Dom Helder no “Pasquim”
Leia trechos da entrevista que rompeu, em 1970, a censura ao arcebispo.
Como contribuição à iniciativa da Comissão da Memória e Verdade de Pernambuco –que elaborou dossiê sobre a ação dos militares para impedir que Dom Helder Câmara recebesse o Prêmio Nobel da Paz– o Blog reproduz trechos de entrevista que o arcebispo concedeu ao semanário “O Pasquim“, capa de edição em março de 1970.
As declarações de Dom Helder devem ser lidas, hoje, com a perspectiva histórica. Dom Helder trata de temas proibidos, como a tortura, quando o país ainda estava em plena ditadura militar, tendo na presidência o general Emílio Garrastazu Médici.
O arcebispo revela como recebia as críticas e elogios na imprensa. Menciona os “balões” que eram inflados, para serem furados em seguida –como as indicações para o Nobel da Paz.
A entrevista –que teve o mérito de romper a longa censura imposta pelo regime militar a dom Helder– foi coordenada pela jornalista, depois deputada Cristina Tavares Correia, com a participação do editor deste Blog e do jornalista Jeová Franklin.
Eis alguns trechos:
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Sobre a tortura
“Eu posso falar de cadeira, porque eu pertenço a uma Igreja que, desgraçadamente, durante séculos, fez a experiência dolorosa, através da Inquisição, de pretender impor à força os seus dogmas religiosos. Era o ‘crê ou morre’. Assim como eu reconheço que muitos aparelhos de tortura de hoje são cópias dos aparelhos de torturas da velha Inquisição. Hoje em dia, há muita facilidade dos choques elétricos”.
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Sobre imprensa e poder econômico
“Você, por exemplo, como jornalista, se bate por uma imprensa livre. Você sabe que é verdade que a imprensa é dolorosamente uma escrava do poder econômico. De maneira que são contingências. Nós estamos aqui nesta conversa, ela sairá ou não. Veremos até onde começam os interesses da empresa, porque existe uma engrenagem”.
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Sobre críticas na imprensa
“Eu, pessoalmente, adoto um sistema, certo ou errado: à medida que eu sei que há amigos que lêem para mim, o que se escreve a meu respeito, adoto este sistema cada vez que aparece o meu nome numa manchete: eu faço mais do que uma leitura dinâmica, superdinâmica. Apenas de raspão. Isso porque se for ataque, o fato de eu não ler de gota a gota me protege contra qualquer amargura”.
“É uma das minhas riquezas, da qual eu não quero abrir mão, pois me dá saúde, me dá alegria interior, me dá paz, é não carregar nenhum travo dentro de mim. Agora, também evitando ler, caso seja elogio, estou me protegendo porque facilmente nós acreditamos nos elogios”.
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Sobre especulações na mídia
“Quando eu estive recentemente com o Santo Padre, um jornal de Milão, um jornal altamente conservador, publicou que eu teria declarado que na minha conversa com o Santo Padre ele me teria autorizado a promover um entendimento entre a Igreja e o Governo. Evidente que é uma coisa profundamente ridícula, sem sentido. E há jornais que adiantam colocações só para depois colherem os necessários desmentidos. É claro que todos nós, o ‘Osservatore Romano’, tivemos que dizer que não era verdadeira, eu não trazia nenhuma missão. E para o qual eu era o menos indicado”.
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“É muito difícil julgar as intenções, mas às vezes a impressão que se tem é essa, é que, uma boa maneira de ‘queimar’ é lançar. Lançam, enchem o balão, só para terem o gostinho depois de furar…
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Sobre provocações de autoridades
“Em uma ocasião, uma autoridade estranhou que eu tivesse uma cruz de madeira. Foi uma autoridade governamental. Perguntou, com certo ar de zombaria, se agora as cruzes eram assim. Eu respondi no mesmo tom, perguntando se ele tinha certeza de que Cristo havia sido pregado numa cruz de madeira. Quem sabe, não teria sido numa de ouro?”
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Sobre Nelson Rodrigues
“É um homem profundamente impulsivo, apaixonado, ele é incapaz de atacar com essa rudeza quando não existe uma amizade profunda. Ele no íntimo, no íntimo, tem uma amizade da qual ele não se curará. Uma amizade àqueles a quem ele ataca com mais rigor”.
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Sobre Gilberto Freyre
“Eu tinha uma natural admiração por Gilberto Freyre. Mas aquele Gilberto, humano, compreensivo, brasileiro. Então, de repente o que eu começo a ver é outro Gilberto Freyre, depois de 64. Meio odiento, farejador de pessoas comprometidas, anti-revolucionárias, sei lá o quê. Então, a princípio, eu tentei dizer isso pessoalmente. Lembro-me muito bem que fiz mais de uma tentativa de dizer isso em termos pessoais. Um dia, fui obrigado a dizer numa carta-aberta. Eu me lembro que eu dizia que entre o o primeiro Gilberto e o segundo, eu ficava com o primeiro. E ainda hoje eu fico. Eu não deixo de admirar profundamente o primeiro Gilberto Freyre. O que eu espero é que um dia, mais hoje, mais amanhã, o primeiro, autêntico, jogue o segundo pela janela”.
[- De que andar?— perguntaram os entrevistadores, mantendo a habitual irreverência do “Pasquim“.]
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Dom Helder morreu em agosto de 1999. Em setembro, este repórter publicou artigo na Folha (*) sob o título “Sem medo nem rancor“, um perfil do arcebispo, no qual há uma menção à entrevista:
“A coragem pessoal de dom Hélder era um exemplo de resistência naqueles tempos de terror e trevas. Sem as pompas do cargo, o arcebispo morava sozinho numa casinha de pequenos cômodos, cujo muro havia sido metralhado, de madrugada, mais de uma vez.
‘Vocês conseguem ver aqueles dois homens, ali em frente, atrás das plantas?’, perguntou uma noite, sorrindo, ao se despedir depois de uma entrevista. ‘Eles estão escondidos, mas dizem que é para me proteger’, ironizava.
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(*) http://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc03099915.htm