“Uma medida que vem para moralizar a Justiça”
Sob o título “O Supremo e a sociedade brasileira!“, o artigo a seguir é de autoria de Edison Vicentini Barroso, desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo.
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Leis existem para reger a vida social, regrar o que precisa ser regrado. Tudo muda, evolui – nada permanece sempre igual. Assim no mundo dos homens, seres gregários, a dependerem de normas de convivência que os pacifiquem, enquanto integrantes duma sociedade. No caso, a brasileira!
No campo da corrupção, em especial duma década pra cá, o Brasil mudou muito – para pior! O saque aos cofres públicos foi institucionalizado e os bandidos, em especial os do colarinho branco, atingiram status de cidadania. Não se sabe quem ou quais sejam – pôr em quase todas as classes sociais.
É o legado do desgoverno brasileiro, da visão utilitarista da Vida – e prejuízo dos princípios da ética e da moral. Nesse contexto, a delinquência especializada se generalizou – tanto quanto o uso dos inúmeros recursos legais para atravancar os processos e produzir prescrição, quando não absolvição.
E as pessoas de bem, pagadoras de impostos e cumpridoras dos deveres, se assustam com a multiplicidade de crimes e criminosos. Mais ainda, com a flagrante sensação de impunidade decorrente dum jogo de cena processual feito para frustrar a ação punitiva do Estado.
Os processos enxameiam, muitas vezes, sem a solução esperada.
Utilizando-se da frouxidão da lei e das mazelas do sistema, não raro, os espertalhões – em geral mais abastados e capazes de pagar advogados experientes na arte de xadrez dos procedimentos judiciais – logram fugir à ação mais efetiva das respectivas providências de repressão.
Noutras palavras, usa-se e abusa-se do direito de recorrer – a mais não poder! –, sob a couraça de leis que privilegiam os delinquentes e às vítimas mais vitimam! Os processos se sucedem, na sucessão do tempo, por vezes, levando longos anos até seu término. Tudo, sob o olhar atônito da parte honesta da sociedade brasileira.
Nesse quadro, sobreveio recente decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), por maioria de votos, no sentido de relativizar a presunção de inocência insculpida no artigo 5º, inciso LVII, da Constituição Federal, de forma a equilibrá-la e harmonizá-la com o princípio da efetividade da função jurisdicional do Estado de proteger a nata da sociedade da ação predatória dos criminosos – notadamente, os de nova espécie.
Teori Zavascki, o ministro relator – e os que com ele votaram –, bem soube apreender as especiais circunstâncias do aflitivo momento social brasileiro, harmonizando a dogmática do Direito à visão realista da vida nacional, no sentido de interpretar a Constituição a favor da sociedade, sedenta da verdadeira justiça!
Com isso, passou-se a dar maior crédito aos julgamentos de primeira e segunda instância, a partir dos quais, caso sobrevenha condenação e ao contrário do que vinha acontecendo desde os idos de 2009, já será possível iniciar-se o cumprimento da pena, sem que se esperem pelos possíveis incontáveis recursos – em grande parte protelatórios! – interpostos nos chamados tribunais superiores.
E, de fato, firmada a responsabilidade criminal pelas instâncias ditas ordinárias, justamente aquelas que se depararam com a essência das provas e aptas à calibragem da pena, ter-se-á atingido o ponto de maturação processual suficiente a que, a um só tempo, se preservem os dois princípios – o da presunção de inocência até prova em contrário (então, já existente) e o da positivação do direito estatal de punir, a bem da sociedade brasileira.
Assim, a partir do julgamento colegiado de 2ª instância, a pena poderá começar a ser cumprida, sem mais demora, atribuindo-se a eventuais recursos o só efeito devolutivo – sem que àquela se suspenda.
Esse só fato, a traduzir mudança da jurisprudência do STF, arejará as coisas da Justiça, preservado do direito à liberdade até que se prove culpa e do imperativo moralizador do início do cumprimento da pena, independentemente doutros possíveis recursos. Em regra, em nada condizentes à valoração de provas e, por isso, a não representarem óbice à ação efetiva e tão esperada da Justiça – capaz de minorar o sentimento de impunidade que grassa na sociedade.
Evidentemente, polêmica existirá – na medida dos interesses colidentes.
Dum lado, o da preservação da positiva ação estatal punitiva – tão desejada por boa parte da população. Doutro, o da certeza de que, duma forma ou de outra, aquele que há de cumprir pena terá passado pela fieira de duplo julgamento, de 1ª e 2ª instâncias, suscetíveis de lhe garantir o direito à presunção de inocência até que à culpa se prove.
Em última instância, o Direito é a ciência do razoável. E, na atual conjuntura social brasileira, afeiçoa-se mais que razoável a interpretação ora restaurada pelo Tribunal – em boa hora!
Em suma, é medida que vem para moralizar a Justiça, dar-lhe agilidade e torná-la mais efetiva, fazendo valer o ditado de que ‘a Justiça tarda, mas não falha’, sem o risco maior de torná-la sistematicamente falha por muito tardar!
De se lembrar que Estado de Direito não é aquele circunscrito ao papel, à retórica, mas o que lhe vá além, de molde a dar a quem de direito tudo quanto merecido, no tempo mais breve possível. A este passo, de se lembrar citação da ministra Cármen Lúcia, do STF, no sentido de que ‘O direito de recorrer é sagrado; o abuso desse direito não.’
Assim, ao contrário do dito por alguns, a decisão de agora não rasgou a Constituição. Antes, interpretando-a consoante às necessidades sociais, atendeu a sentimento de justiça imanente no seio do povo, a vivenciar os percalços e vicissitudes da ação deletéria duma Justiça tardia e, também por isso, inevitavelmente falha. Comemoremos, pois, a perspectiva de tempos novos, melhores, em prol do grosso da população!