Microcefalia e interrupção da gravidez
Sob o título “Interrupção da gravidez de fetos microcéfalos: entre a urgência e a prudência“, o artigo a seguir é de autoria de Alvaro Luis de A. Sales Ciarlini, juiz, professor do Instituto de Direito Público em São Paulo e Brasília e doutor em Direito Constitucional pela Universidade de Brasília.
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A decisão a respeito da interrupção da gravidez nos casos de anencefalia, objeto de julgamento pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal aos 12 de abril de 2012 (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 54 – Distrito Federal) será em breve testada como possível precedente para o enfrentamento de outra situação jurídica de acentuada gravidade e importância, que nos levará à indagação a respeito da possibilidade de cessação da gravidez também nas hipóteses de microcefalia.
Diante da velocidade de propagação do vírus zika, com repercussão em vários países, a sugerir a existência de uma pandemia e, a par do reconhecimento hoje quase unânime da estreita relação entre a infestação de gestantes por esse microorganismo e o surgimento da microcefalia em seus fetos, pretende-se saber se o STF também declararia inconstitucional a interpretação segundo a qual a interrupção de gravidez de feto microcéfalo estaria subsumida às condutas tipificadas nos artigos 124, 126 e 128, incisos I e II, do Código Penal.
Pelo teor da reportagem da BBC Brasil, reproduzida no jornal “Folha de S. Paulo”, intitulada “Grupo prepara ação no STF por aborto no caso de microcefalia”, essa é a real hipótese a ser avaliada.
Não custa lembrar que no sistema jurídico brasileiro já há previsão de aborto, mas apenas nos casos de perigo à vida da gestante e de gestação resultante de estupro.
A diretriz estabelecida na decisão do STF na ADPF nº 54 – DF, muito embora ainda não incorporada ao Código Penal, encontra-se sintetizada no art. 128, inc. III, do anteprojeto do estatuto penal. Esse dispositivo, a ser ainda submetido ao crivo do processo legislativo, pré-exclui expressamente a ilicitude do abortamento nas situações de comprovação de anencefalia ou no caso de padecer o feto de “graves e incuráveis anomalias que inviabilizem a vida extrauterina, em ambos os casos atestado por dois médicos”.
Convém ainda não olvidar de que em sua memorável decisão proferida na ADPF nº 54, o STF fiou-se nas normas jurídicas que preceituam, além da proteção da autonomia da gestante e de seu parceiro, também no princípio constitucional da dignidade da pessoa e no direito à vida, isso sem falar no direito à privacidade e na tutela da saúde da mulher.
Com a expedição da Resolução nº 1989, de 14 de maio de 2012, o Conselho Federal de Medicina trouxe ainda reconhecida densidade técnica à hipótese, tratando de normatizar os requisitos e procedimentos que se referem ao diagnóstico de anencefalia para os fins expostos na decisão do STF. Em face da mencionada resolução, após o diagnóstico que ateste a deformidade do feto, a partir da décima segunda semana de gestação, por meio de laudo assinado por dois médicos, a gestante poderá optar por manter a gravidez ou interrompê-la, com a garantia de que receberá atendimento médico compatível com seu quadro gestacional. Poderá também decidir a qualquer tempo pela antecipação terapêutica do parto.
Deve-se agora meditar se esse modelo jurídico que contempla a interrupção da gravidez, adotado no específico caso de inviabilidade de vida extrauterina, se mostraria juridicamente viável para lidar com a microcefalia. Ao refletirmos a respeito desse tema, é fácil supor que os quadros etiológicos, clínicos e terapêuticos que envolvem as malformações em ambas as hipóteses, por sua dessemelhança deveriam, por certo, repelir solução juridicamente congênere.
Na anencefalia, como já assentado no senso comum teórico da ciência médica, há ausência parcial da estrutura encefálica ou mesmo da calota craniana, o que representa impedimento para as funções vitais do corpo humano. Nesse caso, a consequência é a inviabilidade da vida extrauterina. Situação diversa é a do quadro resultante da microcefalia, pois, a despeito de sua evidente gravidade, pode gerar o comprometimento das atividades cognitivas e motoras do indivíduo, sem pressupor, porém, a insuscetibilidade para a vida.
Muito embora seja inegável a necessidade de providências urgentes para lidar com essa avassaladora enfermidade, nunca é demais pedir prudência. Não se pretende aqui, em breves linhas, indicar uma saída jurídica para o caso, mas apenas aproveitar uma excelente oportunidade para pensar a respeito das consequências jurídicas da possível conexão desse quadro geral pandêmico com a decisão proferida na ADPF nº 54.
Portanto, como diretriz reflexiva, convém elencar, ainda que sumariamente, duas abordagens, sendo a primeira bioética e a segunda criminológica.
No primeiro aspecto, propõe-se a análise cuidadosa da possível repercussão do alargamento das hipóteses de aplicação da ratio juris da Suprema Corte para lidar, por exemplo, com a situação ora descrita. O risco nesse caso é o de colocar em evidência, com a chancela do Judiciário, a lógica da eugenia.
Em segundo lugar, sob a perspectiva de uma específica faceta da teoria criminológica, não nos parece justificável a descriminalização do aborto nesse caso, sem a prévia e sadia intermediação do Parlamento, após o devido amadurecimento desse tema na esfera pública.
Caminhemos, pois, despertos, premidos pela urgência, mas orientados pela prudência.