Prova ilícita e prova ilegítima na Lava Jato
Sob o título “Prova ilícita e prova ilegítima“, o artigo a seguir é de autoria de Rogério Tadeu Romano, advogado e procurador regional da República aposentado.
***
Há quem fale que o diálogo da presidente com o atual ex-presidente e chefe da Casa Civil nomeado aconteceu duas horas após ordem para suspender gravações.
O diálogo foi gravado no dia 16 de março, às 13h 32, e eles discutiam o termo de posse de Lula com o novo chefe da Casa Civil.
Houve intepretação de que o diálogo levava a obstrução das investigações.
A gravação foi tornada pública pelo juiz federal Sergio Moro.
Haveria com a publicidade da gravação uma prova ilícita?
Segundo Moro, o “levantamento [do sigilo] propiciará assim não só o exercício da ampla defesa pelos investigados, mas também o saudável escrutínio público sobre a atuação da Administração Pública e da própria Justiça criminal”. “A democracia em uma sociedade livre exige que os governados saibam o que fazem os governantes, mesmo quando estes buscam agir protegidos pelas sombras”, escreveu.
Ainda conforme o magistrado, o sigilo também não se justifica em razão de a “prova ser resultante de interceptação telefônica”. “Sigilo absoluto sobre esta deve ser mantido em relação a diálogos de conteúdo pessoal inadvertidamente interceptados, preservando-se a intimidade, mas jamais, à luz do art. 5º, LX, e art. 93, IX, da Constituição Federal, sobre diálogos relevantes para investigação de supostos crimes contra a Administração Pública”, argumentou.
Fala-se que no momento em que o delegado é informado da decisão do juiz, ele deveria encerrar a interceptação telefônica. Imediatamente.
A decisão de Moro que determina o fim das interceptações ao ex-presidente foi juntada ao processo judicial às 11h12 desta quarta-feira (16). O juiz determina que a Polícia Federal seja comunicada da decisão “com urgência, inclusive por telefone”, diz o texto do despacho.
Às 11h44, em outro despacho, a diretora de Secretaria Flavia Cecília Maceno Blanco escreve que informou o delegado sobre a interrupção. “Certifico que intimei por telefone o Delegado de Polícia Federal, Dr. Luciano Flores de Lima, a respeito da decisão proferida no evento 112″, diz o documento.
O evento 112 refere à decisão de interromper as interceptações telefônicas do ex-presidente. Neste despacho, Moro afirma que não há mais necessidade das interceptações, pois as ações de busca e apreensão da 24ª fase da Lava Jato já foram realizadas.
Esclareceu a Polícia Federal:
“1 – A interrupção de interceptações telefônicas é realizada pelas próprias empresas de telefonia móvel;
2 – Após o recebimento de notificação da decisão judicial, a PF imediatamente comunicou a companhia telefônica;
3 – Até o cumprimento da decisão judicial pela companhia telefônica, foram interceptadas algumas ligações;
4 – Encerrado efetivamente o sinal pela companhia, foi elaborado o respectivo relatório e encaminhado ao juízo competente, a quem cabe decidir sobre a sua utilização no processo.”
Ora, há nítidos indícios de crime na conversa envolvendo a presidente da república que foi reportada.
Há prova ilegal e prova ilícita. Pietro Nuvolone (Le prove vietate nei processo penal nei paesi di diritto latino) aduzia que a prova será ilegal sempre que houver violação do ordenamento como um todo, quer sejam de natureza material ou meramente processual. Ao contrário, será ilícita a prova quando sua proibição for de natureza material, quando for obtida ilicitamente. A ilicitude material ocorre quando a prova deriva de um ato contrário ao direito e pelo qual se consegue um dado probatório.
Por sua vez, há ilicitude formal quando a prova decorre de forma ilegítima pela qual se produz muito embora seja ilícita a sua origem. A ilicitude material diz respeito ao momento formativo da prova. A ilicitude formal ao momento introdutório da mesma.
Dir-se-á, outrossim, que há uma dicotomia entre a prova ilegal e a prova ilegítima. A última pode ser objeto de ratificação pelo juízo competente.
Vedam-se provas obtidas por meios ilícitos (principio da inadmissibilidade de provas obtidas por meios ilícitos), algo inerente ao Estado Democrático de Direito que não admite a condenação obtida pelo Estado a qualquer preço.
A proibição da prova ilícita surgiu na Suprema Corte americana. Ao interpretar essa proibição, a Corte delimitou o sentido e o alcance da norma, para estabelecer exceções às regras de exclusão, como a da admissibilidade da prova ilicitamente obtida por particular, a da boa-fé do agente publico e a da causalidade atenuada.
Na Alemanha essa proibição foi objeto de preocupação do Tribunal Federal Constitucional da Alemanha. Ali fixou-se a chamada teoria das três esferas, que gradua a privacidade e qualifica juridicamente as investidas estatais contra elas para fins de produção da prova. Por ela, apenas a prova produzida com invasão das estruturas mais íntimas da vida privada, como o monólogo, seriam inaproveitáveis; as provas produzidas com invasão das camadas menos profundas da intimidade podem ser aproveitadas, se a intensidade da invasão for proporcional à gravidade do crime investigado.
