a especialidade de ter natureza essencialmente política. Daí observa-se que essa solução é a que melhor preserva a unidade da Constituição, cujo afastamento de antinomias e contradições, a partir da exame global do texto, é uma exigência. Ademais, possui o efeito integrador, na medida em que o STF proferirá decisões com idêntica eficácia para os demais Poderes, racionalizando o sistema. Por fim, confere à regra do art. 86, § 1º, I, da CR/88, força normativa em plenitude, dando-se “primazia às soluções hermenêuticas que, compreendendo a historicidade das estrutura constitucionais, possibilitam a ‘actualização’ normativa, garantindo, do mesmo pé, a sua eficácia e permanência”. (2)

Por tudo isso, conclui-se que a aplicação analógica da referida regra aos casos em que o Supremo Tribunal Federal recebe denúncia para processar por crime comum os chefes da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal, afastando-os automaticamente dos respectivos cargos por pelo menos 180 dias, é medida que se impõe, por ditame lógico, a bem da impessoalidade, da moralidade e do equilíbrio entre os Poderes.

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(1) FERRAZ JR., Tercio Sampaio. In: Introdução ao Estudo do Direito, 3a Ed., Atlas, São Paulo, 2001, p. 297. 1
(2) CANOTILHO, J. J. Gomes. In: Direito Constitucional, 6a Ed., Almedina, Coimbra, 1993, p. 229.