AJD e ponto de servidores em greve
Sob o título “Em favor do direito de greve e contra o corte de ponto dos servidores da Justiça Federal“, a Associação Juízes para a Democracia (AJD), divulgou nesta-terça-feira, a seguinte nota:
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A Associação Juízes para a Democracia (AJD), entidade não governamental, de âmbito nacional, sem fins corporativos, que tem dentre seus objetivos estatutários o respeito absoluto e incondicional aos valores próprios do Estado Democrático de Direito, vem a público manifestar sua solidariedade aos servidores da Justiça Federal em greve e sua preocupação acerca do corte de ponto determinado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ – Pedido de Providências – 0003835-98.2015.2.00.000), pelos motivos abaixo expostos.
A Constituição de 1988 inverteu uma lógica de negação concreta ao direito de greve, que foi explicitada em diversos momentos da história do Brasil: Lei n. 38, de 4 de abril de 1935; Constituição de 1937; Decreto-Lei n. 431, de 18 de maio de 1938; Decreto-Lei n. 1.237, de 2 de maio de 1939; Código Penal de 1940; Lei n. 4.330, de 1º. de junho de 1964; e “lei de segurança nacional”, de março de 1967; mas o que se verifica é que boa parte dos entendimentos jurídicos sobre a greve ainda hoje se pautam pela ideia de que a ordem jurídica deva servir para inibir a greve em vez de garanti-la, mesmo que o Supremo Tribunal Federal já tenha se pronunciado, exatamente em sentido contrário (Mandado de Injunção 712, Min. Relator Eros Roberto Grau).
Na atual Carta constitucional, fruto do processo de redemocratização do país, que só foi possível em decorrência do advento das greves iniciadas no final da década de 70, os direitos dos trabalhadores ganharam posição privilegiada, inscritos que foram no Título dos Direitos e Garantias Fundamentais, com especial relevo para o direito de greve:
Art. 9º É assegurado o direito de greve, competindo aos trabalhadores decidir sobre a oportunidade de exercê-lo e sobre os interesses que devam por meio dele defender.
Certo que o § 1º do art. 9º da Constituição estabeleceu que “a lei definirá os serviços ou atividades essenciais e disporá sobre o atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade” e que “os abusos cometidos sujeitam os responsáveis às penas da lei”. Mas essas especificações atribuídas à lei não podem ser postas em um plano de maior relevância que o próprio exercício da greve. As delimitações legais, para atender necessidades inadiáveis e para coibir abusos, não podem ser vistas com um alcance tal que inviabilize o exercício do direito de greve.
Nos termos da Lei n. 7.783/89, deflagrada a greve, compete à entidade empregadora manter diálogo com os trabalhadores e não valer-se da via judicial para que esta dirima o conflito. Preceitua o artigo 9º da Lei n. 7.783/89 que “Durante a greve, o sindicato ou a comissão de negociação, mediante acordo com a entidade patronal ou diretamente com o empregador, manterá em atividade equipes de empregados com o propósito de assegurar os serviços cuja paralisação resultem em prejuízo irreparável, pela deterioração irreversível de bens, máquinas e equipamentos, bem como a manutenção daqueles essenciais à retomada das atividades da empresa quando da cessação do movimento.” – grifou-se
As responsabilidades pelo efeito da greve não podem, portanto, ser atribuídas unicamente aos trabalhadores, até porque estão no exercício de um direito. Aos empregadores também são atribuídas responsabilidades e a primeira delas é a de abrir negociação com os trabalhadores, inclusive para definir como será dada continuidade às atividades produtivas.
A greve no serviço público, oportuno dizer, não é apenas um ato político de interesse dos trabalhadores como se possa acreditar. Trata-se de uma ação de interesse de toda a sociedade, mesmo quando seu objetivo imediato seja a reivindicação salarial. Afinal, a prestação adequada e de qualidade de serviços à população, que é um dever do Estado, notadamente quando se trata de direitos sociais, depende da competência e da dedicação dos trabalhadores. Sem um efetivo envolvimento dos trabalhadores o Estado não tem como cumprir as suas obrigações constitucionalmente fixadas.
Mas foi uma equivocada interpretação extensiva da Lei n. 7.783/89, apta a aniquilar o direito de greve, que ensejou a decisão do CNJ.
Verifique-se que se ao ver do CNJ os administradores, Presidentes dos Tribunais, devem realizar os descontos dos salários, vez que, segundo disse, “não existe na Constituição da República um direito à greve remunerada”, e que devem realizar tal ato independente de decisão judicial, então esses administradores, todos eles, já teriam incorrido em ato de improbidade, na medida em que a greve perdura há mais de 90 (noventa) dias e os pontos não foram cortados. Como dito na decisão: “essa é uma noção elementar de probidade na gestão da coisa pública”
A referida decisão do CNJ, a bem da verdade, diz que, embora não haja como justificar o pagamento dos dias não trabalhados, não quer nem “impõe que o administrado adote a suspensão do pagamento no dia seguinte à deflagração da greve” e que seria “temerário definir, de forma rígida e inflexível, um prazo a partir do qual deva se dar o desconto da remuneração dos servidores – por exemplo, em 30 (trinta) dias”.
A determinação, portanto, é tautológica, porque diz que a lei não autoriza o recebimento de salários durante a greve, mas também não reconhece o direito do empregador de efetuar o corte de ponto, a não ser que o tempo da greve ultrapasse o razoável, que a decisão não diz qual é, mas garante que noventa dias já ultrapassaram esse limite.
