Carta de advogados é manobra panfletária, diz juiz

Frederico Vasconcelos

Sob o título “Resposta de um juiz à carta aberta publicada por advogados relacionados à Operação Lava Jato e demais juristas, a 15 de janeiro de 2016”, o texto abaixo é de autoria do juiz federal Hugo Otávio Tavares Vilela, de Goiânia (GO).

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Hugo Otávio Tavares VilelaAdvogados relacionados à Operação Lava Jato e outros juristas publicaram carta contra a condução do caso, desqualificando-a por completo.

Trazido o tema à arena pública, aqui deve ser tratada. Contudo, previamente, os expectadores devem ser informados acerca dos debatedores, e acerca do cenário.

De um lado, estão juízes, procuradores e policiais que, independente do resultado do caso, não terão sua remuneração alterada em um centavo. De outro, estão advogados que, se o caso seguir o curso que vem seguindo, amargarão prejuízos de centenas de milhões de reais, que esperavam auferir neste e em casos futuros.

O cenário é o Brasil. País curioso. Durante séculos vigoraram aqui as Ordenações portuguesas, que deixaram marcas profundas na alma nacional. O Primeiro Livro, Título LVII, caput e item 1 das Ordenações Filipinas tratavam do Meirinho Mor. Tratava-se de cargo que tinha por requisito ter sangue nobre, e cuja função era prender nobres, quando isso fosse estritamente necessário.

Percebam. O elitismo era tão forte que, em sendo necessário prender um nobre, não era qualquer oficial que o podia fazê-lo. Um nobre só podia ser preso por alguém de sua própria estirpe, de sua casta.

Normas revogadas podem permanecer vivas na cultura de um povo. O elitismo está vivíssimo na cultura brasileira.

Quanto à carta, algumas colocações são de rigor.

Primeiramente, sua redação atabalhoada e panfletária depõe contra a reputação intelectual dos signatários. Sumidades do mundo jurídico redigiram uma peça insossa, com palavras de ordem, jargões. Se tivessem delegado a tarefa a seus assessores, advogados iniciantes de seus escritórios, algo bem superior teria vindo a público. Coisas do nível de “simulacro de processo” não teriam aparecido.

Em segundo lugar, suas excelências não foram capazes de apontar um fato concreto. Grandiloquentes, disseram que o caso representa um retrocesso, uma afronta aos direitos humanos. Se é assim, estranha não terem sido minimamente específicos quanto às atrocidades.

Há golpes rasteiros de retórica. Por exemplo, a frase “os fins justificam os meios” costuma enojar qualquer ouvinte, mesmo proferida antes de o assunto principal ser apresentado. Pois os senhores doutores disseram que, no caso em tela, os fins têm justificado os meios. Completo absurdo. A tecnicidade e sobriedade do trabalho das autoridades que atuam no caso têm chamado atenção inclusive no exterior. As garantias têm sido respeitadas, e a defesa tem sido ampla.

Tentaram, ademais, como bons advogados, fazer do limão a limonada. Uniram seus privilegiados intelectos para urdir a tese de que a prisão temporária tem sido desvirtuada. Mas apontar prisões temporárias arbitrárias lá isso não fizeram. Nenhuma. O fato é que muitos de seus clientes têm sido presos temporariamente e, durante essa prisão cautelar, lhes são apresentadas as provas que há contra eles e lhes é oferecida delação premiada. Não há rigorosamente nada de irregular nisso. Os doutores se irritam porque tal proceder dificulta a utilização de artimanhas que utilizaram por décadas e lhe renderam fortunas. Agora, se deparam com uma situação nova em que não sabem o que fazer. Por isso, tentam desqualificá-la.

A tática do limão e da limonada valeu uma passagem cômica na carta de suas excelências. Alegaram espanto com o fato de que seus clientes serem presos por, supostamente, serem perigosos mas que, assinado o termo de delação premiada, são logo colocados em liberdade. Qualquer estudante mediano de processo penal sabe que a legislação dificulta manter preso quem já assinou a delação premiada, além dos vários casos em que o perigo que de fato existia e motivou a prisão muitas vezes deixa de existir justamente quando o indivíduo admite o que fez.

