Audiência de custódia sem combinar com os russos
Sob o título “Audiência de Custódia: Travessia sim, mas com os pés no chão”, o artigo a seguir é de autoria de Gervásio Protásio dos Santos, juiz titular da 6ª Vara Cível da Comarca de São Luís (MA), presidente da Associação dos Magistrados do Maranhão e Coordenador da Justiça Estadual da AMB.
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“O real não está no início nem no fim, ele se mostra pra gente é no meio da travessia…” (Guimarães Rosa).
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O Brasil é um país cujas dimensões físicas atingem a proporção de um verdadeiro continente. O seu território ocupa 1,6% da superfície do globo terrestre.
Não obstante o tamanho continental, historicamente, o Brasil é visto por uma lente única. Não raro, planos e programas são engendrados em Brasília sem considerar as diversidades regionais, as peculiaridades dos pequenos e médios municípios e as distâncias geográficas para os centros que concentram as estruturas de poder.
Tal equívoco muito recorrente no âmbito do Poder Executivo, nos últimos anos passou, também, a ser reproduzido pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), órgão de controle externo do Poder Judiciário. O último exemplo dessa assertiva é a Resolução nº 213, de 15 de dezembro de 2015, que fixou o prazo de 24 horas para a apresentação do preso à autoridade judiciária.
A referida Resolução determinou, ainda, de forma cogente, que em 90 dias, a contar de 1º de fevereiro de 2016, os Tribunais implantem a audiência de custódia nas suas respectivas jurisdições.
Não se discute que a audiência de custódia é um avanço civilizatório, tendo o Supremo Tribunal Federal pacificado o entendimento, quando do julgamento da ADPF 347, de que essa audiência foi integrada ao sistema normativo brasileiro pela assinatura do Pacto de San José da Costa Rica, a que o Brasil aderiu em 25 de novembro de 1992.
Porém, essa não é a questão. O problema surge quando o CNJ baixa uma Resolução nos termos postos, “sem combinar com os russos”, para utilizar uma expressão popularmente consagrada.
Por exemplo: não há notícias de que o Conselho Nacional de Justiça tenha feito os estudos necessários acerca do impacto financeiro que a realização da audiência de custódia em 24 horas causará aos orçamentos dos Tribunais, já combalidos em face da aguda crise econômica. Sim, soluções terão que ser pensadas para as comarcas de entrância única e que importarão em custos financeiros, como os decorrentes da implantação de plantões regionais, eis que inconcebível pensar que o juiz possa trabalhar 24 horas por dia, sete dias por semana.
Também não foi pensado nas dificuldades de locomoção nos estados amazônicos, em que predomina o transporte fluvial, nem tampouco se o Ministério Público e a Defensoria Pública, instituições indispensáveis à realização da audiência de custódia, possuem estrutura para atender a essa nova demanda em prazo tão exíguo.
E o que falar das dificuldades dos governos estaduais, a quem cabe a obrigação de transportar o preso? Muitos não conseguem ao menos cumprir o básico, que é a apresentação dos presos nas audiências ordinárias, por falta de estrutura de toda ordem: veículos, combustível, pessoal, etc.
É certo que os entraves estruturais não devem servir de desculpas para os avanços civilizatórios, mas a travessia há que ser feita com os pés no chão, observando a realidade de cada região, construindo soluções duradouras e concretas e permitindo que o tempo opere a consolidação do instituto.
O Estatuto da Criança e do Adolescente e a Lei Maria da Penha são provas concretas de que uma norma por mais importante que seja para a efetiva cidadania, precisa de tempo para maturação, tanto que várias das medidas previstas nesses diplomas, apesar do tempo de vigência, ainda não se encontram implantadas integralmente.
Definir, nesse momento inicial, prazos razoáveis para a realização das audiências de custódia – a Corte Interamericana de Direitos Humanos, no caso Cabrera Garcia Y Montiel Flores vs México, admitiu como tal 5 dias –, ou permitir que os próprios Tribunais, de acordo com a sua peculiaridade local, fixem esse prazo, seria um ato de reconhecimento de que para a travessia ser bem sucedida, há que se levar em conta o real.
Enfim, “o mais importante e bonito do mundo é que as pessoas não estão sempre iguais, pois ainda não foram terminadas – mas que elas vão sempre mudando”, nas sábias palavras de Guimarães Rosa. Assim, são também as instituições.
Por isso, a melhor contribuição que o Conselho Nacional pode dar em prol das audiências de custódia é rever essa Resolução 213/2015.