Entidade de juízes repudia apologia à tortura
A Associação Juízes para a Democracia (AJD) divulgou nota de repúdio ao pronunciamento do deputado federal Jair Bolsonaro (PSC-RJ) durante a votação do processo de impeachment, no último domingo (17). Na ocasião, o parlamentar dedicou seu voto à memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, considerado o “maior torturador da ditadura militar, inclusive assim reconhecido por decisão judicial”, como registra a AJD.
Na sequência, o Blog publica artigo do advogado criminalista José Carlos Dias, membro da Comissão Nacional da Verdade, publicado na Folha em 2006. O texto repudia a homenagem prestada naquele ano ao coronel Ustra por oficiais da reserva.
Eis a íntegra da manifestação da AJD:
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Nota de repúdio à conduta antidemocrática de apologia à tortura
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A Associação Juízes para a Democracia – AJD, entidade não governamental e sem fins corporativos, que tem por finalidade a luta pelo respeito incondicional aos valores jurídicos próprios do Estado Democrático de Direito, vem apresentar sua manifestação de repúdio ao pronunciamento do Deputado Federal Jair Messias Bolsonaro (PSC-RJ) que, conforme amplamente divulgado pela mídia, no último domingo, 17 de abril de 2016, na sessão de votação sobre a admissão do processo de impedimento em face da Presidenta Dilma Vana Rousseff, justificou seu voto “Pela memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff, pelo exército de Caxias, pelas Forças Armadas, pelo Brasil acima de tudo e por Deus acima de tudo”.
Lamentavelmente é necessário lembrar que, durante a ditadura militar, o coronel Ustra chefiou o Doi-Codi, órgão de repressão do 2º Exército, em São Paulo, sendo responsável por 51 mortos, outros tantos desaparecidos e mais de 500 casos de tortura física e mental, conforme apontado pelo projeto Brasil Nunca Mais, da Arquidiocese de São Paulo. Dentre esses, foi torturada a Presidenta Dilma Rousseff, então com 22 anos. Ao homenagear o algoz da Presidenta, o senhor Deputado traz à tona toda a dor das vítimas de tortura e de suas famílias.
São conhecidos e frequentes os ataques preconceituosos, misóginos e homofóbicos do senhor Deputado, inclusive já repudiados em nota anterior. Dessa vez, no entanto, ao fazer apologia ao mais famoso torturador dos anos de chumbo, foram extrapolados todos os limites da imunidade parlamentar, segundo a qual é livre a expressão do parlamentar no exercício de sua função. Essa imunidade é uma garantia constitucional fundamental à independência do Poder Legislativo. No entanto, não é, e não pode ser, absoluta, pois também a discussão política deve observar os princípios e fundamentos da Constituição da República, dentre eles a própria democracia, a dignidade da pessoa humana, a prevalência dos direitos humanos.
No caso, a apologia à tortura não ofendeu apenas a pessoa da Presidenta Dilma, muito embora o tenha sido em profundidade. A tortura não significa apenas obter informação; para ser “efetiva” ela deve ser um programa de destruição da personalidade da vítima, e deve ser sistemática e generalizada de maneira a espalhar o medo na população. Assim, a deplorável homenagem proferida pelo senhor Deputado atingiu não só a todas brasileiras e brasileiros, mas também à própria humanidade, num ato absolutamente degradante e antidemocrático.
Ironicamente, é fato que, somente no Brasil democrático há espaço para, em tese, um parlamentar dizer sem receios um absurdo de tal monta. O Estado Democrático de Direito e as garantias constitucionais dele advindas, consagrados pela Constituição Federal de 1988, ganharam força exatamente em razão da superação do modelo ditatorial até então vivido em nosso país. Tolerar a homenagem ao maior torturador da ditadura militar, inclusive assim reconhecido por decisão judicial (Processo nº 0347718-08.2009.8.26.0000), confirmada pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, significa, portanto, permitir o retrocesso da sociedade brasileira em relação a todos os princípios democráticos.
Não é demais destacar que o Supremo Tribunal Federal, no julgamento do célebre HC 82.424, quando manteve a condenação do editor Siegfried Ellwanger por crime de racismo, pois este havia publicado livros elogiando o nazismo e exaltando a discriminação contra os Judeus, enfatizou que a liberdade de expressão não é absoluta, mas possui limites jurídicos e morais, pois essa expressão não pode alcançar “em sua abrangência, manifestação de conteúdo imoral, que implicam em ilicitude penal”.
Nesse sentido, em nenhuma circunstância e sob nenhum pretexto, o discurso de um parlamentar – que não fala por si e nem apenas por seus eleitores, mas por toda a sociedade – pode contrastar com os fundamentos e objetivos da República, valores imprescindíveis a um Estado Democrático de Direito, tais como a dignidade da pessoa humana (artigo 2°, III, CF) e a prevalência dos direitos humanos (artigo 4°, II, CF). Ademais, a não submissão à tortura é direito fundamental previsto no artigo 5º, III, CF.
