Caminho aberto para investigar obstrução

Frederico Vasconcelos

Sob o título “Pavimentado o caminho para investigar crime de obstrução do Judiciário“, o artigo a seguir é de autoria de Rogério Tadeu Romano, advogado e procurador regional da República aposentado.

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Parecer do procurador-geral da República, Rodrigo Janot, diz que houve desvio de finalidade na decisão da presidente Dilma Rousseff de nomear seu antecessor, Luiz Inácio Lula da Silva, para chefiar a Casa Civil. Para Janot, o ato de nomeação deve ser anulado.

O procurador-geral considera que, ao dar o cargo para Lula, Dilma quis retirar as investigações contra ele das mãos do juiz federal Sergio Moro, que conduz a Operação Lava Jato na primeira instância, e transferi-las para o Supremo Tribunal Federal (STF), o foro indicado para processar ministros de Estado. O procurador afirmou que a atuação da presidente foi “fortemente inusual” e serviu para “tumultuar” as investigações.

No documento, Janot afirma que o governo operou em várias frentes para tentar prejudicar as investigações contra Lula. “A nomeação e a posse do ex-presidente foram mais uma dessas iniciativas praticadas com a intenção, sem prejuízo de outras potencialmente legítimas, de afetar a competência do juízo de primeiro grau e tumultuar o andamento das investigações criminais no caso Lava Jato”, escreveu o procurador.

Para elaborar o parecer, o procurador levou em consideração as interceptações telefônicas de Lula divulgadas por Moro. Em especial, o diálogo em que Lula pede ao ministro Jaques Wagner, hoje chefe de gabinete de Dilma, que conversasse com a ministra Rosa Weber do STF, sobre um processo de seu interesse.

O procurador também considerou o depoimento do senador Delcídio do Amaral na Lava Jato, e citou ainda o diálogo em que a presidente Dilma diz a Lula que um mensageiro entregaria a ele o termo de posse, para ser usado “em caso de necessidade”.

Realmente, identificado o desvio de finalidade o caminho é a nulidade do ato administrativo e ela pode ser avaliada em mandado de segurança diante de direito líquido e certo e prova documental inconteste, que demonstre a ilegalidade do ato e seu abuso de poder por parte da autoridade coatora e impetrada.

Como bem disse Miguel Seabra Fagundes (O controle dos atos administrativos pelo Poder Judiciário, segunda edição, pág. 89), “a atividade administrativa, sendo condicionada pela lei à obtenção de determinados resultados, não pode a Administração Pública deles se desviar, demandando resultados diversos dos visados pelo legislador.

Os atos administrativos devem procurar atingir as consequências que al lei teve em vista quando autorizou a sua pratica, sob pena de nulidade”.

Sabe-se que são elementos do ato administrativo: sujeito, forma, objeto, motivo e finalidade. Por certo é usada a expressão elementos do ato administrativo para indicar os requisitos do ato.

Finalidade é o bem jurídico objetivado pelo ato. Entende-se como o resultado previsto legalmente como o correspondente à tipologia do ato administrativo, consistindo no alcance dos objetivos por ele comportados, como disse Celso Antônio Bandeira de Mello (Curso de direito administrativo, 26ª edição, página 399).

Mas ocorre desvio do poder, e, portanto, invalidade, quando o agente se serve de um ato para satisfazer finalidade alheia à natureza do ato utilizado.

De dois modos pode manifestar-se o desvio de poder: quando o agente busca uma finalidade alheia ao interesse público. Isso sucede ao pretender usar de seus poderes para prejudicar um inimigo ou para beneficiar a si próprio ou a um amigo; quando o agente busca uma finalidade – ainda que interesse público – alheia à “categoria” do ato que utilizou. Ainda na lição de Miguel Seabra Fagundes (obra citada, 5ª edição, pág. 72 e 73): “Nada importa que a diferente finalidade com que tenha agido seja moralmente licita. Mesmo moralizada e justa, o ato será inválido por divergir da orientação legal.”

Abre-se o caminho para investigar criminalmente a atual presidente da República por crime de responsabilidade e ainda por crime comum.

Os fatos se revestem de notória gravidade a merecer apuração.

Fica claro que houve uma negociação para que o ex-presidente fugisse da ação da investigação em Curitiba, onde está o promotor natural e o juiz natural.

A matéria de fuga do foro originário por conta de prerrogativa de função já foi objeto de decisão do Supremo Tribunal Federal que entendeu no julgamento da AP 396 que não se aplica a prerrogativa de foro quando “utilizado para subterfúgio para deslocamento de competências constitucionalmente definidas, que não podem ser objeto de escolha pessoal”.

Mais uma vez se vê formas usadas pelo Executivo, em atitude ilícita, lamentável que vai a via do crime, de formas próprias de uma organização criminosa, impedindo ou tentar inviabilizar uma investigação.

Analisemos o tipo penal disposto no artigo 2º, § 1º, da Lei 12.850, que se aproxima do delito de fraude processual.

Impedir é opor-se a, estorvar, não permitir, barrar, dificultar, obstar, sustar, tolher.

Embaraçar é dificultar, trazer desordem, confusão, perturbar.

A palavra investigação deve ser interpretada de forma extensiva, para abranger, não apenas, a investigação que é estritamente considerada(investigação pela policia ou pelo Parquet), como ainda o próprio processo judicial, afastando-se a incidência do artigo 344 do Código Penal, que é a regra geral.

A pena in abstrato prevista é de reclusão, de 3 (três) a 8 (oito) anos e multa, sem prejuízo de outras correspondentes.

Trata-se de tipo penal misto alternativo, regido pelo princípio da alternatividade (a realização de um só verbo já configura o crime, pois caso as duas condutas sejam praticadas no mesmo contexto fático, estaremos diante de um mesmo crime). Pode ser sujeito qualquer pessoa, sendo o crime comum, doloso, formal.

Trata-se de crime de perigo abstrato, presumido pela norma que se contenta com a prática do fato e pressupõe ser ele perigoso e sobre o qual cabe tentativa.

É algo que deve ser tratado no quadro de um impeachment e de uma ação de improbidade civil, pois afronta os princípios magnos do artigo 37 da Constituição Federal, que norteiam a Administração Pública. Afronta-se o artigo 9º, item 7, da Lei 1079/50, “por proceder de modo incompatível com a dignidade, a honra e o decoro do cargo”, de sorte que tal manobra constitui crime de responsabilidade contra a probidade na administração. É crime de responsabilidade a conduta de impedir, por qualquer meio, o efeito dos atos, mandados ou decisões do Poder Judiciário(artigo 12, I, da Lei 1.079/50).

Registro, todavia, que tal matéria deve ser tratada em pedido, requerimento, independente do que está em vias de ser votado, em grau de juízo de admissibilidade, de pronúncia, pela Câmara dos Deputados, tudo em respeito ao devido processo legal procedimental à luz do obrigatório contraditório e direito de defesa amplo a ser dado, como corolário da democracia.