Mesmo sem qualquer critério legal para fixar o tal limite a decisão diz que o prazo já se esgotou e que o não corte de pontos deixou de ser razoável, determinando que este seja feito mesmo sem decisão judicial a respeito. Assim, os administradores, mesmo sem se saber a partir de quando, já teriam incorrido em ato de improbidade.
Portanto, seguindo o próprio parâmetro adotado na decisão em questão tem o CNJ a obrigação de determinar a instauração de procedimentos administrativos disciplinares contra os administradores, Presidentes dos Tribunais, que não efetuaram os cortes de ponto até hoje, gerando, inclusive, repercussão de ordem patriomonial sobre estes, e se não o fizer estará, então, incorrido no crime de prevaricação.
Mas se não for isso, ou seja, se os administradores não estavam juridicamente obrigados a realizar os cortes de ponto – e, de fato e de direito, não estão, como demonstrado – a determinação feita pelo CNJ, sem se pautar em qualquer base legal para definir a partir de quando o corte é devido, representa ato antissindical, vez que utiliza o corte de ponto apenas para forçar os servidores a encerrarem a greve, sem sequer dizer se reivindicação destes é juridicamente válida, ou não.
Aliás, a determinação do constante da decisão do CNJ vai além e chega ao ponto extremo de determinar que os Presidentes dos Tribunais “desobstruam o acesso aos prédios da Justiça, caso haja obstáculos ou dificuldades de quaisquer natureza impostas pelo movimento grevista quanto à entrada e circulação de pessoas nos referidos prédios”, como se os administradores tivessem, eles, que se postarem diante dos grevistas para convencê-los a voltar ao trabalho ou que pudessem pleitear força policial, sem necessidade de ordem judicial, para intervir no conflito, desconsiderando-se, ademais, que os piquetes são legalmente previstos e que se justificam para que se faça prevalecer, em concreto, o legítimo e efetivo exercício do direito de greve, na medida em que se veja ameaçado por atos ilícitos do empregador, que se valendo de pressão aberta ou velada com relação aos grevistas e sugerindo premiações aos que não aderirem à greve, tenta destruir a greve sem se dispor ao necessário diálogo com os trabalhadores, sendo certo que o diálogo somente adquire nível de equilíbrio quando os que se situam em posição de inferioridade buscam a ação coletiva.
Segundo dispõe o artigo 6º da Lei de Greve:
Art. 6º São assegurados aos grevistas, dentre outros direitos:
I – o emprego de meios pacíficos tendentes a persuadir ou aliciar os trabalhadores a aderirem à greve;
(….)
§ 1º Em nenhuma hipótese, os meios adotados por empregados e empregadores poderão violar ou constranger os direitos e garantias fundamentais de outrem.
(….)
§ 3º As manifestações e atos de persuasão utilizados pelos grevistas não poderão impedir o acesso ao trabalho nem causar ameaça ou dano à propriedade ou pessoa.
Mesmo no caso da greve interferir em direitos fundamentais de terceiros, como preconizam os §§ 1º e 3º do artigo 6º, o que se tem como efeito é a existência de um conflito de direitos que se resolve em contenda judicial e não pela via do “exercício arbitrário das próprias razões”, que, inclusive, constitui crime, conforme definido no art. 345, do Código Penal, sendo certo, ainda, que no conflito de direitos há que se dar prevalência ao exercício do direito de greve, pois no Direito do Trabalho a normatividade coletiva supera a individual, a não ser quando esta seja mais favorável. Recorde-se que é a partir dessas premissas que se tem entendido imprópria a interposição de interdito proibitório contra piquetes.
Assim, não é função da força policial intervir em conflito trabalhista e definir arbitrariamente que direito deve prevalecer, reprimindo um interesse juridicamente garantido, acolhendo o abstrato direito de ir e vir e tratando trabalhadores como criminosos.
E prosseguindo nos equívocos contra o direito de greve, a decisão mencionada determina que os Presidentes dos Tribunais “adotem medidas que visem garantir a maior continuidade possível de todos os serviços prestados, independente do caráter de urgência da solicitação ou da existência de prazo em curso”, como se a lei não estipulasse que apenas as atividades consideradas inadiáveis e essenciais sejam continuadas durante a greve e, como dito, mediante acordo formalizado entre comando de greve e empregador.
Por todos esses fundamentos, a AJD defende, para retomada do respeito à ordem constitucional, que seja revogada a determinação do CNJ para o corte de ponto de servidores em greve, assim como as demais determinações referidas na mesma decisão, seja porque falta competência jurisdicional ao CNJ para definir os destinos da greve, seja porque as determinações realizadas, além de constituem atos antissindicais, desrespeitam os padrões jurídicos aplicáveis ao direito de greve, sendo que no caso específico da greve dos servidores, por ter sido ela motivada pela inércia do governo em cumprir, por nove anos, o direito à revisão anual da remuneração (art. 37, X, da CF), sem que tenha havido por parte do empregador negociações para fixar a forma da continuidade dos serviços inadiáveis, muito dificilmente se poderia declarar, judicialmente, a ilegalidade da greve.
Por fim, se o CNJ pudesse usurpar seu poder para fazer valer a ordem jurídica, alguém poderia sugerir que em vez de determinar que os servidores sejam impedidos de exercer o direito de greve, impondo-lhes o sacrifício do corte de ponto, deveria, isto sim, fixar um prazo para o pagamento dos reajustes salariais devidos há nove anos aos servidores, sob pena de prisão e responsabilização patrimonial do chefe do Executivo.
Se não pode fazer isso por uma questão de legalidade, pela mesma razão não pode simplesmente negar vigência aos dispositivos constitucionais aplicáveis ao direito de greve e que guarnecem o patrimônio jurídico dos servidores.
São Paulo, 22 de setembro de 2015.
Associação Juízes para a Democracia