MPF denuncia médico legista da ditadura
Shibata é acusado de forjar laudo sobre morte de militante político.
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O Ministério Público Federal em São Paulo denunciou o médico legista Harry Shibata por forjar informações a respeito da morte do militante político Yoshitane Fujimori em 1970. (*) O ativista foi morto após abordagem policial na zona sul da capital paulista, por ordem do então major Carlos Alberto Brilhante Ustra, chefe do Destacamento de Operações e Informações do II Exército (DOI) em São Paulo. Ao elaborar o laudo necroscópico, Shibata endossou a versão oficial de que a vítima teria trocado tiros com os policiais, sem mencionar dados que esclareciam as verdadeiras circunstâncias do óbito.
Fujimori era dirigente regional da Vanguarda Popular Revolucionária, organização que se dedicava à luta contra o regime ditatorial.
Segundo informa a assessoria de imprensa do MPF-SP, no dia 5 de dezembro de 1970, ele e outro militante da VPR, Edson Neves Quaresma, transitavam de carro nas proximidades da Praça Santa Rita de Cássia, no bairro da Saúde, quando foram identificados por agentes do DOI. Segundo relatos, o carro foi metralhado e ambos tiveram de deixá-lo. Na rua, sem sacar armas, tentaram correr, mas tombaram após serem baleados. Quaresma morreu no local. Os policiais colocaram o corpo dele e Fujimori, ainda vivo, em peruas e os levaram para a unidade chefiada por Ustra.
Os agentes registraram que ambos morreram fora das dependências do DOI, após troca de tiros no local da abordagem. No entanto, testemunhas afirmam que Fujimori chegou vivo ao destacamento e morreu pouco depois devido aos graves ferimentos. Em conversas pelos corredores, os oficiais inicialmente o consideraram preso, mas reconheceram mais tarde o óbito e chegaram a comemorar o resultado da operação.
O Instituto Médico Legal só recebeu o corpo de Fujimori às 16h, quatro horas após sua captura. Shibata e seu colega Armando Canger Rodrigues, hoje falecido, foram responsáveis pela perícia e atestaram que, atingido por um disparo, o militante morreu de traumatismo cranioencefálico. No entanto, um novo laudo elaborado a pedido da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República revelou uma série de inconsistências no documento que o IML produziu na época.
Segundo a análise, as fotos do corpo indicam perfurações que não poderiam ser provocadas por um único tiro, mas pelo menos três. Além disso, a nova perícia aponta a ausência do exame de corpo de delito, obrigatório para casos de morte em circunstâncias como as descritas oficialmente. A avaliação dos documentos e das imagens disponíveis permitiu aos peritos a conclusão de que Fujimori, na verdade, foi atingido por outros disparos quando já estava caído, efetuados por dois ou mais atiradores posicionados próximo aos seus pés.
“Pode-se concluir que as omissões acerca da quantidade de projéteis e inconsistências acerca de ferimentos de entrada e saída e trajetória dos projéteis foram intencionais, visando justamente mascarar as circunstâncias da morte de Yoshitane Fujimori, já rendido pelos agentes policiais, sem condições de defesa, quando foi alvejado por mais de uma vez, com nítida intenção de provocar sua morte, e não em situação de tiroteio, conforme versão oficial divulgada pelos agentes governamentais”, escreveu a procuradora da República Ana Letícia Absy, autora da denúncia.
Harry Shibata mantinha relações estreitas com os órgãos de repressão. Em 1977, ele recebeu a “Medalha do Pacificador”, condecoração tipicamente reservada a militares e civis que colaboraram com a perseguição aos opositores do governo ditatorial. O perito chegou a enfrentar um processo administrativo no Conselho Federal de Medicina pela elaboração de vários laudos necroscópicos forjados sobre militantes políticos mortos durante o regime militar, entre eles o de Fujimori. A Justiça Federal, no entanto, considerou prescritas as falhas disciplinares e determinou que o procedimento fosse arquivado.
O MPF pede a condenação de Shibata por falsidade ideológica, crime que pode resultar em pena de prisão superior a cinco anos, além do pagamento de multa. A Procuradoria quer também a cassação do cargo público do médico legista e o cancelamento de sua aposentadoria ou qualquer provento que receba.