Mais uma vez, é evidente que a imunidade material dos congressistas por suas opiniões e palavras (artigo 55, II, § 1°, CF) não pode ser utilizada como salvaguarda a práticas atentatórias a valores caros ao Estado Democrático de Direito, sendo que o exercício de tal garantia encontra limitação na própria Constituição Federal, ao estabelecer ser incompatível com o decoro parlamentar “o abuso das prerrogativas asseguradas a membro do Congresso Nacional”, (artigo 55, § 1°, CF), bem como no artigo 231, do Regimento Interno da Câmara dos Deputados, e artigos 4°, I e 5°, III, do Código de Ética e Decoro Parlamentar daquela Casa.
A Associação Juízes para a Democracia manifesta sua repulsa à declaração antidemocrática de apologia à tortura e de ataque pessoal à Presidenta Dilma Rousseff, reforçando seu posicionamento de integral solidariedade e respeito às vítimas de tortura e suas famílias, que se viram aviltadas em sua dignidade pela manifestação parlamentar.
São Paulo, 20 de abril de 2016.
A Associação Juízes para a Democracia
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O artigo a seguir, sob o título “Apologia da Tortura”, é de autoria do advogado criminalista José Carlos Dias. Foi publicado, em 24 de novembro de 2006, na Folha. O autor foi presidente da Comissão de Justiça e Paz de São Paulo, secretário da Justiça do Estado de São Paulo (governo Montoro) e ministro da Justiça (governo FHC).
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O coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, ex-comandante do DOI-Codi, órgão de repressão do exército, durante os piores anos da ditadura militar, de 1971 a 1974, acaba de ser homenageado com um banquete por mais de 400 pessoas, das quais 200 oficiais de alta patente da reserva -entre eles, 70 generais. O fato é gravíssimo e alarmante.
O apoio foi provocado pela notícia de que Maria Amélia de Almeida Teles, César Augusto Teles, Janaína de Almeida Teles, Edson Luiz de Almeida Teles e Criméia Alice Schmidt de Almeida, vítimas de tortura no DOI-Codi -além de também terem sido com eles encarcerados os filhos do casal, de cinco e quatro anos-, estão processando, perante o juízo cível, o referido coronel, com fim meramente declaratório, medida tomada em razão de estar o militar protegido pela Lei da Anistia.
Advoguei intensamente na defesa de perseguidos políticos durante aquele período, várias centenas de pessoas me confiaram mandato, outras causas defendi, por procuração outorgada pelo cônjuge ou pelos pais, na busca desesperada do ente querido que houvera desaparecido. Daí porque não só procurei defender vidas, na tutela de suas liberdades, como tentei salvá-las em vão, tornando-me patrono de memórias de seres, sem que muitas vezes se alcançasse sequer o atestado de óbito.
Afirmo em plena consciência, sob a fé do meu grau, como cidadão, como cristão, que me sinto no dever de testemunhar publicamente que o hoje coronel Ustra, vulgo dr. Tibiriçá, terá sido dos mais violentos repressores do regime militar imposto ao país, responsável pelas torturas e mortes no calabouço do DOI-Codi durante os quatro ou cinco anos em que foi lá comandante. Guardo em minha memória e em meu arquivo morto capítulos terríveis de tortura e de morte por mim testemunhados no compulsar de autos, nos relatos de testemunhas e de vítimas de violência.
Tenho a convicção, como advogado criminal há mais de 40 anos, de estar sujeito a processo por crime contra a honra. Assumirei o desagradável papel de réu, se este for o preço para que não permaneça em vergonhoso silêncio, calando-me diante do escândalo que o banquete representa. Usarei, se isso ocorrer, do instrumento da exceção da verdade para que as violências de Ustra possam, mais uma vez, ser submetidas ao crivo do Judiciário.
Causou-me surpresa ter notícia de que algumas pessoas que me pareciam dissociadas dos métodos de tortura lá estavam no rega-bofes, a homenagear e a solidarizar-se com o herói da tortura, coronel Ustra.
Resta uma lição para todos nós. A bravura das pessoas que resolveram confiar na Justiça para o reconhecimento meramente simbólico do que sofreram merece apoio, não com banquetes, mas com atos expressivos de solidariedade.
O direito que o preso tem ao tratamento digno, de acordo com a Declaração Universal dos Direitos do Homem e outras convenções internacionais, independe da gravidade dos fatos que o conduziu ao cárcere, sendo absolutamente injustificável o tratamento desumano e humilhante que lhe venha a ser infligido.
O coronel Ustra, premiado hoje como herói por seus camaradas, e que já foi adido militar no Uruguai durante o governo Sarney, encarna a lembrança mais terrível do período pavoroso que vivemos. Terá dito, no discurso pronunciado, que lutou pela democracia, quando, na realidade, emporcalhou com o sangue de suas vítimas a farda que devera honrar.