Passagens de gosto duvidoso, e que colocam em dúvida a cultura geral dos doutos, também se encontram ali. Fala-se em neoinquisição. Bem, a Inquisição levou à morte milhões de pessoas pelo simples fato de professarem uma fé, como os judeus. Houve mesmo casos em que, mesmo tendo abjurado o judaísmo, o réu foi morto, pelo simples fato de que seu sangue continuava judeu; pelo fato de existir. É cristalino que não há qualquer paralelo entre o que foi aqui descrito – pessoas mortas como moscas por crimes de consciência ou por pura eugenia – e uma operação realizada no século XXI, com todas as garantias legais e constitucionais, baseada em provas (refutáveis, é claro) de dilapidação sistemática do erário.

O uso da palavra “neoinquisição”, não foi só um chiste panfletário de mau gosto, mas um desrespeito à História. Os doutos, para criarem uma palavra de efeito, não deram importância ao fato de que, ao fazê-lo, cuspiam no rosto de milhões de assassinados, principalmente do povo judeu.

A carta divulgada pelos advogados e demais juristas envergonha o Brasil. Quem conhece as limitações e dificuldades de se trabalhar na estrutura pública deste país sabe que a Operação Lava Jato é um feito quase inimaginável, sem paralelo, nem mesmo com a Operação Mãos Limpas, da Itália. É o fruto de trabalho sério e abnegado. Principalmente, é fruto de coragem. Sobre esse tema – a coragem do juiz – escrevi em livro lançado recentemente, que remete à obra de Rodolfo Walsh “Operação Massacre”: “Na história da América Latina, ficou famosa a coragem de um juiz argentino de La Plata (Belisario Hueyo) que, num período turbulento daquele país, escreveu repetidos ofícios a autoridades civis e militares questionando sobre o que teria acontecido a um grupo de jovens preso em Buenos Aires certa noite, quando jogavam cartas e assistiam a uma luta de boxe pela TV, e que acabaria fuzilado horas depois, confundido com revolucionários. […] O juiz Hueyo mostrou toda sua honradez e caráter pela insistência com que mandou ofícios às autoridades em busca de esclarecimentos para os fatos. Ao fim, ele ganhou a parada. Conseguiu levar a cabo um processo penal sóbrio, bem conduzido, de grande objetividade, que esclareceu o caso”.

Nessa passagem, destaquei a coragem de um juiz que, em plena ditadura argentina, sabidamente sanguinária, não cessou de incomodar as autoridades em busca de esclarecimentos, colocando em risco sua vida. Comparando com a Operação Lava Jato, o Brasil não vive hoje uma ditadura, mas a coragem que os profissionais nela envolvidos têm demonstrado para purgar as estranhas da República custe o que custar, doa a quem doer, iguala ou talvez supere a do bravo juiz Hueyo.

Adiante no livro, escrevi o seguinte: “Todos dizem que há duas coisas inevitáveis na vida: a morte e o imposto de renda. Para os juízes, podemos acrescentar que, além de se encontrarem anualmente com o imposto de renda e que, em alguma fatídica data, cruzarão com a morte, também hão de cruzar com o heroísmo algumas poucas, mas decisivas vezes. Ele olhará fundo nos seus olhos”.

Os profissionais da Operação Lava Jato têm demonstrado que têm os olhos fixos no fogo, e não desviam o olhar. Já os advogados se valem de manobras como essa, nitidamente política, pobre, sem fundamentos, com fim nitidamente ilegítimo: pressionar politicamente os agentes públicos da Operação Lava Jato.

A todos que assinaram a triste carta, uma recomendação, não jurídica, mas linguística. Abram um dicionário e leiam, atentamente, a definição da palavra hombridade.

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Referências bibliográficas:

WALSH, Rodolfo. Operação Massacre. Trad. Hugo Nader. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
VILELA, Hugo Otávio Tavares. As Ordenações Filipinas – o DNA do Brasil. Revista dos Tribunais. ano 104. ago. 2015. v. 958. pp. 322-323.
VILELA, Hugo Otávio Tavares. Além do direito: a formação multidisciplinar do juiz. Brasília: Conselho da Justiça Federal – Centro de Estudos Judiciários, 2015. pp. 46-47.