Ainda sobre a Lei de Cotas

Frederico Vasconcelos

Sob o título “Reflexões sobre a Lei de Cotas”, o artigo a seguir é de autoria de Roberto Wanderley Nogueira, Juiz Federal no Recife.

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Sobre um argumento que se expande fortemente no cenário empresarial e jurídico de que o setor privado não estaria obrigado a respeitar a Lei de Cotas (art. 93, Lei 8213/91) que favorece as Pessoas com Deficiência em 2% a 5% das contratações laborais dessas pessoas para contingentes de 100 ou mais empregados por empresa, sobretudo depois que a presidente da República vetou dispositivos da Lei Brasileira de Inclusão que somente reproduziam dispositivos constitucionais associados (vetos que foram estranhamente confirmados pelo Congresso Nacional), peço-lhes um instante de sua atenção, e leiam o que segue:

Essa crítica, além de seu caráter claramente corporativo, explica o esforço constante da objeção empresarial que nos tem sido apresentada e pela qual se supõe, absurdamente, que as Empresas não estão obrigadas a contratar Pessoas com Deficiência sem qualificação, sob o pálio de uma teorização inteiramente arbitrária e nitidamente violadora da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência que, como norma constitucional (cf. art 5º, §º, da CF), influencia positivamente todo o texto da Carta e também toda a Legislação preexistente e também aquela que tenha sido instaurada depois do seu advento e ainda doravante.

O argumento é um primor de aleivosia social e uma expressão teratológica de um Direito Positivo que, que por ventura pensar desse modo, lamentavelmente desconhece. Este é um ponto relevante do momento histórico em que nos encontramos. Em maio passado, o Conselho Nacional de Justiça me convidou para uma Palestra sobre reserva de vagas para ingresso em concurso público de Magistrado, uma exigência em vigor desde 1989 que nunca foi respeitada – insisto: nunca! – pelos Tribunais brasileiros, todos eles e sem nenhuma exceção. Na ocasião, me fiz acompanhar do Prof. Dr. Francisco José de Lima, audiodescritor, com quem dividi uma Mesa temática na ocasião. Um auditório de uns 100 Magistrados, entre juízes, desembargadores e ministros de todo o Brasil, se formou. Qual não foi a minha surpresa e decepção ao ouvir da plateia que ninguém ali jamais tomou conhecimento da Norma Convencional que o Brasil ratificou na condição de Norma Constitucional (equivalente) e, conforme se trate de Direitos Humanos, também “cláusula pétrea”, insuscetível até mesmo de revisão constitucional. Para agravar o quadro de perplexidades, assim que fiz à plateia ciência do cenário, ainda lembrei que nenhuma questão, por mais individual que fosse, ligada aos direitos humanos das Pessoas com Deficiência, estaria isenta de análise diretamente pelo Comitê da ONU para resolver esse tipo de pendência. Quando falei que o Supremo Tribunal Federal, em face do Protocolo Facultativo anexo à Convenção de Nova Iorque, e também incorporado ao nosso sistema jurídico, não detinha a última palavra sobre essa matéria, a mim pareceu que o céu caiu sobre a cabeça daqueles mesmos Magistrados, que são agentes de um Estado que, nesse aspecto substancial do constitucionalismo atual, desconhecem solenemente. Desse modo, estão atuando um Direito aplicado que, em síntese, realmente desconhecem. É a perplexidade que se nos assalta a consciência cívica.

Com efeito, há duas desgraças que, como barreiras atitudinais, temos de continuar enfrentando no Brasil: a ignorância sistemática e a corrupção endêmica! Um aliado das Pessoas com Deficiência, paradoxalmente, é o acaso. Não é raro acontecer que famílias acordem para o problema quando produzem Pessoas com Deficiência em razão do cotidiano da vida e da existência, em face de um inúmero leque de causas clínicas, hereditárias, infortunísticas, acidentárias etc. Se as Pessoas com Deficiência, suas famílias, amigos e simpatizantes, se apercebessem da necessidade de união de propósitos, se pudéssemos adequadamente vencer os abusos da “indústria da deficiência”, por exemplo, seguramente teríamos votos para eleger quem e quantos desejássemos. Ao menos 1/4 da população brasileira tem algum tipo de deficiência. Somando-se às famílias, aderentes, amigos e simpatizantes, vamos à metade da população nacional. Sobre isto, ouvi do Vice-presidente da República do Equador, quando lá estive para palestrar sobre Acesso à Justiça à Luz da Convenção de Nova Iorque, na Reunião Ordinária da RIADIS/2012, que as Pessoas com Deficiência formam a maior de todas as minorias do Planeta. E ele tinha e tem toda razão!

Voltando à tese mal formatada sobre as cotas laborais para Pessoas com Deficiência (art. 93, da Lei 8.213/91 [Lei de Cotas]) , tenho para mim, e seguramente para a consciência jurídica universal, que “dura lex, sede lex”! Não fosse por isso, estaríamos viveciando o caos que o Direito busca evitar dando a cada um o que é seu, velando pela vida honesta das pessoas e não prejudicando a ninguém. Desde os Romanos da Antiguidade já se sabia disso. Portanto, não é novidade alguma para ninguém e para isso nem é preciso formação jurídica.