No Brasil, a Constituição de 1988 prevê, entre as garantias fundamentais, que são inadmissíveis as provas obtidas por meios ilícitos. Mas a inadmissibilidade da prova ilícita não exige que ela seja interpretada como garantia absoluta, nem afasta que seja submetida a testes de proporcionalidade. Aliás, a prova ilícita que favoreça o réu é admissível. A reforma processual de 2008, nessa linha de entendimento, permite o aproveitamento da prova ilicitamente obtida quando corroborada por fonte independente ou quando sua descoberta inevitavelmente ocorreria.
Cresce, dentro do Ministério Público, o entendimento de que “fatores como a baixa intensidade da lesão a bem jurídico na coleta ou na produção da prova, a gravidade concreta e abstrata e as circunstâncias do crime em apuração e a possibilidade de fazer cessar a prática criminosa em andamento com a produção da prova podem e devem ser ponderados diante da alegação da ilicitude da prova”. Fala-se na utilização do principio da proporcionalidade em favor da acusação, alegando-se que tal não seria uma violação da Constituição.
Vem a pergunta sobre o chamado encontro fortuito de provas.
Eis a lição de Flávio Gomes (Natureza jurídica da serendipidade nas interceptações telefônicas):
Da decisão judicial que determina a interceptação telefônica sobressaem, dentre outros, dois requisitos sumamente relevantes, sendo certo que ambos estão previstos no art. 2.º, parágrafo único, da Lei 9.296/96: a) descrição com clareza da situação objeto da investigação; b) indicação e qualificação dos investigados (dos sujeitos passivos). Fala-se em parte objetiva (fática) e subjetiva (pessoas) da medida cautelar. A lei, com inteira razão, preocupou-se com a correta individualização do fato objeto da persecução, assim como com a pessoa que está sendo investigada.
Mas no curso da captação da comunicação telefônica ou telemática podem surgir outros fatos penalmente relevantes, distintos da “situação objeto da investigação”. Esses fatos podem envolver o investigado ou outras pessoas. De outro lado, podem aparecer outros envolvidos, com o mesmo fato investigado ou com outros fatos, diferentes do que motivou a decretação da interceptação. É nisso que reside o fenômeno da serendipidade, que significa procurar algo e encontrar coisa distinta (buscar uma coisa e descobrir outra, estar em busca de um fato ou uma pessoa e descobrir outro ou outra por acaso).
A doutrina denomina esse fenômeno de “encontro fortuito” (hallazgos fortuitos) ou “descubrimientos casuales” ou “descubrimientos acidentales” ou, como se diz na Alemanha, Zufallsfunden. Damásio E. de Jesus ainda menciona: conhecimento fortuito de outro crime, novação do objeto da interceptação ou resultado diverso do pretendido.
Em princípio, o que se espera é a “identidade” (“congruência”) entre o fato e o sujeito passivo indicados na decisão e o fato e o sujeito passivo efetivamente investigados (congruência entre o que se procura investigar e o que efetivamente foi encontrado). Na eventualidade de que haja discordância (com desvio, portanto, do princípio da identidade ou da congruência), impõe-se a imediata comunicação de tudo ao juiz (princípio do controle judicial), para que se delibere a respeito.
A questão central na serendipidade ou no “encontro fortuito” versa sobre a validade da prova, é dizer, o meio probatório conquistado com a interceptação telefônica vale também para os fatos ou pessoas encontradas fortuitamente?
No direito alemão (StPO, parágrafo 100), consoante jurisprudência pacífica do Tribunal Supremo (BGH), a prova assim alcançada tem valor jurídico, desde que o fato encontrado fortuitamente tenha conexão com algum dos crimes que autorizam (em abstrato) a interceptação telefônica. Não é preciso que haja conexão com o crime investigado ou com a pessoa investigada, senão com algum dos crimes constantes do rol previsto no citado dispositivo legal. Essa solução é muito criticada pela sua amplitude, havendo incontáveis propostas de restrição.
No direito italiano admite-se, censuravelmente, qualquer encontro fortuito, desde que o fato descoberto tenha conexão com algum crime cuja prisão seja obrigatória.
Um fato tão grave como o colhido na gravação referenciada deve ser do conhecimento da Nação, não podendo a gravação considerada considerar-se, em nome da ordem pública, obedecido o princípio da proporcionalidade, como prova ilícita.
Ademais, é mister registrar que no momento em que as gravações foram divulgadas, o Juízo da Vara Federal do Paraná dispunha de competência para investigar o ex-presidente da república, pois a posse(momento do inicio da prerrogativa de foro) somente se deu no dia seguinte.
A escuta registrada e apurada não envolveu conversa particular (assuntos familiares, negócios privados etc), mas algo de interesse de toda a população. Ademais, mesmo que seja considerada ilegítima, poderá ser ratificada pelo juízo competente.