O longo caminho do STF para inibir as chicanas
“Em nenhum país do mundo, depois de observado o duplo grau de jurisdição, a execução de uma condenação fica suspensa aguardando referendo da Suprema Corte”. [Ellen Gracie, em 2005].
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“O direito de recorrer é sagrado; o abuso desse direito não.” [Cármen Lúcia, em 2013].
A decisão tomada pelo Supremo Tribunal Federal nesta quarta-feira (17) –ao definir que a prisão pode ocorrer após decisão da segunda instância– está alinhada com o pensamento dessas duas magistradas: Ellen Gracie (aposentada) e Cármen Lúcia (próxima presidente do STF).
Em agosto do ano passado, Cármen Lúcia já apontava nessa direção, ao prever em entrevista à Folha: “Vejo a tendência de que a presteza dê à sociedade a certeza de que quem estiver correto, será absolvido em prazo curto, e o condenado, idem”.
“Tenho de garantir o direito à defesa, mas com celeridade”, disse a vice-presidente do STF.
O Supremo finalmente mudou de rota e reviu a “derrapada de 2009” –como definiu o procurador da República Vladimir Aras. Naquele ano, no julgamento do Habeas Corpus 84078, o STF passou a condicionar a execução da pena ao trânsito em julgado da condenação.
Essa derrapagem, ainda no dizer de Aras, “fomentou a notória indústria dos agravos e dos embargos de declaração encadeados, enfileirados e sem fim”.
Naquele julgamento, ficaram vencidos Cármen Lúcia, o ex-presidente Joaquim Barbosa, que antecipou a aposentadoria, e Menezes Direito [que morreu no mesmo ano].
Ontem, coube ao atual presidente do STF, ministro Ricardo Lewandowski, expressar o sentimento dos vencidos e expor sua “perplexidade com esta guinada da Corte”.
Diante da falência do sistema carcerário, Lewandowski disse estranhar a decisão do Supremo, ao “facilitar a entrada das pessoas neste verdadeiro Inferno de Dante, abrandando esse princípio maior da nossa Carta Magna”.
Prevaleceu o entendimento do relator, ministro Teori Zavascki, para quem “a manutenção da sentença penal pela segunda instância encerra a análise de fatos e provas que assentaram a culpa do condenado, o que autoriza o início da execução da pena”.
Zavascki foi acompanhado pelos ministros Edson Fachin, Luís Roberto Barroso, Luiz Fux, Dias Toffoli, Cármen Lúcia e Gilmar Mendes.
Ficaram vencidos, além de Lewandowski, os ministros Rosa Weber, Marco Aurélio e Celso de Mello.
Três decisões foram marcantes na caminhada do STF para rever o julgamento de 2009:
– A primeira, em junho de 2013, quando a ministra Cármen Lúcia determinou a antecipação do trânsito em julgado da condenação do ex-deputado Natan Donadon, mesmo na pendência de embargos de declaração, tidos como protelatórios;
– A segunda, em janeiro de 2013, quando a Segunda Turma do STF rejeitou, por unanimidade, embargos de declaração em habeas corpus impetrado pelo ex-desembargador Paulo Theotonio Costa –afastado do TRF-3, condenado por corrupção passiva–, e “determinou a imediata remessa dos autos à origem, nos termos do voto do relator” [ministro Gilmar Mendes]. Ou seja, o Supremo mandou baixar os autos ao Superior Tribunal de Justiça, antes mesmo da publicação do acórdão.
– A terceira, em 5 de novembro de 2014, quando o plenário do Supremo manteve, por unanimidade, a decisão monocrática do ministro Dias Toffoli que decretara o trânsito em julgado numa das ações contra Luiz Estevão, determinando a prisão do ex-senador.
Talvez o famoso caso dos desvios de recursos da construção do Fórum Trabalhista de São Paulo seja o mais emblemático das chicanas e do uso abusivo de recursos procrastinatórios para tentar alcançar a prescrição e evitar o cumprimento das penas.
A cascata de recursos foi o expediente adotado pelo ex-senador e demais réus: Nicolau dos Santos Neto [o “Lalau“], ex-presidente do TRT-SP, e os empresários Fábio Monteiro de Barros Filho e José Eduardo Ferraz.
Merece registro a persistência do Ministério Público Federal em São Paulo, ao tentar estancar o tsunami de recursos que durou 16 anos no “Caso do TRT-SP”. (*)
“Os réus enriquecidos com o desvio de verbas públicas valem-se do processo penal para obter a prescrição de suas penas através da interposição de recursos em cascata, cuja maioria não tem qualquer cabimento”, afirmou em maio de 2014 a procuradora regional da República Maria Luisa Carvalho, de São Paulo.
A travessia do STF, até chegar ao julgamento de ontem, foi bem retratada pelo ministro Gilmar Mendes em entrevista ao “Consultor Jurídico“, em julho do ano passado, (num “admirável mea culpa” que mereceu elogios do procurador da República Vladimir Aras):
“Nós tínhamos uma jurisprudência sólida, consolidada, que permitia a execução da pena já com a decisão de segundo grau. Depois, a partir de um impulso, uma proposta trazida pelo ministro Cezar Peluso, revertemos essa orientação, entendendo que era preciso trânsito em julgado. E parece que a ortodoxia deveria rezar nesse sentido. Mas, se examinarmos os casos concretos, em geral, vamos ver que cada vez mais se afigura difícil chegar ao trânsito em julgado, e até que essa jurisprudência estimulou bastante os expedientes para dificultar o trânsito em julgado, com reiterados embargos de declaração, por exemplo, com reiterados recursos de nítido caráter protelatório, quando já se sabe que não vai mudar a jurisprudência, a decisão que já foi fixada“.
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