Mas, é preciso um pouco de perspicácia para compreender que, sem alterar uma só vírgula, o Direito pode acabar dizendo o que se passe nas construções pessoais e espiritualizadas, por vezes ideológicas, dos intérpretes, os quais, desse modo, desservem ao Estado que reconhece a validade de suas normas constitucionais e legais. Por isso, nenhum processo prescinde do contraditório. É da síntese que se pode extrair uma solução razoável, minimamente razoável, para os conflitos e as tentativas de contornar corporativamente o modelo legal em vigor em detrimento do todo social.

No Brasil, diante da lei de regência (Lei de Cotas) que continua em pleno vigor e dos substratos conceituais da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, uma Empresa não tem o direito de afirmar-se dispensada do cumprimento da cota laboral para Pessoas com Deficiência, obedecidos os requisitos legais próprios (2% a 5% para 100 ou mais empregados de cada Empresa contratante). Com efeito, antes de afirmá-lo, a Empresa deve, pela mesma razão que anima o Estado a obrigá-la, por força de lei, a contratar especialmente empregados com deficiência, investir nas condições indispensáveis para que a empregabilidade de Pessoas com Deficiência de fato aconteça. A dizer: a obrigação de qualificar e capacitar é também da Empresa, toda vez que, em condições regulares de mercado, não haja quem, nas condições atuais, possa desempenhar as atividades que a Empresa exige. Ora bem, se assim é, cabe-lhe, em face de sua obrigação legal, providenciar a qualificação de quem porventura tenha contratado. E mais, importa considerar também que não basta contratar a Pessoa com Deficiência para, depois, discriminá-la no serviço. Tão fundamental quanto empregar é preparar o empregado para que desempenhe suas funções em igualdade de condições com os demais empregados. Para isso, cumpre à Empresa, além de qualificar tecnicamente o seu empregado com algum tipo de deficiência, providenciar do mesmo modo as condições para que ele exercite adequadamente o seu papel de empregado. A Empresa é que tem de ajustar-se aos postulados da Inclusão Social no trabalho (previstos na Convenção de Nova Iorque) e não a Pessoa com Deficiência à Empresa.

Essa inversão urdida pelas Empresas para escapar às suas obrigações constitucionais e legais pode ser tomada como uma fraude aos ditames da Lei de Cotas e não deve ser valorizada de modo algum, ademais, porque infratora da Ordem Constitucional estabelecida.

Portanto, só há duas variáveis que explicam o esforço teórico de pular o registro da Lei: ignorância ou má-fé! No caso, com o escopo de violar os direitos emancipatórios das Pessoas com Deficiência em geral, que são fundamentais.

O diacho é que há Tribunais que engolem, também por desconhecimento de causa, esse tipo de inversão cavilosa, precarizadora dos direitos fundamentais da cidadania das Pessoas com Deficiência e nitidamente violadora dos ditames constitucionais específicos.

No mesmo sentido, forças conspiratórias do Direito Posto acabaram induzindo à prática de vetos presidenciais inconstitucionalíssimos a certas disposições meramente reprodutivas de cláusulas constitucionais imutáveis constantes da Lei Brasileira de Inclusão (LBI), que vai entrar em vigor daqui alguns dias, a “Lei de Cotas” segue firme a sua disciplina e deve ser, além de compreendida, efetivada. Sua disciplina é fundamental à execução dos direitos das Pessoas com Deficiência e ao regime das igualdades em nosso país. Nada obstante, há ainda muito a ser feito e os percalços da caminhada emancipatória apenas reforçam a luta por melhores dias para todos.

Por isso é que tenho dito sempre: temos lei, mas vivemos como se ela não existisse! De fato, observa-se um impacto muito firme nos setores público e privado diante das soluções construídas pela legislação que favorecem as Pessoas com Deficiência no Brasil. O Movimento Social e o Governo não têm sido capazes de garantir respostas adequadas à urgente necessidade de efetivação de seus direitos fundamentais, ainda que essa alavancagem sinalize para enormes benefícios ao país e à sua economia.

Ademais, precisamos cravar Pessoas com Deficiência nos diversos espaços do setor público quanto privado, Judiciário à testa, a fim de que cenários como o que se expõe acima sejam evitados, e as Empresas, dentre outros setores, jamais se animem a propor a restrição dos Direitos Humanos, que é o que ocorre na hipótese aqui comentada.

Precisamos resgatar a dignidade das Pessoas com Deficiência. Para isso, é substancial prover-lhes os direitos que lhes são inerentes, independente de conjunturas, ideologismos ou do momento econômico. Os Direitos Humanos são sempre supraconstitucionais e não podem ser relativizados, ou sequer contingenciados em razão de qualquer pretexto histórico. O trabalho desenvolvido pelo SENAI-SP, por exemplo, além de outras Instituições, é seguramente importante, mas todo esse trabalho não exclui a responsabilidade das Empresas na capacitação efetiva de seus empregados com deficiência e no provimento das adaptações razoáveis que se fizerem necessárias ao desempenho em igualdade de condições de seus empregados vinculados à cota legal, a qual deve ser sempre respeitada e jamais fraudada, qualquer que seja a tentativa de justificação, porque sempre e tecnicamente inútil (pseudojustificação).

No contexto das atividades econômicas em geral, investir em adaptação razoável para as pessoas com deficiência é condição para o adequado aperfeiçoamento dessas atividades. Não fazê-lo, outrossim, seria como admitir “empregado” a trabalho escravo, ou deixar-lhe de prover as mínimas condições de trabalhabilidade. De fato, sobre traduzir manifesta ilegalidade, não pode estabelecer-se atividade que tal.